XI- PONTEIROS & VELAS
CAP. XI. REVOLUÇÃO N°.150
O homem de veludo nos guiou para dentro sem nenhuma palavra mais, até tirar Conrad de perto de Camélia e o acompanhar até a sala de estar, no meio do corredor à esquerda, numa área sem divisória para a passagem. Por dentro, era estranho enxergar tanto espaço. Logo na entrada podia-se ver uma pequena cozinha, confortável e aconchegante, com uma mesa no centro e quatro cadeiras simples, armários suspensos, uma singela pia e uma bancada de madeira ligada a ela. Havia também, passando a parte separada para a sala de estar, uma porta no final do corredor. Ademais, após a modesta mesa de jantar, uma passagem oval dava acesso à um caminho repleto de quadros com duas portas à direita, tendo ao seu final, portas duplas em madeira escura e maciça. Eram diferentes do restante das portas e móveis da casa: seus arabescos enfeitavam com delicadeza cada centímetro da madeira sem deixar a elegância passar despercebida nos detalhes de precisão. E não importava para onde Camélia olhasse, nem de que ângulo buscasse entender, aqueles dois corredores pareciam ligeiramente maiores do que a extensão da casa do lado de fora. No entanto, era muito provável que fosse apenas a imaginação de Camélia lhe pregando uma peça depois de tudo o que tinha passado naquele dia.
— Você — chamou-a o homem, da sala. — Pode trazer para mim a caixa de remédios que está na terceira gaveta à sua direita?
Saindo do transe que sua observação causava, apressou o passo e pegou o que foi pedido, em seguida se direcionando para onde era requisitada sem pestanejar.
— Agradeço, Camélia — um tom categórico - porém sincero - alcançou os seus ouvidos. Era a primeira vez que aquele homem dizia seu nome.
Demétrio havia se dirigido a ele como "O Relojoeiro", provavelmente devido à sua ocupação e, por conta disso, ela se perguntava o porquê daquele homem a chamar até sua loja, sem determinar dia nem horário para a visita. Certamente, era um convite incomum.
— Pode ajudá-lo? — indagou preocupada demais para se importar com as roupas sujas por perambular em túneis e sistemas de esgoto.
— Acredito fielmente que existam muitas coisas que não podem ser revertidas — seu olhar encontrava o de Conrad, assustado sobre o sofá. — Mas essa não é uma delas — voltando seu olhar para Camélia, tomou de sua mão a caixa com um aceno de cabeça, como se agradecesse mais uma vez.
— Então — ela não sabia bem o que fazer agora que estava tudo em paz, ao menos por um minuto. Tão pouco tempo de caos e já havia se acostumado ao acelerado coração.
— Você quer saber porque eu a pedi que viesse me ver aqui, não é? Foi praticamente um golpe de sorte terem me encontrando, pois erroneamente me esqueci de te dizer que a loja não possuía letreiro de identificação.
— Bom, acho que não seria uma tarefa muito difícil encontrá-la, visto que há um enorme relógio logo acima dela — a voz ainda trêmula pela tensão da noite deixava transparecer todo o nervosismo que se esforçava para esvair.
Sim, havia um relógio. Um relógio que não se movia, não importava quanto tempo passasse. Esse era mais um ponto estranho que rondava aquele lugar: como e porque o relógio principal de uma relojoaria não fôra consertado há tempos? Era complicado tentar entender aquele homem desconhecido, mas ainda mais, o que ele poderia querer com alguém como ela. Talvez, ser a esposa de Demétrio Silvian exigisse mais do que o que os olhos podiam ver.
— Tem uma boa percepção, devo admitir — Conrad urrou com a dor quando o homem, subitamente, moveu seu osso de lugar com um movimento rápido e crítico. O estalar do osso pôde ser ouvido ressoar pelos cantos vazios da casa. — Agora sua recuperação será mais rápida.
— Ele vai ficar bem?
— Vejo que se preocupa o suficiente com esse homem para chorar por ele numa rua deserta — seus olhos voltaram mais uma vez a encontrar os de Camélia que, por sua vez, observava a barba dele por fazer. — Pode-se dizer que são amigos, creio eu.
— Ah... — não haviam palavras certas, mas ainda assim, ela sentia como se qualquer expressão mal dita pudesse estragar completamente o diálogo. — Acho que não. Apenas sou grata por ele ter me salvo uma vez.
