05. Recaída
Silêncio. Era o que reinava após a revelação feita pela estudante, que estampava uma expressão nervosa, como se tivesse cometido, de fato, um terrível delito. Selma, por sua vez, se mostrava neutra, com a feição fechada, o que chamou a atenção de Vanessa.
— Não vais dizer nada? — indagou a jovem.
— Devo admitir que tenho minha opinião acerca do que contaste, mas não me cabe, enquanto profissional, agir com moralismo.
A médica parou e, analisando a paciente de maneira minuciosa, completou:
— Apenas me esclareça uma curiosidade: por um acaso, traíste Inácio com Roberto?
— Não. Apesar de Roberto e eu termos nos conhecido desde que praticamente pisei na universidade, só fomos ter uma relação muito depois.
— Então teve alguém entre o teu ex e o atual...
Nervosa, Vanessa anuiu. Mesmo hesitante, declarou:
— Na época em que ainda namorava o Inácio, assisti uma palestra dada por um psicólogo aqui na ULisboa. Ele chamava-se Haroldo Cabral e jamais me esqueceria desse nome até porque... Bem... Quando ele tinha finalizado essa palestra, fiz questão de pegar o seu contacto...
"... O tema do evento que ele ministrou era realmente interessante, mas não superou... o charme e a beleza dele. Também era verdade que se tratava de um homem com mais idade que a minha, porém não foi impeditivo para o que aconteceria pouco depois de eu própria começar a contactá-lo."
— Já imagino o que sucedeu-se.
— Passamos... a ter um caso. Durante um semestre, no meu segundo ano de faculdade, acredito que eu tenha sido feliz, especialmente no que se referia ao sexo... — Um inevitável sorriso malicioso se fez na face da universitária. — Ele era muito bom no que fazia, porém o nosso romance era secreto.
— Não me digas que ele era...
— Sim... Era um homem... comprometido, casado na verdade, mas pouco me importei, tal como... meus amigos, que logo souberam disso tudo por mim mesma. Leane e Luane... até me incentivavam em relação ao Haroldo. Viviam a dizer "Qualquer um, mesmo que seja comprometido, menos o estorvo do Inácio" ... — Vanessa deu uma risadinha. — O Cristiano... mostrava-se mais calado. Hoje, entendo o porquê de ter reagido daquele jeito, mas nunca se opôs abertamente a esse meu caso.
— Mas um dia esse... romance findou-se, não?
— Sem mais nem menos, Haroldo parou de encontrar-se comigo e de mandar-me notícias. Admito que fiquei mal, mas consegui tocar a minha vida para a frente. Mais uma vez, os meus amigos que foram fundamentais para a minha superação. O resto já deves saber: veio o Roberto, meu atual companheiro, e cá estou eu.
— Uau! Que história! E o pior é que sei que há mais coisas assombrosas por vir.
Vanessa a considerou. Após um suspiro, disse:
— Ocorreu um evento inesperado e que fez as coisas virarem de cabeça para baixo — suspirou. — Tudo, para variar, por culpa... dele.
Ao longo daquela mesma fatídica semana (parte II)
Mais um período letivo estava se finalizando. Assim que o professor decretou o término da aula, Vanessa prontamente se pôs a guardar o seu material e sair meio que em disparada da sala. Para variar, mal havia prestado atenção no conteúdo abordado. Parecia ser um assunto interessante – outra provável desordem psicológica –, mas era como se a sua cabeça, novamente, não estivesse ali.
Não iria almoçar com Leane e Luane. As gêmeas haviam previamente avisado que estariam atarefadas no decorrer da tarde. Restou à estudante de Psicologia somente rumar para a casa.
No entanto, um imprevisto aconteceu.
Novamente, Vanessa viu Elisa – aquelazinha – se aproximar de Inácio – que, para variar, estava lindo – e entoar algumas palavras. Pensou que os dois engatariam uma breve conversa por ali mesmo e, se desse muito azar, a moça o tomaria em um abraço, quem sabe até em um beijo.
Mas não foi o que se sucedeu.
Surpreendentemente, ambos se retiraram do local. Foi inevitável para Vanessa não reparar neles... abraçados de forma lateral! Como se fossem demasiadamente íntimos, como se fossem um casal!
Foi aí que Vanessa não pensou. Ao dar por si, estava ela indo no encalço dos outros dois.
