Capítulo 1
NATASHA encarou a lápide, a face esculpida numa perfeita expressão de apatia, as roupas negras salientado a sua tez pálida e grandes olhos azuis. Um vento gélido entranhava-se pelo vestido, arrepiando-lhe a pele e trazendo-lhe uma sensação de morte.
A mãe morrera naquela madrugada. Alina não queria um velório nem um funeral, já que ninguém iria querer vê-la. Nunca quiseram ver viva, quanto mais morta. Pedira à filha que o coveiro a enterrasse no cemitério assim que desse o seu último suspiro, sem grande aparato nem floreados. Uma campa com o seu nome num local resguardado do cemitério, a filha presente para honrar a mãe e nada mais. A sua morte era esperada há muitos anos então não seria nenhuma surpresa ou novidade.
A Sinclair mais nova não cumprira as regras da mãe à risca. Na mão, trazia um buquê de camélias, a flor preferida de Alina. Assim que o coveiro terminou o serviço, Natasha ajoelhou-se em frente à lápide, pousando as flores junto da pedra, deixando uma única lágrimas escapar e cair na terra recentemente movida.
- Amar-te-ei para sempre mamã. - murmurou, ciente de que nunca mais voltaria a dizer aquelas palavras, nem à mãe nem a ninguém - És a razão porque nunca esquecerei o que é o Amor... nem quão terrível pode ser.
O som de passos fê-la levantar-se, encarando as recém-chegadas. Outra regra de Alina quebrada, pensou Natasha, fitando a mulher e a adolescente que a acompanhava.
- Lamento muito a tua perda, querida. - disse Claire, fazendo menção de se aproximar - Serás sempre bem-vinda na nossa casa, Natasha.
A bruxa de Gavaldon abriu os braços, num gesto de conforto e carinho, tentando abraçar a recente órfã. Esta susteve a respiração, dando um passo atrás, os olhos faiscando ao dizer:
- Eu não gosto de abraços, Claire. - fez uma pausa, tentando soar menos fria - Agradeço os seus sentimentos e o seu convite mas ficarei bem sozinha.
Claire assentiu, afastando-se. Ao seu lado, Agatha permanecia quieta, encarando Natasha com os seus olhos escuros e penetrantes. Com um último aceno e um breve olhar na direção da filha, Claire virou as costas e regressou a casa, deixando as duas adolescentes sozinhas junto à lápide de Alina Sinclair.
- Vais ficar bem? - perguntou Agatha, com uma expressão de compaixão no rosto - Podes vir viver connosco, sabes disso.
- Mostra empatia para quem a queira, Agatha. - respondeu a Sinclair, rudemente - Como disse, vou ficar bem.
- Vais deixar a escola? - perguntou a outra, ignorando o mau feitio de Natasha, habituada à sua acidez e frieza - Terás de trabalhar para ganhar algum dinheiro, não é?
- Eu já trabalho. - retorquiu a ruiva, cruzando os braços - Mas sim, deixarei a escola. Não vou conseguir conciliar tudo.
- Podes. Se víveres connosco. Entre as três, arranjamos uma solução...
- Não quero a vossa pena, obrigada.
Agatha prensou os lábios, engolindo a irritação. Era difícil lidar com Natasha. Por muito que tentasse ser simpática e compreende-la, parecia que a ruiva gostava de a afastar, tratando-a o pior possível para que ela desistisse. Infelizmente para Natasha, a filha de Claire não era de desistir. Para além disso, Agatha e a sua mãe eram das poucas pessoas tão maltratadas pelos habitantes de Gavaldon como as Sinclair, logo Agatha sentia empatia por Natasha... o que só tornava a relação entre as duas mais complicada.
Natasha não queria a compaixão de Agatha. Agatha não queria desistir de Natasha. Não eram exatamente amigas... mas Agatha protegia Natasha, independentemente do que acontecesse.
Depois, havia Sophie.
- Vai. A tua princesa já deve estar à tua espera para irem juntas para a escola. - disse Natasha, com escárnio - E não queremos fazer Sua Alteza esperar.
Agatha fez uma careta, mordendo a língua para não responder. Com um olhar de falsa inocência, Natasha encolheu os ombros, sorrindo com malícia.
- Adeus, Agatha.
A bruxa de Gavaldon despediu-se com um aceno, virando-lhe as costas e atravessando o cemitério com pressa. Estava na hora de se encontrar com Sophie, a sua melhor amiga, para irem juntas para a escola.
O que Agatha via de bom em Sophie, Natasha não sabia. A loira era pretensiosa, vaidosa, rude e traiçoeira. Por muito que afirmasse ser uma princesa de boas maneiras e beleza estonteante, Sophie de Gavaldon era tão bonita como irritante, tornando-a humana como outra pessoa qualquer. Não era mais que ninguém, embora se recusasse a aceitar isso, passeando por Gavaldon como se todos fossem inferiores.
