Capítulo 9
O Casarão Queiroz se erguia como um monumento em meio à floresta. Não era tão longe da cidade, mas longe o bastante para parecer o único vestígio de civilização daquele ponto emergente do pantanal. Era imensa, comprida, pontuda. Parecia querer tocar o céu, mas não de um jeito bom. Um arrepio subiu pela sua espinha enquanto esperava alguém abrir a porta de entrada. Fernando bateu, ela ficou paralisada assim que chegou.
A casa parecia a personificação do Alexandre. Imponente, altiva, rígida como uma pedra. Talvez algumas de suas paredes fossem mesmo de pedra. Não sabia dizer quantos andares havia acima do térreo, dois, talvez?
Quem abriu a pesada porta de madeira de mogno foi um homem careca, de meia-idade, com bolsas abaixo dos olhos. Trajava uma camisa impecavelmente branca, sem adornos, e uma calça de lã com aparência antiga.
— Bom dia! Sejam bem-vindos — disse enquanto fazia com uma das mãos um movimento de convite.
Fernando entrou, respondendo a saudação do homem, completamente alheio a qualquer sentimento especialmente desconfortável. Era só trabalho, afinal. Jenna precisou forçar as próprias pernas a se moverem, sentindo se instalar em seu estômago um nervosismo atípico.
O homem-sem-nome guiou-os para uma antessala onde deveriam aguardar o prefeito. Fernando começou a preparar a parte técnica para a entrevista — câmera, iluminação, microfones.
O interior do Casarão era algo completamente transcendental. As paredes, decoradas com boiserie e pinturas em molduras quase tão grandes quanto uma pessoa, eram tingidas de um azul profundo, como o fundo do mar. Uma pele cheia de história e preferências, exigências de como ser tocada. Uma áurea antiga e carregada preenchia o ambiente no que, assustada, Jenna pensou se tratar de uma presença. Como se a casa tivesse uma personalidade própria e, não bastasse isso, fosse misteriosa e cruel, com segredos em cada corredor.
Havia um grande lustre pendendo sobre eles, acima dos sofás coloniais que sobreviveram a mais décadas de existências do que os dois jornalistas juntos. A luz do sol entrava por uma grande janela e iluminava todo ambiente, mas era uma luz amarelada, que despertava em Jenna uma estranheza inquietante. Aqui é o passado.
— Jenna? — Fernando estalou os dedos ao redor do rosto dela. — Você dormiu?
— Não. — Piscou os olhos e massageou as têmporas. — É que esse lugar me assusta — disse sem pensar.
Fernando riu.
— É uma baita casa, não? Imagine como deve ser viver aqui.
Jenna imaginou. Só havia conhecido um corredor e um cômodo daquele lugar, mas sabia que preferiria morar na sua casa minúscula e sem garagem do que dentro daquela monstruosidade bonita. Tão bonita que, por falta de uma palavra melhor, lhe despertava até certa inveja.
— Parece que ela está olhando para a gente.
— A casa? — Fernando riu novamente. — Você é uma graça.
Ele achava que ela estava brincando.
Não estava.
A leveza de Fernando fez com que Jenna se acalmasse. Observou que qualquer que fosse o sentimento que a angustiasse, não era sentido pelo rapaz. Então não devia haver nada de errado ali. Devia haver algo de errado nela. Estava cansada, impressionada com as últimas pesquisas e nervosa porque aquela seria a primeira vez em que falaria diretamente com Alexandre.
Almeida lhe colocou naquela situação para puni-la, irritá-la. E conseguiu. A pior parte era que, avisada de última hora, Jenna não tivera tempo para preparar perguntas apropriadas. A entrevista seria voltada para a possível recandidatura de Alexandre na eleição do ano seguinte. Mas não era sobre isso que ela queria o inquerir.
— Jenna Fernandes e Fernando Araripe!
Alexandre adentrou o ambiente, com um sorriso largo e gestos expansivos.
Jenna novamente se obrigou a levantar e cumprimenta-lo, ignorando o formigamento que se espalhava por seu corpo. Ele sabia o seu nome.
— É um prazer, senhor Queiroz — disse sorrindo.
— Acredite, é todo meu. — Estendeu o cumprimento para Fernando também.
— Podemos começar?
— Sim, claro. Arthur, venha!
Então o menino entrou, seguindo os passos do pai. Jenna e Fernando se entreolharam, aquilo não estava no roteiro.
Arthur se sentou ao lado do pai, dirigindo a eles um sorriso tímido. Os dois conseguiam sentar eretos sem demonstrar esforço para isso. Jenna forçou os próprios ombros a não caírem sobre seus peitos.
— Está rodando — Fernando sinalizou.
Ao menos não estavam ao vivo.
— Estamos aqui com o atual prefeito de Varsinas, Aleixandre Queiroz, e seu filho Arthur Queiroz — Jenna começou, olhando para a câmera. — Alexandre, quais são suas expectativas para as próximas eleições? Ouvimos rumores de que o senhor não pretendia uma recandidatura, é verdade?
Jenna realmente ouvira rumores sobre aquilo. Mas cada palavra saiu de sua boca carregada de insegurança. Odiaria estar falando sobre uma fake news mal elaborada. Odiava passar uma impressão antiprofissional. Talvez a esta altura odiasse o próprio Almeida por coloca-la naquela situação.
— Primeiramente, é um prazer falar diretamente aos cidadãos varsilienses através do Jornal Sentinela, e estar aqui com você, Jenna. Podemos começar com uma afirmativa, em parte.
O alívio desceu pela garganta de Jenna como um vinho suave.
— Então este é seu último mandato?
— Penúltimo, se assim Varsinas permitir. — Sorriu. — Eu ainda tentarei uma recandidatura, mas depois disso me retirarei da direção política da cidade.
— Sem dúvida esta notícia pegará os eleitores desprevenidos. Há algum plano de sucessão ou candidato recomendado?
Arthur se moveu lentamente, numa espécie de meio sorriso. Jenna mal notara a presença do garoto, tamanha era a atração gerada pela figura de seu pai. Notá-lo ali novamente foi o suficiente para Jenna perceber o real motivo de Arthur estar presente na entrevista. Vinculação de imagem. Claro que havia um sucessor em mente.
— Ainda é muito cedo para tal, nosso partido não tem nenhum candidato em mente até o momento.
A entrevista prosseguiu por mais alguns minutos, com Alexandre respondendo a todas as perguntas questionadas. Jenna também falou sobre a última manifestação na Ponte Sul, e Alexandre alegou que resolver essa problemática é sua prioridade no momento. Ele era bom. Usava as palavras certas, Jenna sabia que ele reconquistaria o público sem o menor esforço. Ela sabia que, se ele quisesse, teria a cidade em suas mãos.
Ainda que Jenna tentasse focar no motivo da entrevista, não conseguiu deixar de pensar em Alba. Ela teria trinta e quatro anos hoje. Será que Alexandre sabe que ela não é sua filha? Você não tem certeza disso, Jenna tentou livrar-se dos pensamentos intrusos. Como será que ele lidou com o luto da filha? Considerando o manuscrito, ela deduzia que o casamento com Cássia não foi o maior motivo de felicidade em sua vida. Mas talvez não tivesse sido tão ruim. Casamentos são complexos. Talvez ele até a amasse. Se havia alguma espécie de indiferença, quem poderia dizer que partiu de Alexandre quando, até onde sabia, foi Cássia quem se apaixonou por outra pessoa?
— Certamente o senhor participará do cortejo anual em homenagem à Alba. Este ano completa dezoito anos desde sua morte. Há algo que gostaria de dizer sobre isso?
A pergunta saiu de suas bocas sem ser processada por seu cérebro antes. Imediatamente Jenna se arrependeu e cerrou os lábios. Ela não deveria perguntar sobre isso. Ela sequer deveria ter usado a palavra morta. Morta. Alba estava morta.
Alexandre piscou algumas vezes. Pela primeira vez desde o começo da entrevista Arthur olhou para o pai, um tanto perplexo.
Um, dois, três segundos de silêncio.
— Participarei, claro. — Sua voz era contida, saudosa, dolorida. Ele engoliu em seco antes de continuar: — Não é o assunto mais fácil do mundo para mim, como devem imaginar, ou para meu filho. Há uma ferida aberta nesta família e diante disso só posso garantir que meus esforços são para que nenhum outro pai, mãe, ou irmão passem por dor semelhante.
Sentindo que aquela era um ponto final na entrevista, Jenna encerrou agradecendo.
Mesmo depois de Fernando desligar o equipamento, um desconforto pairava sobre o ambiente.
— Eu poderia usar o banheiro? — Jenna pediu. Não queria usar o banheiro, muito menos perambular por aquele casarão, mas queria desesperadamente quebrar o silêncio que entrava pelo seu nariz e boca a sufocando.
— Quarta porta à direita, seguindo o corredor principal. — Alexandre deu as direções.
Jenna deixou os três homens para trás. Ela estragou a entrevista. De qualquer maneira, Almeida poderia mandar retirarem a última parte, se quisesse. Suspirou.
Enquanto caminhava, tentou não focar na decoração do corredor, que a oprimia. Mas a terceira porta era diferente das outras, mais larga e arqueada, e estava entreaberta, deixando uma grande prateleira de livros que ia até o teto à vista.
Certificando-se de que não havia ninguém no corredor a espreitando, entrou. Era uma biblioteca. Era maior que a sala e a cozinha da casa de Jenna juntas. Além das estantes altas havia uma mesa retangular com quatro cadeiras, uma poltrona afastada e uma espécie de balcão perto da porta da entrada. Ao lado da poltrona havia uma grande janela de vidro, quase do tamanho da porta. Jenna se aproximou do balcão, com medo demais para adentrar todo o cômodo. O móvel era antigo, de madeira maciça, como tudo ali. Estava um pouco empoeirado. Ela passou os dedos pela superfície do balcão, deixando uma marca. Abriu uma das gavetas presentes na parte de trás do móvel. Papéis soltos. Abriu outra: Uma edição de luxo de Dom Casmurro. Continuou abrindo e fechando as gavetas, com uma curiosidade mórbida. Na penúltima gaveta, que era mais uma espécie de aparador, encontrou um livro com capa de tecido verde musgo e um escrito em dourado desbotado: Cássia Queiroz / Leituras de uma vida.
Jenna olhou para a porta. Ninguém. Ela não conseguiria levar o livro consigo sem ser vista, deixara a bolsa na antessala. Retirou o celular do bolso e fotografou as páginas. O livro parecia enumerar algumas leituras feitas por Cássia, assim como suas considerações, e Jenna se questionou se valia a pena correr risco por aquilo. Mas era algo sobre Cássia. Algo escrito por ela, do ponto de vista dela, algo que poderia revelar sua personalidade, sem que fosse um fantasma da narrativa de terceiros. Quem era aquela mulher? Eram muitas páginas. Jenna tentou fazer um vídeo, assim poderia pausar e tentar ler. Quando saiu da biblioteca encontrou o homem-sem-nome careca que parecia ser um mordomo.
— Onde fica o banheiro?
O homem a fitou, impassível.
— Na próxima porta.
— Obrigada.
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