Os três cruzaram parte do corredor do andar onde se situavam até que Inácio e Elisa, alheios à sua "perseguidora", acabaram parando em uma outra sala de aula, vazia. Eles bateram à porta, mas não ao ponto do completo fechamento, de modo que uma pequena fresta surgiu. Foi a brecha necessária para que a inusitada espiãzinha pudesse constatar o que estava rolando por ali.
Todavia, Vanessa não pôde captar muito a respeito do que eles tanto conversavam naquele ambiente reservado. E as tentativas de dedução dela foram pelos ares quando... Inácio tomou Elisa em um abraço! Claro, os dois já haviam feito isso antes, mas aquele gesto era diferenciado, ainda mais no momento em que ela, ousadamente, descansou a cabeça no ombro largo dele!
Cachorra!
Apesar de tomada por aquela famigerada e estranha sensação, somada a algo que se assemelhava à cólera, Vanessa teve um rompante como uma graduanda do seu curso de escolha. Em outros termos, ela parou e conseguiu tecer uma espécie de análise em relação à fatídica cena a qual estava testemunhando.
Mesmo que Elisa estivesse se mostrando claramente fragilizada (e bem feito para ela...), a visão de Vanessa também captou a expressão de Inácio, que não parecia estar menos abatido. Por quê? Estaria o casal tendo uma discussão acalorada acerca do relacionamento? Parte do íntimo de Vanessa torceu por esta possibilidade.
Contudo, o instante de devaneio não perdurou.
Deu tempo de ela retornar à realidade e perceber que os dois já haviam se desvencilhado e a moça estava prestes a sair daquela sala. Pensando rápido, Vanessa conseguiu se esgueirar em uma outra sala vazia e permaneceu por ali por um decorrer que julgou considerável.
Nesse ínterim, ela resolveu botar os próprios pensamentos em ordem. Sua mente, antes caótica, chegou a levantar a hipótese de ela própria correr atrás de Elisa e tentar conversar, ou melhor, tirar uma satisfação. Aí, quem sabe as duas discutiriam e a briga terminaria com aquela cachorra rolando escada abaixo...
Ela chacoalhou a cabeça e decidiu tomar os rumos de sua vida. Seria melhor esquecer o que acabara de fazer e de bisbilhotar. Seria melhor esquecer Elisa e, por mais que fosse doloroso, Inácio...
Mas esse planejamento não vingou, não quando, ao sair de seu esconderijo de última hora, avistou a porta da outra sala escancarada.
Novamente, ela não raciocinou e cruzou a entrada. Veio a surpresa: Inácio ainda se encontrava ali!
E ele não estava de qualquer jeito. O corpo agachado e encolhido em um canto do ambiente, a cabeça abaixada, com a fronte encostando nos joelhos, e os movimentos trêmulos deixavam mais do que evidente o seu estado de espírito. De fato, Vanessa havia sido certeira naquela breve análise acerca da feição dele minutos atrás.
A curiosidade, misturada a uma súbita empatia que a dominou quase que por completo, a fez ser tomada pelo impulso pela terceira vez. Sem hesitar, ela o tocou de um jeito suave nos cabelos – tão sedosos – e exclamou:
— Inácio!
Assustado, o rapaz ergueu o rosto. Estaria ele sonhando? Vanessa estava ali? Justamente a sua ex, a quem ainda...?
A moça estava igualmente atônita, principalmente ao notar os olhos vermelhos dele. Apesar dos vasos sanguíneos proeminentes em sua esclera, que enfatizavam as íris escuras, deixando-o bonito de qualquer forma, aquilo a incomodou. Seja lá o que Inácio estivesse passando, era alguma coisa pesada, difícil de lidar e, pelo visto, a namoradinha dele não teve a competência de detectar isso. Porém, ela teve.
— Vanessa!
De maneira involuntária, uma das mãos dele tomou a dela, o que levou ambos a ficarem por longos segundos apenas se encarando, se estudando e, quem sabe..., tornando a se apaixonar um pelo outro. Também foi inevitável para ela não notar algo...
Uma cicatriz horrorosa no pulso dele!
Aquilo a havia inquietado desde aquela festa, fazendo-a tecer um princípio de suspeitas que, infelizmente, aparentavam se confirmar naquele momento.
A cena, entretanto, foi interrompida. De repente, o celular, presente em um dos bolsos da calça que ele usava, tocou. Talvez por ainda estar absorto pela presença da ex-namorada, Inácio ignorou a chamada. Mas o aparelho continuou soando por mais uma vez, por duas e, se bobear, até por uma terceira.
— Não vais atender? — indagou Vanessa.
De início, Inácio não respondeu, mas o novo e insistente soar do celular o fez ter coragem de dizer:
— É o meu pai.
Não deu para ela disfarçar a expressão de dó. Sabia que, na época em que se relacionou com o moço à sua frente, ele não tinha a melhor das relações com o progenitor. Sem embargo, sempre que tentava extrair qualquer informação acerca de assunto, Inácio se esquivava, dizendo somente o quão complicadas e tumultuadas eram as coisas que envolviam seu pai. Então era devido a isso aquela marca em seu pulso?
Novamente, ela tinha razão acerca do semblante que havia flagrado na face dele, o que a fez se sentir a estudante, e quiçá a futura profissional, mais competente do mundo. Por isso, ainda extasiada, perguntou:
— Gostarias de falar sobre isso?
Era um questionamento, a priori, profissional. Naquele momento, ignorou o histórico que havia entre eles. Botou na cabeça que estava ajudando um colega de classe, um conhecido.
O que ela só não esperava era a resposta que ouviu:
— Sim, mas não aqui.
— Então onde?
Em que pesou o ar deprimido dele, um meio-sorriso – para lá de sedutor e também sugestivo – brotou em seu rosto, o que indicava...
— Na tua casa!? — ela disse, espantada.
Foi aí que a racionalidade, às vezes tão enxerida, veio com força. Seria seguro ir com ele? Lembrou-se de, na conversa com Leane e Luane no dia anterior, afirmar não se sentir totalmente confortável diante dele. Claro! Havia o componente da traição – vindo, aliás, dela mesma –, embora Inácio tivesse se mostrado disposto a perdoá-la, daí as mensagens persistentes dele...
Ademais, tinha Roberto – seu atual namorado – que não gostava de seu ex. Mas... ela não era livre?
Com isso, a indecisão imperou dentro de si. Iria ou não iria?
A cartada final foi o ar tristonho de Inácio, como se ele, de um modo não verbal, estivesse pedindo, ou melhor, suplicando por companhia. O que ela deveria fazer?
Para a sorte e felicidade do rapaz, a resposta dela não demorou a vir:
— Tudo bem. Vamos.
Vanessa estivera em tantas ocasiões naquele sobrado antigo e singelo que foi inevitável não ter sido dominada pela nostalgia. Recordou-se dos momentos, os quais foram bons, relacionados ao tempo em que namorou Inácio.
A cozinha, composta por uma mesa, uma pia pequena e poucos armários, trazia à tona memórias da época em que ela e Inácio preparavam algo juntos e se divertiam por horas. A sala, por sua vez, era um espaço um pouco maior e relativamente bem arejado, devido à presença de uma grande janela com uma boa vista da rua. Era nesse cômodo que eles assistiam, sentados e agarradinhos no único sofá de dois lugares, à televisão, o que proporcionava os instantes castos de seu relacionamento pregresso.
Em contrapartida, era no único quarto, situado no andar de cima, que os dois concretizavam os mais ardentes desejos carnais, ainda que a cama fosse de solteiro e houvesse pouca mobília presente, com ênfase em um guarda-roupa consideravelmente espaçoso. E se as coisas não rolavam por ali, também havia o banheiro, que, embora minúsculo, não foi impeditivo para outras fantasias realizadas...
Ela também sabia que o ex-namorado conseguia se manter da maneira que podia, o que explicava a simplicidade do imóvel em que morava, o qual, a propósito, nem era dele. O aluguel e demais despesas eram arcados pelo fruto dos inúmeros trabalhos que ele teve e tem. Por conta do jeito taciturno, Inácio mal conseguia parar em um emprego por muito tempo – algo que estava começando a ser entendido por Vanessa.
Encontravam-se ambos na cozinha. Inácio, portando-se como um cavalheiro, puxou uma cadeira para Vanessa se sentar à mesa, o que foi prontamente feito. Antes de ele próprio tomar o seu assento, indagou:
— Queres comer ou beber alguma coisa?
— Não, quero ouvir o que tens para me explicar — ela afirmou, incisiva.
O rapaz soltou um suspirou e, por fim, sentou-se. Começou:
— Creio que tenha passado da hora de falar-te. — Houve mais um suspiro. — Pois bem, comecemos pelo que já sabes: nunca fui muito próximo do meu pai. Ele, desde sempre, vivia a beber, então foram poucas as ocasiões em que o vi sóbrio e também carinhoso. Há... uma causa para esse comportamento vicioso dele e tem a ver com outras pessoas da minha família...
Vanessa esboçou uma expressão interrogativa, a qual foi compreendida por Inácio, que complementou:
— Minha mãe e... minha irmã...
— Tu nunca falaste delas...
— Nunca falei porque... elas não estão mais entre nós.
O silêncio irrompeu no local, como se as duas pessoas ali presentes fizessem um instante solene pelas que foram citadas. Vanessa, em seguida, chegou a pronunciar um:
— Eu sinto muito, de verdade!
— Minha mãe teve-me após uma gestação e um parto tranquilos. Nasci forte, saudável e com a saúde esperada para um recém-nascido — Inácio ia relatando. O ar distante, meio vazio, dava a impressão de que era como se ele não estivesse exatamente ali. — Porém, dois anos depois, Inês, nome dado à minha irmã caçula, não teve a mesma sorte... Ela, devido a uma complicação inesperada, morreu poucas horas após nascer... Ao saber disso, a minha mãe entregou-se a uma tristeza profunda, tão profunda que ela, fora de si, saiu a correr do hospital e... sofreu um acidente, que... ceifou a sua vida.
— Oh Inácio!
— Daí o meu pai, amargurado com essas perdas, passou a descontar as frustrações em mim. Acredito que ele era um homem carinhoso antes do que aconteceu, mas a bebida o faz falar e agir com a sua típica brutalidade, de modo que sempre fui agre...
— Não precisas completar se te faz mal!
— Eu tenho que pôr para fora. Ele batia-me e, muitas vezes, dizia que o melhor era que eu tivesse ido junto com elas...
— Isso é doentio! Tu não tiveste culpa nenhuma! — Vanessa se exasperou.
Sem que ela pudesse se conter, levantou-se da cadeira, aproximou-se dele e... o tomou nos braços! Seus instintos bradavam para que ela protegesse Inácio de qualquer mal que tenha se abatido e que ainda pudesse se abater sobre ele. Ao mesmo tempo, a culpa em si cresceu. Havia sido, em mais um nível, uma péssima companheira. O moço diante de si jamais merecia o que ela fez, assim como não merecia o péssimo julgamento que seus amigos tanto lhe teciam. Em uma situação diferente, Vanessa até poderia fazer Leane e Luane, suas únicas colegas remanescentes, pedirem desculpas por tudo.
— Ele também falava que eu não era homem o suficiente — ele continuava. Dessa vez, a entonação distante deu lugar a uma voz embargada e carregada de sofrimento. — Se fosse para ter uma menininha, era preferível que a minha irmã estivesse viva no meu lugar.
— Chega! É o suficiente! Tu estás a sofrer! Aliás... É por isso que tu...
Ela não finalizou, bastando um leve manear na direção dos pulsos dele. Inácio, por conseguinte, se limitou a um aceno sofrido, confirmando definitivamente as suspeitas que rondavam a psiquê de sua ex-namorada.
Por longos minutos, ambos ficaram novamente se encarando daquela mesma forma sugestiva...
Vanessa foi aos poucos se desvencilhando e voltou para o lugar que outrora ocupava. Era verdade que havia ficado chocada com o que ouvira há tão pouco tempo, tão chocada que praticamente se debruçou sobre a mesa. Um de seus braços ficou ali jazendo e ele foi prontamente agarrado pelo seu acompanhante. Ela não quebrou aquele novo contato; pelo contrário, sorriu involuntariamente com o gesto repentino.
— Obrigado por ouvires-me, Vanessa. — Inácio deu um sorriso triste. — Foram poucas as pessoas que fizeram isso por mim.
— Tu precisas de ajuda profissional.
— Passei e tenho passado com terapeutas e talvez seja por esse motivo que eu tenha parado de atentar contra mim mesmo.
— Menos mal! És... uma pessoa especial.
— Por outro lado, essa é uma dor que custa-me superar, ainda mais com o meu pai, quando sóbrio, a tentar contacto comigo.