Natasha detestava-a. E era recíproco.
Em silêncio, observou a figura de Agatha desaparecer por entre as árvores, deixando-a sozinha junto à lápide da sua mãe. Fitou para além da floresta, distinguindo os contornos de Gavaldon, como se fizesse pouco de si ao espreitá-la. Alina Sinclair morrera e Natasha estava sozinha no mundo. Quando pisasse as ruas do vilarejo, uma de duas coisas poderia acontecer:
Ou receberia olhares de pena.
Ou iriam rir da sua desgraça.
Natasha não iria permitir que nenhuma das opções acontecesse. O frenesim no seu corpo cresceu à medida que a raiva a preenchia, como tantas vezes acontecia. Fechou os olhos, inspirando profundamente, sentindo a pele arrepiar e o sangue ferver.
Ela não voltaria a colocar um pé que fosse em Gavaldon. Estava na hora de partir, deixar o vilarejo para trás, ir em busca de um lugar onde pertencesse.
Se houvera sempre uma certeza no seu coração, era que nunca pertencera a Gavaldon.
Ajoelhou-se em frente à lápide com pesar, acariciando o nome gravado na pedra, saboreando os últimos pedaços de si que ainda eram capazes de sentir fosse o que fosse. Uma rajada de vento despenteou-lhe os cabelos, como se fosse uma mensagem de Alina Sinclair para si. Se fosse, Natasha sabia o que a mãe lhe diria.
"Estás livre, minha querida."
Um sorriso distorcido surgiu nos cantos da boca da jovem. Um calafrio fê-la estremecer à medida que virava as costas à Morte e se encaminhava para casa com passos firmes, as botas de couro preto enterrando-se com veemência na terra escura, os olhos azuis faiscando. Estava na hora de partir e nunca mais olhar para trás.
Pensou em Claire e Agatha. Deveria ter sido mais grata às duas por todos os anos que a tinham ajudado com Alina. Deveria ter-se despedido de Agatha para sempre, ciente de que sair de Gavaldon era para nunca mais regressar.
Descartou esses pensamentos. O que estava feito feito estava e não havia volta a dar. Pensou em Sophie, quão feliz ficaria de ver a Sinclair longe da sua vista. O sorriso de Natasha aumentou perante a possibilidade de nunca mais ver a loira na sua vida.
Sair de Gavaldon ficara ainda mais interessante.
⚡️
A sua casa nunca lhe parecera tão vazia.
Um ímpeto de dor surgiu no peito de Natasha mas escolheu abafá-lo, recusando-se a vergar perante o luto e a perda. Chorara o que tivera de chorar. A mãe morrera mas a filha estava bem viva e iria fazer o que sempre sonhara fazer.
Sem pressa, arrumou os seus poucos pertences num saco de pano que encontrou. Observou com saudade a única foto que tinha com a sua mãe, resistindo ao impulso de a colocar no saco. Não iria levar nada da sua antiga vida consigo. Merecia um recomeçar e iria tê-lo. Deixou-se ficar entre aquelas quatro paredes, esperando pela noite, para que pudesse fugir de Gavaldon sem que alguém se metesse com ela. Não sabia o que faria se algum daqueles miseráveis aldeões a provocasse no dia da morte da sua mãe.
Esperou e esperou e esperou. E por fim à noite caiu, o céu estranhamente vermelho como sangue, o vento soprando com mais frieza do que o costume. Natasha pouco se importava com isso. Estava na hora de partir.
Natasha Sinclair sempre soube que não pertencia ali. Algo lhe dizia que Gavaldon não era o seu destino e nunca deveria ter sido o seu berço. Aquelas pessoas mesquinhas nunca reconheceram nela o poder que tinha, tratando-a como uma pobrezinha, temendo os seus olhos intensos e expressão fechada. Nunca fora como as outras crianças. Tivera de crescer cedo para ajudar a mãe, vira-se forçada a não mostrar fraqueza para não ser vítima dos habitantes de Gavaldon e a raiva acumulara-se dentro de si.
Raiva da mãe por estar sempre doente.
Raiva do pai que nunca conhecera.
Raiva de Gavaldon por ser um lugar tão retrógrada e aborrecido.
Raiva de si mesma por não ser capaz de parar de sentir-se deslocada naquele lugar, parar de sonhar com o outro mundo, aquele onde sabia pertencer.
Tão certo como saber que o frenesim no seu corpo perante emoções fortes era magia.
Natasha Sinclair iria sair de Gavaldon e nunca mais regressar. Mas ela não iria sem um propósito.
Ela queria vingança.
⚡️
Antes que pudesse sequer transpor a porta, Natasha Sinclair estava aos gritos.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro