13 de maio de 1999
Naquela noite, Celso Vilhena saiu mais tarde que o costumeiro para caçar. O hábito que era geralmente realizado na companhia de amigos e em noites frias de quinta-feira tornou-se mais frequente e solitário do que ele gostaria de admitir.
Calçou as botas, pendurou a espingarda nas costas e saiu pela porta do fundo. Atrás do quase abandonado galinheiro, que há mais de uma década servia apenas para guardar entulhos e atrair ratos, havia o estreito portão enferrujado que construíra para facilitar o acesso da esposa à propriedade, quando esta ainda conseguia sair da cama e percorria à pé o caminho até a escola primária, onde lecionava.
A lembrança parecia tão distante que não conseguiu captar os detalhes. Sabia que a esposa entrava por aquele portão, com a bolsa cheia de livros e os sapatos enlameados, e batia a mão no sino pendurado sobre a porta do galinheiro para anunciar sua chegada e ser recebida por ele.
A visão do portão enferrujado, coberto de tinta vermelha descascada e embolorada sempre o fazia reviver o passado. A reação era sempre a mesma: um rompante de nostalgia até ser violentamente atingido pela amargura. Há 4 anos sua esposa não perpassa por aquele portão, há 4 anos ela não sai do próprio quarto e há 4 anos Celso espera pacientemente pela sua morte.
Apressou-se em adentrar a floresta atrás dos muros do quintal. Percorreu a parte menos isolada — costumeiramente usada pelos vizinhos para encurtar o caminho até a cidade — até os galhos de cabreúva e açoita-cavalo invadirem a trilha, indicando que estava cada vez mais perto do coração da floresta, onde haviam mais espécies para caçar.
A preocupação com encontrar ou não um animal era puramente fantasiosa, já que muitas vezes voltava para casa sem nada. Caminhou lentamente e em silêncio na direção do rio, onde queixadas se reuniam em grupos de 30 a 50 animais. E seu único medo era ter a infelicidade de encontrar uma onça. Ele não podia morrer. Não antes dela.
A floresta podia ser assustadora à noite, apesar de frequentemente confortá-lo. Silenciosa, porém sempre à espreita. O vento chacoalhava as folhas nas copas carregadas e causava um farfalhar agradável, projetando sombras bruxuleantes pelo caminho fracamente iluminado pela luz da lua cheia. A mata se fechou sobre ele com galhos e cipós pendentes, tentáculos ressequidos que tentavam pará-lo, até que Celso avistou ao longe as primeiras queixadas ao redor do rio.
Segurou firmemente o pingente de cruz que carregava no pescoço, como sempre fazia antes de atirar, ainda que fosse para direção alguma. Tinha a sensação de que podia pedir permissão para ferir um animal, livrando-se da culpa.
Enquanto observava à procura da presa ideal, avistou filhotes. As fêmeas prenhas ou com filhotes eram sagradas na floresta, todos sabiam disso. As autoridades sabiam, os fazendeiros sabiam, a natureza sabia.
Apertou mais firme a cruz, tentando não formular a pergunta que o atormentava: não deveria também saber Deus que elas são sagradas? Porque foi ao dar a luz que sua Natália se foi. Agora ela está deitada sobre a cama em que a desposara 12 anos antes, onde tantas vezes oraram pedindo por um filho, para que o ventre de sua esposa fosse fértil como as águas do rio; mas sua alma não está mais lá. Apenas pele e ossos de um animal que ainda não descobriu que está morto.
Um casamento nunca é fácil, mas o seu foi satisfatório na maior parte do tempo. Eram felizes, lembrou com certa dificuldade. Apesar da demora em terem filhos, e de saberem que os vizinhos e membros da igreja que frequentavam confabulavam sobre as razões da esterilidade de Natália, dentro de casa eram muito felizes. E então a gravidez aconteceu. Natália ficou acamada como se estivesse doente, sentia-se mal o tempo inteiro e iam tantas vezes ao hospital que Natália perdeu o emprego. Não seria fácil prover para esposa e filho sozinho, mas Celso daria um jeito. Nunca se deixou amedrontar por isso.
Passavam horas fantasiando sobre como seria ter uma criança correndo pela casa, ajudando Celso na carpintaria ou recebendo aulas de matemática da mãe. Celso carregou a espingarda e acomodou-se atrás de uma árvore para espreitar as queixadas. A arma erguida e apontada para o grupo que predominantemente se encontrava dormindo ao pé das árvores ribeirinhas.
Uma queixada fêmea desfilou na frente da mira com seus filhotes, e Celso deliberadamente tirou a mão do gatilho.
A última vez que Celso viu a esposa consciente foi quando levaram-na às pressas para a sala de cirurgia. O bebê, descobrira no dia que era um menino, não sobreviveu. Ele saiu de casa em posse de uma esposa e seu filho para nascer. Voltara para casa sem nada.
Os filhotes de queixada se acomodavam ao redor da mãe preguiçosamente, roncando baixo. Celso retesou o dedo indicador tão lentamente quanto conseguiu, até voltar a sentir o gatilho, apontando para a cabeça da fêmea. A fêmea, preocupada em atender aos filhotes, de repente agitou-se e correu para dentro de arbustos, chamando os filhotes. As outras queixadas acordaram assustadas, guinchando alto e correndo em diferentes direções.
Uma onça, Celso pensou. Mas então ele ouviu o que as queixadas ouviram antes dele: gritos. Gritos estridentes que se espalhavam pela mata em puro desespero. Estava longe, abafado, entrecortado e ele não podia identificar o que a voz dizia, apenas soube que era a voz de uma mulher.
Buscou identificar a direção do som, sem sucesso. Parecia vir de todos os lugares. Um silêncio se seguiu até ouvir a voz outra vez:
— Pai, pai! Por favor, pai!
Celso tombou para trás com o barulho do tiro. O som ainda mais alto que o grito e que ensurdeceu-o por alguns segundos. No chão, tateou com os dedos trêmulos a espingarda que deixara cair e correu na direção de casa.
Passara a noite em claro, se perguntando o que poderia ter acontecido, mas não precisou esperar muito. No dia seguinte todos os jornais anunciaram o assassinato de Alba Queiroz, a filha do prefeito, encontrada parcialmente comida por feras por um dos caçadores.
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