— Esqueça-o! Ele não sabe o filho maravilhoso que tem, tal qual eu... não dei valor para o namorado que tive...
Dito isso, Vanessa ficou cabisbaixa. Ela não percebeu Inácio se levantar, aproximar-se e tocá-la no ombro. Em um rompante, ela também se ergueu, ficando cara a cara com ele, as respirações quase misturando e... os lábios perigosamente próximos.
— Eu já disse um milhão de vezes que te perdoo — ele afirmou. — Também não fui um bom companheiro devido a todo esse meu histórico e jeito de ser...
— Não! — ela o cortou. — Eu que não sou boa para ti! Eu que menti! Eu que traí! — Em sua cabeça, completou "Eu que ainda tive a audácia de suspeitar de ti!". Parou para pegar um pouco de fôlego. De repente, lembrou-se de outra coisa: — Além disso, tu também estás compromissado. Tua... namorada sabe dessas coisas que me contaste?
— Namorada? Eu?
A cara de confusão de Inácio foi impagável e só não superou a de incredulidade de Vanessa, que, entredentes, sibilou:
— A Elisa...
Bastou o nome ser pronunciado daquela maneira para o rapaz entoar uma gargalhada compulsiva, para a indignação de Vanessa. Ele, ao se recuperar da crise de riso, respondeu:
— Elisa e eu não temos nada.
— Não? — ela quase gritou, não sabendo se de revolta, alegria ou ambos. — Então como do nada ela torna-se próxima de ti e os dois ficam ao ponto de praticamente agarrarem-se por aí?
— Somos apenas amigos — ele ainda ria. — Reconheço que Elisa é uma mulher interessante, mas não sinto nada por ela, fora que...
— Fora que...?
— Não faço bem o tipo dela, além de Elisa... também ter... olhos para outras mulheres.
— O quê? — A voz muito aguda de Vanessa ecoou pelo ambiente. — Ela é...?
O aceno de Inácio foi a réplica necessária para que Vanessa compreendesse. E as revelações não pararam por aí:
— E tem mais — ele seguia dizendo —, dois dos teus amigos envolveram-se com ela.
Imediatamente, outra recordação invadiu o âmago da jovem, que, chocada, proferiu:
— Oh céus! Não me digas que...
— Primeiro foi a tua querida amiga Leane. Em meados do semestre passado, ela teve um relacionamento casual com a Elisa.
— Eu não soube de nada. Por que ela nunca me contou? — Fez uma pausa. — Aliás, nem ela e nem a Luane, pois, na condição de gêmeas, certamente uma sabia do caso da outra.
— Vai ver porque contou o fato da Elisa não querer nada sério com a tua amiga, ou seja, o que houve entre elas não foi para frente.
— Não faz sentido! Leane vive a falar pelos quatro cantos do mundo acerca das suas conquistas...
— A atitude vinda de Elisa de ter dado um fim talvez tenha abalado o grande ego dela, não? E a outra, ultrajada pela irmã, deve ter tomado as dores.
Touché! Havia um fundamento na hipótese trazida por Inácio. Restou a Vanessa somente anuir em concordância.
— Isso também pode explicar o porquê daquelas insuportáveis ficarem de perseguição com a Elisa nas rodas de debates das quais elas participam.
Vanessa iria protestar em defesa das amigas, embora fosse difícil, visto o que estava sendo dito. O moço prosseguiu:
— Mas, um tempo depois, Elisa também gostou de alguém... E tratava-se de um homem.
De imediato, a graduanda em Psicologia não compreendeu, porém sua mente a fez remeter ao que Inácio havia declarado há poucos segundos. Ele tinha dito "dois dos teus amigos"? O que indicava...
— Cristiano! — Vanessa afirmou, um tanto exasperada.
— Elisa chegou a ter algo com ele, mas foi muito rápido, pois... Tu já sabes. Por isso que, desde que esse semestre começou, ela tem andado um pouco comigo. É muito para ela sozinha suportar: a morte de alguém que ela estava a apaixonar-se, a perseguição velada das tuas amigas, a rotina académica, enfim... Dois solitários compreendem-se...
Foram tantas coisas jogadas subitamente para cima de Vanessa que ela chegou a se sentir tonta. Ela se afastou um pouco de Inácio, dando-lhe as costas. Em seguida, veio o remorso verbalizado:
— Eu julguei-a tanto.
