I.
"Você sabe por que está aqui?"
O incessante tique-taque ecoa suavemente pela sala, ressoando contra as paredes de metal. Você conta os segundos, os olhos ainda fechados para não encarar a mulher, nem os guardas de pé perto da porta, armas prontas para derrubá-lo se você decidir fazer algo "estúpido". E, no entanto, tudo naquele lugar é muito quieto - sempre foi quieto, você pensa, um lugar preenchido com um silêncio quase sufocante. O pensamento te atormenta por não mais do que um momento de fraqueza infantil, e no próximo instante você continua contando os segundos, as batidas do seu coração que parecem acompanhar o ritmo do relógio.
A médica repete a pergunta, chama seu nome calmamente - quase gentilmente, de certo modo - mas a única reação que você oferece é um sorriso irônico que ela não consegue ver.
Você sabe perfeitamente porque está aqui, sempre soube.
Não significa que você quer falar sobre quão podre é o mundo.
(Você não se importa com o que ficou lá fora.)
"Você foi contido e registrado como nível 5." A mulher continua, o som de papéis sendo folheados quebrando o silêncio por alguns segundos. Algo na voz dela atiça a sua curiosidade - ela não parece assustada como os 'normais'. Ela não parece zangada nem enojada como os guardas. Sua voz é calma, sutil, como se ela fosse uma cientista explicando detalhes chatos sobre seu próximo experimento, e ainda assim há algo a mais escondido por entre as palavras, algo que você não consegue nomear ainda.
(Talvez ela apenas esteja curiosa.)
"Antes de você ser capturado, os relatórios indicam que você partiu a coluna de um homem em dois, e os outros três homens que estavam na companhia de sua primeira vítima acabaram no hospital com ferimentos graves. Eles não sobreviveram. Nas fitas de segurança recuperadas de um prédio próximo, ficou claro que você nem sequer moveu um dedo para realizar tal façanha."
Curiosidade, definitivamente. Talvez um certo orgulho disfarçado sob o tom quase frio, se você se permitir acreditar que alguém pode sentir tal coisa em relação a você. Finalmente você abre os olhos, e o clima frio e iluminado demais do ambiente mal se compara à escuridão familiar e quase aconchegante com qual você já está acostumado há tanto tempo. A doutora está sorrindo, talvez simpática, talvez petulante.
(Você não se importa em saber qual a opção correta.)
"No entanto, quando o esquadrão de contenção chegou, você se permitiu ser apanhado sem apresentar qualquer ameaça aos soldados ou à civil presente no local. Não lhe parece uma situação um tanto quanto... estranha?"
Por um momento você sente vontade de rir das palavras da médica, da acusação mal disfarçada sendo jogada tão abertamente contra você, mas o som morre em sua garganta antes de você se permitir mostrar mais do que deveria. Você sabe que ela não pode ver nada por detrás da máscara cobrindo o seu rosto e há certa beleza em se esconder de olhos curiosos, de se esgueirar por entre tantos diferentes lugares ao mesmo tempo mas o melhor lugar, você pensa, para se esconder é na insanidade.
E talvez já seja tempo de cruzar aquela linha tão especial, de entrar em um mundo que você ainda não conhece e deixar a escuridão ganhar espaço enquanto a luz que brilha dentro do seu corpo se esvaece em sombras e poeira.
É tentador demais, quase o suficiente.
(...não, ainda não.)
"Imagino que ainda não queira conver..."
Suas mãos se movem devagar, num ritmo que você conhece há muito tempo, e a doutora se cala, os olhos escuros focados nos sinais que você oferece. Há maneiras melhores, mais rápidas de se comunicar mas não há nenhuma graça em jogar no modo fácil naquele mundo. Nunca foi de seu feitio se deixar levar pelo caminho menos turbulento e não seria agora que você iria começar. A expressão da médica se transforma lentamente conforme ela compreende as suas palavras silenciosas, curiosidade dando lugar a entendimento e, por fim, um estranho ceticismo que quase beira à confusão.
É possível que ela não seja tão cega quanto os outros, que ela possa oferecer um pouco mais de diversão, e a ideia é excitante demais para ser ignorada. Você está precisando de uma nova distração há muito, muito tempo.
"Eu não entendo. O que você quer dizer com..."
23h59.
E novamente você sorri, mas dessa vez você sabe que ela pode ver o suficiente. Talvez muito mais do que ela gostaria de ter visto, a julgar pelo modo que ela cai da cadeira, tentando desesperadamente se afastar de onde você está, e pelo grito de horror que parece ecoar por mais salas sem cor e sem vida além daquela em que vocês estão presos. O soldado leva apenas um ou dois segundos para reagir, arma erguida e pronta para disparar mas você realmente não está tão interessado naquele tipo de jogo.
(As suas regras sempre foram melhores, mesmo.)
00h00.
Dra. Vargas acorda com um grito preso em sua garganta e o gosto de seu próprio sangue ainda a sufocando, o coração batendo rápido contra as costelas e uma sensação horrível, quase indescritível de morte grudada em seus ombros magros.
Do outro lado da cidade, você sorri e começa a contar os segundos.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro