02. Eles e eu
Duas semanas atrás
Vanessa foi uma criança normal, uma adolescente normal e, até certa altura, uma jovem adulta normal. Desconforto e sofrimento eram coisas que ela pouco conhecia em sua vida.
Vinha da cidade de Porto e de uma estruturada família de classe média. Seus pais a incentivavam tanto para os estudos que nunca sequer trabalhou. Esse apoio foi crucial para que a moça conseguisse uma vaga na Universidade de Lisboa. Devido à distância entre sua cidade natal e a capital, acabou tendo que morar perto da faculdade. As despesas que tal situação ocasionava eram obviamente arcadas pelos seus progenitores.
Vanessa não se sentia a pessoa mais inclinada para a área que escolheu cursar. Ainda na escola, tinha sérias dúvidas quanto ao que seguir. Por meio daqueles famosos testes vocacionais, o resultado foi justamente Psicologia – o que ela própria achou um tanto inusitado – e, ao se deparar com a grade curricular, parte de si a fez ter certa simpatia pelo curso.
Ela só não esperava ter que lidar com disciplinas que mesclavam Biológicas e Humanas. Nunca foi uma aluna excepcional no que se referia às Ciências Naturais, muito menos quanto à História e afins. Contudo, o Ensino Superior, por mais denso que fosse, também não era nenhum bicho de sete cabeças. Assim, precisaria muito mais que uma Anatomia ou uma Psicanálise para fazê-la abandonar tudo e sair se descabelando pelas ruas lisbonenses.
Mas se tinha uma coisa que Vanessa gostava muito na universidade era a parte social da coisa. Óbvio que os estudos e as tarefas que lhe eram delegados a consumiam, porém, sempre havia um tempinho para uma reunião entre os amigos, uma breve bebedeira aqui ou ali e, na melhor das possibilidades, as festas para os calouros, as quais sempre ocorriam no início de um semestre letivo e ela fazia questão de não perder.
Desse modo, as coisas efetivamente se iniciaram com o advento de um novo semestre.
Encontrava-se ela na festa de boas-vindas aos novatos em uma república destinada a alguns dos estudantes da ULisboa. O local era um sobrado, grande, com os quartos dispostos na parte de cima, enquanto a sala e a cozinha se encontravam no piso inferior.
A propósito, Vanessa era uma convidada especial daquele evento, pois era ninguém mais e ninguém menos que a namorada de uma das principais figuras tanto da república quanto da universidade em si: Roberto Cardoso Juarez.
Tratava-se de um sujeito bem aparentado, dono de longos cabelos da cor loira-escura e de pele clara. Além de ser um dos destaques de sua graduação – Filosofia –, ele era simplesmente um dos principais líderes do movimento estudantil, de modo que tinha a sua popularidade.
Vanessa, que já meio que o conhecia desde que ingressou no Ensino Superior, foi ter um contato mais próximo, em meados do seu terceiro ano de graduação, ao se aproximar um pouco justamente do movimento estudantil. Poderia se dizer que, ao vê-la, Roberto foi tomado por um sentimento de paixão à primeira vista. Não deu em outra: os dois logo começaram a se relacionar.
Com isso, certos acordos foram estabelecidos entre o casal. O principal deles mexia com algo no âmago de Vanessa que ela não sabia explicar, tampouco verbalizar. Talvez por causa do curso que frequentava, Roberto passou a ter contato com certas ideias, algumas razoáveis, outras... controversas. Uma delas era o fato de ser adepto do chamado amor livre. Trocando em miúdos, ambos tinham a liberdade de ficar com quem quiserem.
Isso, ao menos, na teoria.
Passava das nove horas da noite. A república estava cheia, o que não impediu de Vanessa conseguir um flagra. Ao pegar uma bebida na cozinha, avistou seu namorado na sala. Só que ele não estava sozinho. Encontrava-se acompanhado – muito bem acompanhado – de uma garota..., a qual beijava.
Não era um beijo casto. Na verdade, Vanessa teve a impressão de que, a qualquer momento, Roberto engoliria a moça tamanho furor que ele empregava no que deveria ser um simples ósculo.
Para variar, algo se revirou dentro daquela que testemunhava tal cena. Parecia um... incômodo? Ciúmes? Mas era o próprio Roberto quem vivia dizendo que as pessoas, e não só ela, deveriam "desconstruir esse sentimento, que é tóxico para quem sente e para quem ele é direcionado" ...
Ela respirou fundo – afinal, não era a primeira vez que testemunhava aquele tipo de situação – e girou os seus calcanhares, decidida a provar um pouco daquela bebida que parecia ser de procedência meio duvidosa.