Então, Inácio chegou perto e tomou o seu dorso no mais caloroso abraço que ela recebeu. Ao pé de seu ouvido, ele sussurrou:
— Mas eu nunca te julguei, meu bem. Não tive tempo para ódio ou rancor em nenhum segundo sequer.
Aquelas palavras fizeram-na arrepiar como há muito não tinha experenciado. Contudo, mais uma vez, Vanessa se desvencilhou dele e, em um tom de amargor, proferiu:
— Tu não existes, Inácio. Eu disse que não sou boa para ti.
Em um ato desesperado, ele tornou a se aproximar e respondeu:
— E se eu ainda te quiser?
— Não faz sentido! Tu...
Ela não prosseguiu. De novo, estava ele com aquela cara de cachorro perdido, o que só fazia o interior dela se remexer, o coração acelerar e a respiração descompassar.
— Tu perdoas-me mesmo? — indagou Vanessa após reunir o que lhe restava de coragem.
— Absolutamente.
Aquela resposta, entoada de modo tão firme, era tudo o que a moça precisava para seguir em frente. Antes, decretou:
— Espero não me arrepender disso.
E avançou sobre o rapaz, colando os lábios nos dele em um beijo lascivo e desesperado. Ele, embora pego inicialmente desprevenido, logo correspondeu ao gesto e passou a conduzir a situação.
O encontro das bocas se mesclou à dança corporal efetuada por ambos. Em dado instante, Vanessa enlaçou as pernas em volta do quadril de Inácio, que a conduziu escada acima.
O destino: o quarto daquela residência, palco de tantas horas de amor que, um dia, eles próprios protagonizaram.
Mais tarde, Vanessa despertou. Inicialmente, não reconheceu o lugar em que estava exatamente, mas um rasante em sua mente logo a fez se recordar dos últimos momentos antes de entregar-se ao sono.
E que momentos!
Chegou a se questionar do porquê ter traído Inácio. Como fora tola! Era só ele que a completava. Só ele que, mesmo que estivesse na pior, tentava fazê-la sorrir. Só ele a compreendia. E embora tenha se envolvido com outros homens, era só ele que tinha um jeito peculiar de lhe dar prazer.
Também se lembrou do que escutara mais cedo. Sério que o pai – aquele maldito – duvidava de sua masculinidade? Os instantes que teve junto a ele naquele dormitório provavam justamente o contrário. Inácio sabia ser dominador e carinhoso ao mesmo tempo. Detalhes não eram necessários, mas, em suma, a experiência sexual que teve ao lado do seu homem foi uma das melhores, senão a melhor de todas. Bem que diziam que brigas, desentendimentos e desencontros davam um quê adicional ao ato...
E por falar em Inácio, onde ele estava? Só foi aí que Vanessa percebeu que estava sozinha. A completa escuridão que dominava o cômodo não foi impeditiva para chegar a essa conclusão: a ausência de um calor humano a abraçando e a preenchendo era mais do que nítida.
Ela o chamou, porém não obteve resposta. Chamou de novo e nada. Sua intuição afirmou que a casa, e não só aquele quarto, estava vazia.
Sem pestanejar, ela, ainda nua, se enrolou entre os lençóis e se ergueu. Tateando as mãos pela parede, acendeu a luz, o que ocasionou um leve incômodo nos olhos.
Averiguou o ambiente e não demorou para ver que uma nota ali se encontrava. Com certa ânsia, agarrou o papelzinho e se pôs a lê-lo.
Meu amor,
Quase havia esquecido-me que tinha uma consulta marcada para hoje, por isso, parti para esse compromisso.
Não quis acordá-la: estavas linda a dormir. Tão serena! Tão sensual! Tão minha! Portanto, faltou-me coragem para tirá-la do mundo dos sonhos.
Por favor, permaneça na minha casa, passe a noite comigo, se esse for o teu desejo (porque o meu já o é), sirva-se com algo na cozinha e sente-te à vontade. A casa é tua assim como o meu coração.
Com muito amor,
Teu Inácio.
Um sorriso involuntário se fez em seus lábios. Ela leu e releu aquela anotação, enquanto determinados pensamentos ecoavam a sua cabeça. Após tanta coisa, Inácio não só a perdoava, como também a amava como antes, aliás, com muito mais intensidade.
