XIII- MANHÃ DE RETORNOS
CAP. XIII. REVOLUÇÃO N°.150
O som de um velho piano encheu a pequena casa. Não vinha do velho gramofone, e muito menos, de um piano real. Era apenas uma melodia espalhada como num mar de sonetos. As ondulações de suas notas podiam ser sentidas ao tocar o chão de madeira frio, ao andar pelo curto corredor e ao observar o Relojoeiro em sua loja pela manhã.
A gigantesca biblioteca não estava mais ali. Abrira espaço para a singela loja de relógios. Modelos e mais modelos do mesmo item. Dourados, prateados, bronze e outras cores distintas. A destreza de suas grandes mãos era capaz de criar obras mecânicas de tamanha complexibilidade que um simples movimento podia mostrar suas inúmeras engrenagens folheadas se moverem no interior translúcido do que parecia um relógio de puro vidro. Peças tão pequenas e ainda assim, posicionadas perfeitamente por mãos que tinham o poder de se transformar em um monstro digno de pesadelos.
Ele não percebeu a presença repentina de Camélia na relojoaria. O sino acima da porta estava silencioso e com razão. Logo após um ataque, Camélia acreditava que demoraria muito para que alguém simplesmente decidisse comprar um relógio ou consertar um antigo. Entretanto, como sempre foi e sempre será, o destino é algo que nos faz manchar uma folha de papel amarelado tantas vezes ao tentar mudá-lo ou melhorá-lo que, sem nem perceber, assinamos embaixo do contrato inconscientemente.
O sino da porta tocou. Um homem de roupas queimadas entrou e se apoiou no balcão. Camélia, entretida com os relógios e seus tique-taques, não percebeu a presença do homem, assim como ainda não havia sido percebida.
— Nem ao menos teve a sutileza de mudar de roupa antes de vir? — disparou Knowmore de repente. — Não é como se ela fosse fugir.
— Cale a boca e me arrume alguma bebida — disparou o homem com a voz rouca.
— Água — rebateu.
Parada num canto, atrás do relógio de vidro, já tendo sido vista pelo canto do olho de Knowmore que agora se retirava da relojoaria para buscar um copo de água para o visitante, Camélia fitava cada ferimento do homem conhecido. Demétrio estava aos trapos, moribundo e cheirando a queimado. Sujo da cabeça aos pés, debruçado sobre o balcão exausto. Mirava os relógios de bolso abaixo do próprio rosto, nas gavetas de topo transparente onde estava deitado.
Sem muita demora, Knowmore voltou com o tão esperado copo. Demétrio o bebeu com dificuldade, como se aquele líquido tão transparente quanto vidro fosse pura aquardente.
— Você está um caos — magicamente, o copo estava cheio novamente. — Dê um jeito em si mesmo antes de vir buscá-los. Não é bom para sua imagem que sua esposa — sendo interrompido, quase foi possível perceber uma pequena fagulha de surpresa em seu olhar atento.
— Estou com saudades dela...
A sensação de sentir seu nome estar oculto naquela sentença, só fez com que seu coração batesse ainda mais rápido. Ele a deixava ansiosa como ninguém jamais deixara. A fazia delirar e sentir que podia perder tudo a cada segundo que passava. Sentia acima de tudo que um dia tudo findaria, como se já tivesse entregado todo o seu destino final nas mãos de um homem cujo caráter a fazia refletir sobre suas próprias decisões mais do que podia admitir. Era tão estranho se sentir nas mãos dele... se sentir dele.
— Demétrio — Camélia saiu de trás dos inúmeros relógios que serpenteavam pela pequena loja e se pôs bem à vista. O vestido vermelho que Knowmore lhe dera para trocar as roupas enlameadas da noite passada a faziam condizer mais com ele, do que com Demétrio.
Contudo, acima disso, ela precisava saber, mais do que tudo, se as palavras de Demétrio haviam sido realmente verdadeiras ou se as dizia da boca para fora por sua suposta ausência. Palavras tão simples, mas que ainda assim foram capazes de fazer corações palpitarem e borboletas roerem entranhas.
Num movimento rápido para driblar o balcão, apesar da perna claramente machucada, Demétrio a alcançou em instantes e a guardou em seu abraço mais firme e caloroso, um do tipo que jamais sentira na vida. As mãos arranhando levemente as costas dela demonstravam o quão verdadeiras aquelas palavras eram. Ele afundava sua cabeça entre o pescoço alheio se emaranhado em seus cabelos rebeldes da manhã sem nem se importar se estava sendo observado ou não. Só precisava sentir o cheiro dela de perto, de muito perto, pois nunca tivera essa oportunidade antes e sentia o arrependimento arder em seu peito como uma chama acesa.
Camélia, por sua vez, não sabia onde se agarrar ou tocar. Nunca foi abraçada de tal forma, com tamanho afeto e preocupação. Apenas se segurou na camisa cheia de cinzas dele e deixou que se emaranhasse cada vez mais. Estava destruído por dentro e queimado por fora, quase o caos em pessoa. Eram como se o aperto contra o pescoço dela quisesse indicar que havia pranto guardado ali há muito, mas mesmo assim, continuava a mantê-lo distante de todos os olhares e percepções. Uma conexão que ia além dos sentidos até então conhecida se tornou palpável no ar. Tanto, que Knowmore retirou seu olhar de ambos e passou a observar sua própria mão. Faltava algo ali, ou era a sua culpa que o fazia sentir aquelas borboletas?
Voltando à si pouco depois, Demétrio se afastou, com as orelhas vermelhas, tentando discernir o que ele mesmo tinha acabado de fazer.
— Peço perdão — declarou, por fim. — Não foi minha intenção envergonhá-la. Eu não deveria ter feito isso.
— Não foi vergonha nenhuma — mentiu, absorvendo o presente sentimento a cada respiração. Estava mais vermelha do que a cor vermelha do cabelo do homem do livro de Knowmore. Nunca havia sentido a presença de um homem tão de perto, todo o calor de um corpo humano e a necessidade de um toque para acalmar uma alma aflita. Não, ia muito mais longe do que uma necessidade qualquer, era um desejo por estar próximo e um pedido para que aqueles segundos se tornassem eternos, ao menos, na memória.
— Eu deveria preparar um chá antes de saírem? — interveio Knowmore, atento demais ao que acontecia, retornando aos próprios sentidos.
— Não será necessário — respondeu, a voz mais rouca do que o normal. — Há muito o que arrumar...
Cambaleando, se apoiou com uma das mãos no balcão mais uma vez. Segurava seus olhos, como se ardessem incontrolavelmente.
— Temos... temos que ir para casa.
Seu peito subia e descia a todo instante. Mal tinha fôlego ou equilíbrio para andar, mas continuava com a mesma determinação de sempre. A mesma que o arrastou para uma batalha por um território, por um povo egoísta e acima de tudo, por um pouco de paz para a própria esposa. Quando partira naquela madrugada sem saber se realmente voltaria, se sentiu verdadeiramente ligado à alguém. E agora que havia voltado, sentia mais do que nunca que ali era seu lar, onde podia se instalar e viver em paz consigo mesmo. "Família", sim, era essa a sensação correta. Por um instante, teve medo, pois soube que poderia não ter voltado. Tudo seria diferente.
— Que assim seja — concordou Knowmore, finalmente. — Mas gostaria que Conrad ficasse para uma observação mais meticulosa. Uma costela quebrada não é sarada do dia para a noite.
— Demétrio? — Conrad surgiu na relojoaria, de pé, com arranhões pelo corpo descoberto e sem nenhuma outra lesão aparente. Sem perna quebrada, costelas ou torções. Apenas o velho e bom Conrad.
Cada vez mais, Knowmore observava a cena com curiosidade. Um homem que poderia ter morrido na noite anterior ressurgira melhor do que imaginou e o outro que sequer conseguia se mover para o outro lado da cama, de repente, estava ali, entre eles, de pé e falando sem dificuldade alguma.
— Conrad — Demétrio se aproximou do amigo o recebendo com um abraço. — Sei que ainda está se recuperando, mas ao menos vá colocar uma blusa para cobrir esse peito magro.
Percebendo o pequeno erro ao ver Camélia envergonhada ao lado, Conrad buscou se cobrir com os próprios braços e olhar arregalado. Camélia não se sentia envergonhada por causa dele, mas preferiu manter o que lhe parecia ser mais plausível.
Poucos minutos depois, já haviam deixado a singela residência do Relojoeiro. Do lado de fora uma carruagem elegante aguardava, contrastando com os trapos que Demétrio vestia.
Ver aqueles olhos âmbar sonolentos mais uma vez era como se o desejo mais necessitado do coração se tornasse realidade. Camélia sequer entendia o significado daquele sentimento, mas mantinha-o perto do peito, acolchoado sobre as inúmeras incertezas que carregava consigo. Tantas dúvidas, medos e perguntas sem resposta a inundavam que seria difícil para ela dar início a qualquer conversa que fosse. Contudo, Conrad se adiantou.
— A batalha rendeu algum espaço? — se referia a Demétrio, sentado no lado oposto ao de Camélia.
— É difícil dizer. Não foi uma vitória, mas também não foi uma derrota. Apesar de que o estrago feito na mansão tenha sido uma.
— Já foi até lá? — a expressão de Conrad se encheu de uma mistura de pena e preocupação.
— Nada que não possa ser consertado. Foi inteligente vir em busca da proteção de Knowmore — concluiu, por fim.
— Sim, realmente foi! Camélia é uma mulher de pensamento rápido e coragem extrema! Ela sequer tremeu quando viu no que o Knowmore havia se tornado — não tinha sido o que aconteceu realmente, mas a animação dele era completamente genuína. Uma faísca de orgulho brilhou no olhar de Demétrio.
— É mesmo? Viu Knowmore sem sua forma monstruosa e não recuou?
— Na verdade... — antes que ela pudesse se opor às aventuras corajosas da imaginação de Conrad, foi interrompida.
— Sim! Isso não é incrível demais para se crer?!
— Sim, incrível demais para se crer — concordou simplesmente, com um pequeno sorriso travesso de canto.
— Mas o que faremos agora? César Magno tomou alguma medida diferente das usuais?
— Ele está brincando conosco como nunca, como se soubesse que esse joguinho diabólico terá um fim e que ele tem chance de sair vencedor.
— Não diga isso, Dem.
— Você sabe que é verdade. Às vezes a derrota parece iminente. Nem sempre o lado bom pode carregar a vitória.
Camélia não compreendia a conversa, entretanto, podia entender um pouco do que se passava. A situação daquela guerra estava longe de melhorar. E afinal, existe mesmo um vencedor numa guerra onde tanto sangue é derramado de ambos os lados? Pessoas não deveriam tomar decisões tão drásticas num momento de raiva, pois dali, só é plantada mais e mais raiva, sendo, por fim, cultivada e colhida. A mesma raiva que intensifica um confronto, é a mesma que torna o puro caos e tormento numa visão cotidiana. A anotação no livro de Knowmore não poderia estar correta. O caos é sempre a razão do tormento dos homens. Ao menos, foi o que Camélia pensou.
Ao chegar à mansão e encher os olhos com a destruição do local, Camélia se permitiu lacrimejar. A visão era perturbadora, causava uma dor no peito, uma pressão incompreensível. Parecia que tudo pelo qual Demétrio lutara, agora se encontrava em ruínas.
Era verdade o que Conrad bradara naquela madrugada: Demétrio lutava dando sua vida por todos aqueles homens que ainda assim criavam um motim dentro deles mesmos contra Demétrio deixando sua casa aos cacos. Nem mesmo a grande lareira fôra perdoada. Cada uma das belas taças foi quebrada. Os tapetes foram rasgados, as tapeçarias manchadas, os vinhos jogados contra as paredes, o corrimão destroçado, as janelas quebradas e cada ponto do que um dia parecia ser o lar de alguém, agora não passava de poeira, vidro e madeira destruída.
Camélia mal chegara e já não tinha uma casa, um lugar onde viver e se aconchegar. Duvidava da lealdade de seu marido ao mesmo tempo que não, numa mistura estranha de sentimentos, emoções e suspeitas. Buscava as respostas para suas indagações sozinha. Se vestia com a fachada de que não se importava, não sentia, não queria, não era, não... Camélia não sabia mais quem ela era de verdade, ou quem nasceu para ser. No entanto, ainda sabia que podia mudar o rumo de sua própria vida, pois não se sentia mais debaixo dos pés de seus pais e muito menos escondida pela sombra de sua irmã. Era ela em ascensão naquele terreno, naquela mansão e naquelas vidas. Era ela quem ditava o que acontecia e como acontecia. Se seria capaz ou não, estava disposta a descobrir.
— Demétrio — chamou-o, cheia de si e sem tempo a perder. Não podia mais permitir que fosse controlada todo o tempo por emoções que sequer entendia de onde vinham. Tomou o primeiro passo, como num beijo distanciado do destinatário. O nome clamado com delicadeza ressoando no coração alheio.
Conrad adentrou a mansão para averiguar os estragos por tempo o suficiente para que Camélia tomasse o restante da coragem que tinha para fazer uma última pergunta essencial naquele dia:
— Você me trai?
Antes que pudesse obter uma resposta, uma mulher de cabelos negros e lisos despencou sobre os braços surpresos de Demétrio com lágrimas nos olhos.
— Pensei que tinha morrido... — ela se afundava no peito alheio.
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