2 - Caçulinha
Minha mãe era enfermeira e estava de plantão aquela noite, o que fazia dos meninos os reis do castelo!
A televisão exibia uma animação que eu não tinha mais idade para assistir, mas me arrancava risadas generosas.
O celular acendeu de novo. As mensagens não paravam de chegar. Naquele momento não queria iniciar uma conversa.
Uma tigela de pipoca estava sobre uma barriga de pijama enquanto pernas ficavam em cima de mim. É muito folgado mesmo!
De repente, as pipocas desorientadas enfrentaram um terremoto, o garoto se sentou num rompante.
— Você viu o circo?! — olhos esbugalhados de animação.
Continuei mastigando tranquilamente, me perguntando se seria possível aqueles olhos escuros acabarem saindo das órbitas se eu lhe desse tempo.
Guilherme era uma cópia minha, moreno de pele e cabelo, e nós dois, réplicas do pai. A minha mãe sempre dizia que fora usada apenas como incubadora e nada mais!
— Você viu?!
— Todo mundo viu! Quem não repararia numa tenda listrada subindo em direção ao céu que apareceu do nada?!
— A gente pode ir? O Davi disse que eles têm malabaristas e mágicos e contorcionistas e anões e espadas e facas voadoras e maçãs com chocolate e...
— Já entendi! Já entendi. — ele nem respirava entre cada "e" . — Já entendi. É um circo!
— Podemos ir? Diz que sim! Diz que sim!
— Circo é coisa de criança.
— Mas eu sou criança!
— Só quando convém! Me lembro muito bem dessa mesma boca afirmando que você já era crescido quando passou o meu barbeador na cara!
O sorriso mais descarado de dentes de leite apareceu e o moleque levou instintivamente a mão ao queixo. Tinha subido no vaso sanitário e depois em cima da pia e então pegado o que queria no armário.
— Se repetir isso, já avisei! E você não tem barba. O barbeador serve exatamente para tirar a de quem tem.
— No circo tem uma mulher com barba! — o garoto retomou. — E a barba dela é grande como a juba de um leão! — os braços abertos em um gesto circular ao redor da cabeça. Que exagero.
— Assustador!
— E domadores de leões. Com chicotes. E tigres! Mas não são de verdade. São origamis de metal.
— Origamis?! — não pude conter a surpresa.
— Mas eles se mechem e rugem e saltam e fazem acrobacias.
— Isso parece realmente interessante. — confessei.
— Que dia a gente vai? Amanhã?
— Não. — já sei! — Tenho medo de palhaços.
— Jura?! Eu pensei que os bombeiros não tivessem medo de nada.
— Mas é claro que têm. — o medo te deixava alerta, atento. — E o meu, são palhaços.
— Talvez lá não tenha. — arriscou com esperanças.
— Todo circo tem palhaço. Vou ficar aqui mesmo, dormindo.
— Mas, Hugo! — o resmungo foi acompanhado de um movimento brusco que fez a tigela acabar no chão de cabeça para baixo.
— Você vai limpar! — cuspi na hora.
— Mas foi sem querer!
— E daí?! Vai limpar assim mesmo!
— Sozinho?!
— Mas é claro!
— A mamãe ajudaria.
— Eu não sou a mamãe. — fui pegar uma sacola de lixo.
— Gosto mais quando é ela no comando. — a sacola foi arrancada da minha mão.
— Que pena! — sorri. — E não coma as pipocas do chão!
Depois do filme, ajeitei a criança na cama e o relógio do Home-Aranha me acusou.
— Por que a Júlia não vem mais aqui? — o caçula atacou.
As mensagens ainda não respondidas queimaram no meu bolso.
— Fez o dever de casa? — contra-ataquei.
— Depois do almoço. Você tava roncando feito um porco morto na sua cama.
— Muito bem. E porcos mortos não roncam! — cutuquei suas costelas. — Agora vê se fecha esses olhos, amanhã cedo tem aula.
— Ela tava chorando no telefone.
Um ruído cansado saiu da minha garganta.
— E é culpa minha.
— Por que ela tava...
— Dá para calar essa matraca?! E não é tava, é estava.
— Não! Por que fez ela chorar?
— Porque eu não posso ser a pessoa que ela quer. — não sabia se essa resposta servia para um moleque de seis anos, mas era a verdade.
Deve ter servido, porque ele se ajeitou outra vez sob as cobertas.
— Não conta para a sua mãe que está indo deitar quase à meia-noite. — parei na porta. — Se ela perguntar, diz que foi às dez.
— Só se me contar uma história!
— Estou sendo chantageado pelo meu irmão caçula?
— Uma história ou o circo.
Apaguei a luz e me acomodei na cama estreita.
— Então, qual vai ser?
— Aquela que você foi o Homem-Aranha.
— Isso não é uma história de ninar. — ri alto.
Os bombeiros fizeram a entrada no prédio pelo cabo aéreo a partir do prédio vizinho. Foi um dia feliz. Eram esses que faziam todos os outros valerem a pena.
— Também vou ser bombeiro, como você.
— Ou talvez arrume um emprego mais — seguro — divertido, como... engenheiro!
— Quero salvar as pessoas.
— Dá para fazer isso sendo médico.
— Bombeiro.
Engoli em seco. Lembrei do folheto no meu quarto. O sonho da minha mãe era que eu mudasse de profissão. Em momentos assim, compreendia melhor como ela se sentia.
— Os médicos são ricos. — tentei outra vez.
— Vai contar a história ou não?
Não pude não rir daquela cara de impaciência.
Que fofo - e endiabrado! - esse caçulinha, não é não?
Se gostou não esquece da estrelinha. Bjos!
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