Com isso, foi inevitável não tecer planos para o futuro. Talvez depois ele a pediria em namoro pela segunda vez e a resposta seria o sim mais sincero de sua vida. Ela não erraria novamente e passaria a ser a namorada mais compreensiva e também fiel que teria pisado na face da Terra. O relacionamento entre eles dois se solidificaria e, quem sabe, evoluiria para um casamento. Até mesmo futuros e hipotéticos filhos entraram nas confabulações da mente apaixonada e esperançosa de Vanessa.
Entretanto, contos de fadas não existiam.
E a prova disso se deu quando a universitária escutou algo soar naquele local. Reconhecia aquele barulho: era seu próprio aparelho celular. O toque, a seu ver, parecia ficar insistente a cada segundo passado. Ela, meio desesperada, procurava o objeto entre as roupas espalhadas. Finalmente, achou-o e, na tela, veio o primeiro tapa dado pela vida, a maldita...
Roberto estava telefonando.
Só foi ali que ela se recordou dele. Sabia que, ainda que nutrisse um grande carinho por ele, as coisas certamente iriam mudar...
Pensando nisso, será que Roberto sabia de sua ida à casa de Inácio? Então o rapaz estaria questionando-a por esse motivo? Apesar do caráter de seu relacionamento, Vanessa sabia que a reação do atual namorado não seria das mais brandas, caso soubesse o que ela fez...
Assim, sob movimentos trêmulos, optou por atender aquela chamada persistente.
— Vanessa, onde estás? — ele começou. Havia uma estranheza na entonação que vinha do outro lado da linha. Roberto não aparentava querer começar uma discussão, tampouco fazer cobranças. Com tão poucas palavras proferidas, ele parecia... desesperado?
— Eu... fui... dar uma volta...
Ela havia mentido, mas sob o pretexto de evitar um conflito direto. O timbre na voz do moço parecia querer lhe dizer alguma coisa a mais. Algo mais grave. O quê? Isso não tardaria vir à tona.
— Preciso que... venhas... onde estou.
Vanessa estranhou mais ainda. Em um contexto distinto, Roberto a pressionaria até que lhe fosse respondido, sem demonstrar hesitação, o que havia interrogado, mas não foi o que ocorreu.
— Onde? — ela indagou. Sua intuição estava pressentindo que uma espécie de cataclisma estava por vir.
E, de fato, estava...
Quando lhe foram as passadas as coordenadas, Vanessa prontamente se vestiu e partiu daquele sobrado depressa. Em nenhum momento seus caóticos pensamentos deram sossego.
Felizmente, o lugar dito por Roberto não era longe, o que permitiu que ela chegasse rápido. Tratava-se, na verdade, de um beco, o qual se situava numa rua que era relativamente conhecida pelos universitários em geral. Já estando ali perto, avistou uma pequena multidão, com destaque para o rapaz que havia lhe telefonado minutos antes e... uns policiais?
Seu coração acelerou e o desespero a dominou, mesmo que não soubesse a que isso exatamente se devia...
Ainda.
Guiada por um terrível sentimento e esgueirando o corpo entre alguns daqueles curiosos, ela se aproximou de Roberto, que a encarou abatido e com os olhos avermelhados. Ele soltou um suspiro sofrido e, sem dizer nada, apenas apontou para uma direção específica.
Foi aí que tudo ficou às claras.
Uma grande lixeira retangular e feita de metal encontrava-se aberta, de modo a comportar vários sacos contendo resíduos. Porém, não foi isso o que lhe chamou a atenção, e sim... aquilo.
Dois corpos... femininos...
Mas não quaisquer corpos, e sim uns que ela conhecia bem...
Leane e Luane.
Realmente, contos de fadas não existiam.
Notas do autor:
Esse capítulo serviu para aprofundar ainda mais a história, ficando claras algumas coisas, como é o caso da traição de Vanessa para com Inácio, por exemplo. Eu disse que a protagonista aqui tinha um mel com os homens, mas quem diria tudo o que ela aprontou, não?
E que finalzinho mais ingrato! Esperavam que tivesse acontecido uma morte em dose dupla, de ninguém mais e ninguém menos que justamente as amigas de Vanessa? Será que essas mortes têm a ver com a de Cristiano? É aquilo: o enredo aqui dá uma resposta e lança mais dez perguntas de brinde rsrs. Voltaremos com a nossa programação de versos e sangue em breve! :)
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