No entanto, seu plano foi por água abaixo.
Mal tinha se virado e esbarrou em algo, aliás, alguém. O recipiente, contendo o líquido alcoólico, se espatifou no chão.
— Raios! — Vanessa praguejou ao mesmo tempo em que se abaixou, intencionando dar um jeito na pequena bagunça que havia sem querer causado.
— Oh! Que desastre! Embora um dos moradores daqui não mereça que isso seja limpo.
Aquela voz!
O tempo para Vanessa parece ter parado. Por alguns segundos, ficou cabisbaixa, tomada pelo receio de encarar quem estava bem diante de si. Ao tomar enfim coragem, viu.
As madeixas curtas e escuras – as quais contavam com uma pequena franja lateral –, olhos negros, tez clara, quase pálida, porte meio magro e meio atlético e a velha aura taciturna combinando com o visual, que, para variar, baseava-se em trajes enegrecidos, eram características inconfundíveis.
Ele...
Inácio de Sá Brito.
Colega de turma de Vanessa, mas, além disso..., seu ex-namorado.
Estiveram juntos durante praticamente o primeiro ano de curso de ambos. O relacionamento ia bem, porém, por algum motivo, terminaram. Vai ver foi a ingrata rotina acadêmica, que tinha o poder de minar vários amores por aí. Vai ver houve algo a mais.
— O que estás a fazer aqui? — ela perguntou enquanto se levantou abruptamente.
— É festa para os novatos. Qualquer veterano está automaticamente convidado — ele respondeu erguendo os ombros, como se estivesse proferindo a coisa mais natural do mundo. Seu timbre era rouco e com um quê de suavidade.
— O meu namorado, que mora nesta casa, não gosta de ti. Sabes disso.
Inácio olhou para os lados e, com um manear de cabeça para uma direção específica, retrucou:
— Em contrapartida, ele gosta muito das meninas da faculdade...
Mais uma vez, Vanessa teve que olhar para Roberto, ainda entretido naquele beijo lascivo. Houve um novo suspiro da parte dela e uma nova resposta:
— Todos sabem que o nosso relacionamento é aberto...
— Aberto só para ele, pelo visto — Inácio a interrompeu. — Todos falam "Roberto flerta, beija e até relaciona-se de um jeito mais íntimo com várias raparigas, ao contrário da namorada" ...
— O que estás a insinuar? Eu não me relaciono com outros homens porque... eu não quero!
— Não queres ou ele não permite?
Vanessa paralisou. A indagação vinda do rapaz fora bem repentina, a seu ver. O instante de pausa dela foi o gancho para que Inácio prosseguisse:
— Ouvi dizer que, na festa para os novatos do período passado, vocês dois brigaram porque um rapaz ficou a conversar contigo por um tempo que ele próprio julgou como além do necessário.
— São... só boatos...
Vanessa estava arriscando, porém..., Inácio estava falando a verdade! De fato, ela e o namorado haviam tido uma acalorada discussão pelo motivo citado, mas ela também não iria dar o braço a torcer.
— Engraçado... — ele continuou. — É um "boato" que se comprova a cada dia que passa, a cada atitude dele e a cada falta de atitude da tua parte.
— Eu não tenho que te dar satisfações!
Foi a vez de Inácio se calar, não porque não tinha exatamente o que dizer, mas porque ele não queria engatar uma briga desnecessária. Por isso, tentou com um tom mais apaziguador:
— Vanessa, eu...
E ele foi se aproximando. Os braços meio abertos deram a impressão de que queria oferecer um apoio e, se bobear, um abraço. Por um momento, Vanessa se sentiu tentada a ceder ao possível gesto. Nesse ínterim, notou discretas olheiras no rosto dele e, apesar de ele estar vestindo um casaco, era perceptível algo em sua mão e que parecia se estender para o braço. Parecia uma... marca?
Todavia, a racionalidade voltou à garota, que se manifestou:
— Inácio, não! Por favor...
Novamente, ele travou e a considerou. Sob um aceno sofrido de cabeça, apenas soltou um "Está bem..." e foi se afastando.
Estando sozinha de novo, Vanessa sentiu os seus olhos com um princípio de ardência. Sem embargo, não choraria ali, afinal, estava numa festa.
O que ela faria então?
Roberto ainda estava agarrado com uma rapariga oferecida qualquer, tal como, certamente, seu amigo Cristiano deveria estar fazendo o mesmo. Leane e Luane, suas outras amigas, não haviam comparecido à festa, alegando um resfriado.
Foi assim que Vanessa resolveu tomar mais doses de álcool – seu único e melhor companheiro para aquela hora.
E por falar em horas, elas foram passando rapidamente. Quando deu por si, Vanessa notou as pessoas se dispersando do local. Não teve tempo para refletir muito sobre isso, já que um par de braços a flanqueou e a conduziu para a parte de cima daquele sobrado.
Era Roberto e ele a estava levando para o seu quarto. Entretanto, pela carranca que ele apresentava, não parecia que os dois iriam fazer coisas que os namorados realizavam entre quatro paredes...
— O que deu em ti para conversar com aquele calhorda? Aliás, o que ele estava a fazer aqui? — ele começou assim que chegaram ao dormitório.
Apesar de ter ingerido uma quantidade razoável de etanol, Vanessa não se encontrava embriagada, de maneira que suas faculdades mentais ainda estavam dentro do limite da consciência e da cognição. Respondeu:
— Não sabia que ele estava aqui até eu ter literalmente esbarrado-me com ele. Não chegamos a conversar, foi apenas uma breve troca de palavras e logo dispensei-o.
— Que seja! Os nossos amigos não gostam dele, eu não gosto dele, e tu não deverias gostar dele. Não tens que dar abertura para o estrupício do teu ex!
Os últimos dizeres de Roberto acenderam algo no íntimo de Vanessa, que, munida de coragem, deu uma réplica ousada:
— E tu? Podes ficar aos beijos com uma garota diferente por semana, quiçá por dia?
Ele travou, um tanto chocado, mas logo rebateu:
— Não sejas tola! O nosso relacionamento é aberto...
Vanessa, que estava um pouco afastada de Roberto, aproximou-se e, com a voz meio sussurrada, disparou:
— Para nós dois ou... só para ti?
— O... quê?
— Na festa do período passado, fizeste a maior cena por causa de um rapaz que apenas estava a conversar comigo. E detalhe: esse rapaz não era o Inácio, que, até onde sabemos, nem estava nessa festa.
Por poucos segundos, Roberto ficou sem ter o que falar. No entanto, um clarão se fez em seus pensamentos, que foram verbalizados:
— Então era isso que o teu ex estava a tratar contigo?
Os olhos de Vanessa esbugalharam diante da sagacidade do namorado, que ainda se pronunciava:
— Meu amor, tu não vês que aquele infeliz quer nos separar? Nós mal pisamos neste quarto e já estamos a nos agredir com palavras!
— Mas tu que começaste...
Ela não pôde completar, pois Roberto a tomou em um abraço para daí depositar beijos ao longo de sua face, enquanto sussurrava:
— Não precisamos discutir, ainda mais nesses termos, coração. E se te ofendi de alguma forma, peço perdão! Perdão! Perdão! Perdão!
E quando ele iria colar os lábios dele nos dela, a moça se afastou bruscamente.
— Não! Por favor... — ela disse. — Não estou, aliás, não estamos nos nossos melhores juízos. Eu... vou para a minha casa.
Vanessa saiu em disparada, ao passo que Roberto foi em seu encalço, clamando pelo seu nome.
A sorte, todavia, estava do lado dela, pois Vanessa avistou um rapaz de tez bronzeada, musculoso, careca e com a feição simpática. Era seu amigo Cristiano, que ainda se encontrava no sobrado.
Antes de engatar o namoro com Roberto, ela já tinha uma amizade sólida tanto com Cristiano quanto com Leane e Luane. O quarteto se conheceu poucos dias após o ingresso de cada um na universidade e, no decorrer do tempo, os vínculos entre eles somente se fortaleceram. E quando, semestres mais tarde, Roberto entrou nessa turminha, foi muito bem acolhido.
Ironicamente, era com os amigos que Vanessa se sentia mais à vontade para se abrir e contar os seus mais profundos e íntimos segredos. Cristiano, por exemplo, era o típico amigo leal para todas as horas, principalmente as ruins. Era até surreal como ele se mostrava disponível para Vanessa, mesmo que nem sempre o estivesse de fato. Pensando bem, o olhar que ele, às vezes, lançava a ela era... diferente?
Voltando ao presente, Vanessa, sem pestanejar, se aproximou de Cristiano e fez um pedido:
— Leva-me para a minha casa, por favor!
Em poucos instantes, os dois viram Roberto descendo as escadas e ainda chamando pela namorada. Houve, com isso, uma troca de olhares entre os três: Vanessa tornou a suplicar para o amigo e este fitou, de maneira sugestiva, o outro rapaz, que compreendeu, deu um suspiro e retornou para o seu dormitório.
No caminho, Vanessa relatou a Cristiano acerca da briga que teve com o namorado, chorando e recebendo conselhos no processo.
Não demorou para que eles chegassem à porta da residência da moça. Ali, ela agradeceu a gentileza do amigo e se despediu dele.
Porém, veio uma surpresa.
— O meu coração fica partido ao ver-te assim, Vanessa — afirmou Cristiano.
Ela, que já estava de costas, se virou. Com um meio sorriso, disse:
— Tu a falar essas coisas? Isso não se vê todo o dia.
Cristiano era o típico pegador incurável. Sendo graduando em Educação Física e dono de um porte físico robusto – não à toa, era apelidado de Apolo, o mais belo deus grego –, chamava a atenção de muitas pessoas, especialmente das mulheres, com quem muitas vezes se relacionava, mas sem levar as coisas muito a sério.
— O Roberto fica com várias e aposto que ele diz palavras bonitas para ti.
Surpresa com a resposta dada, Vanessa intencionou retrucar, mas foi cortada:
— Já sei! Já sei! Vais dizer que a sua relação com ele é aberta... Eu pelo menos estou solteiro e assumo isso!
— Mas o que é isso? — Vanessa se exasperou. — Que tipo e amigo és tu ao falar do Roberto desse jeito e sem dar chance para ele defender-se?
— Sou do tipo que não gosta de ver os meus amigos infelizes. — Fez uma pausa. — Do tipo que não gosta de ver-te infeliz...
De imediato, Vanessa não havia captado o significado por trás dos dizeres do rapaz. Contudo, um rompante de lucidez a preencheu ao sentir as mãos firmes dele em seu rosto e ao ouvir o seguinte:
— Nunca percebeste?
— O quê?
— Raios, Vanessa! Sinto algo a mais por ti!
Um filme, de repente, se fez na mente de Vanessa. Então era por isso o comportamento atípico dele quando estava próximo de si. Os gestos, os olhares... Tudo fazia sentido! Confusa, ela respondeu:
— Não faz sentido! Tu sais por aí com tantas...
— Que pouco, ou melhor, nada significam para mim.
— E por que não me falaste antes?
— Não sei... — Cristiano coçou a cabeça. — Logo no começo da faculdade, tu estavas com aquele idiota do Inácio. Aí depois... — O gesto aflito vindo de Vanessa não permitiu que ele completasse a sentença. — Vês? Sei de coisas que nenhum outro homem sabe de ti, e jamais te julguei por isso, inclusive acobertei-te! — suspirou. — Por fim, veio o Roberto, que, eu juro, considero como um amigo de verdade..., mas não posso, não consigo mais lutar contra esse sentimento que só cresce no meu peito!
Silêncio, o que foi a deixa para que, furtivamente, Cristiano se aproximasse de Vanessa. Quando ela, ainda atordoada com o que acabara de escutar, voltou a si, percebeu o amigo centímetros – não! Milímetros! – mais próximo.
Talvez o álcool tenha sido seu amigo (ou inimigo?) naquela mesma noite. Por um momento, a imagem da pessoa à sua frente se confundiu. Sua mente, tão traidora e tão traiçoeira, estava lhe pregando uma peça. Primeiro, ela enxergou Roberto, cuja expressão mesclava mágoa e malícia; depois, viu... Inácio, o qual aparentava querer falar algo que ela não sabia o que era; por último, a figura real de Cristiano foi captada pela sua visão. Assim, veio-lhe um pensamento:
"— Por que não? Afinal, estou numa relação aberta mesmo..."
Ele então avançou e os lábios de ambos se encontraram em um beijo que começou casto, mas que evoluiu para algo desesperado. Notando que as coisas poderiam tomar proporções que não seriam mensuráveis por ambos, ela interrompeu o gesto, assustada e arrependida do impulso que a dominou por tão poucos instantes.
Não houve oportunidade para sequer palavras de despedida, pois Vanessa cerrou a porta rapidamente e saiu correndo até o seu quarto.
Teria sido sensata tal atitude impensada?
Provavelmente não.
Aquela noite estaria marcada para sempre no coração de Vanessa, não porque havia se chocado com a declaração do rapaz, tampouco porque ficara mexida com o beijo, mas sim porque...
... Seria a última vez que ela veria Cristiano com vida.
Notas do autor:
Primeiro capítulo centrado em um flashback mostrado. Outros personagens importantes foram aqui apresentados e, por falar neles, Vanessa tem um mel com os caras, né? Rsrsrs enfim, ao que tudo indica, a primeira vítima também foi apresentada e é justamente um dos melhores amigos de ninguém mais e ninguém menos que a própria protagonista. Quem diria, não? Embora falte mencionar como Cristiano morreu e informações afins, algo que será detalhado em breve. Até mais!
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