— Vê? Ela é audaciosa, não é?
— Percebo isso — para a surpresa de Camélia, o loiro concordava plenamente com aquele estranho. Aquela situação a deixara envergonhada.
— Não foi o que — sendo interrompida, se aproximou um pouco mais para ver o rosto dos dois.
— Quer dizer que você salvou a vida dela e agora ela sequer te considera um amigo? Oh, Conrad, com que tipo de mulher tem andado?
Conrad deixou uma risada escapar, sôfrego.
— Não! — a voz de Camélia tremeu fazendo-a gaguejar por um instante. — Não é assim. Eu só... não sabia como chamá-lo.
— Sensível, sincera, surpreendente — as três palavras, ditas em conjunto, soaram como se lesse um dicionário.
Voltando-se para as feridas de Conrad, analisou-as com cuidado, tocando levemente sua pele, arrancando baixos gemidos dele. Nada escapava ao seu olhar, nem um arranhão sequer.
— Não parecem feridas muito sérias, acredito que começarão a desaparecer daqui três ou quatro dias.
Três ou quatro dias para curar uma perna e um braço quebrado, lesões nas costelas, rosto e abdômen? Isso era um absurdo, mas Camélia preferiu se abster de questionar. Ele parecia falar sério.
— Enquanto os remédios para dor fazem efeito, vou preparar um chá para suas feridas internas. Não quero que suje meu sofá caso comece a cuspir sua hemorragia por aí. Venha comigo, Camélia — um pedido de tom categórico, como se não estivesse realmente preocupado com nada do que dizia. Sua feição era sempre muito rígida e sem muita expressão. Parecia ser movido pelas engrenagens de um verdadeiro relógio de pêndulo.
— Vamos deixá-lo aqui?
— A única coisa perigosa na casa estará com você e não com ele. Se apresse, vamos pegar alguns livros na biblioteca enquanto ele descansa um pouco — como nas demais vezes, nenhuma reação que descrevesse fielmente as palavras ditas.
Camélia se lembrava bem da recente visão da criatura monstruosa do lado de fora da relojoaria, contudo, escolheu prestar mais atenção para onde estava indo naquele momento. E por um segundo, achou tê-lo visto envergonhado, sem explicação, logo perdendo de vista sua face quando virou-se de costas para ela em direção ao outro corredor.
Ela o seguia de perto, indo ao encontro das duas portas detalhadas ao final do caminho. O estranho homem retirou seu casaco passando a segurá-lo num braço enquanto procurava a chave correta num molho com a outra mão. Enquanto isso, Camélia o observava com curiosidade. Conrad havia o chamado de "Knowmore", o que significava, até então, que ele era chamado por dois nomes diferentes, mas nenhum deles era seu nome verdadeiro. E além disso, para um relojoeiro cuja loja parecia falida, ele se vestia com uma elegância nada modesta, se comparada à sua casa. Ouro, veludo vermelho, abotoaduras e um relógio de bolso. Aquele homem tinha seus encantos tanto quanto mistérios.
Finalmente terminando de revirar o molho de chaves barulhento que contrastava com o silêncio do corredor, o homem passou a encaixar a chave correta na fechadura, girando-a não duas vezes, mas cinco.
— Por que tantas voltas? — perguntou, curiosa.
— É o meu número.
Uma resposta curta, para uma pergunta tão cheia de interesse.
No entanto, o breve retorno foi completamente esquecido quando as duas portas foram abertas num estalido de metal e madeira contra o piso antigo da biblioteca, abrindo espaço para os passos largos de Knowmore.
Ao entrar, com os olhos confusos, sem um ponto único para onde apontar, Camélia quase foi atropelada por um livro voador que passou logo adiante de sua face cortando o vento com velocidade. Ali haviam muitos, muitos livros que flutuavam, pairavam sobre escrivaninhas, voavam por cima das altíssimas estantes, titubeavam de espaço a espaço sem onde parar, sem páginas marcadas ou silêncio em meio àquela dança infindável de papel amarelado.
— Peço perdão pela bagunça, parece que não posso dizer que arrumei este lugar ontem mesmo — desculpou-se o homem, sem nem olhar para trás, prosseguindo seu caminho entre as enormes quantidades de livros, analisando fileiras e mais fileiras dos mesmos com os olhos.
Maior que as estantes, apenas o teto redondo da biblioteca. O espaço era completamente anormal: com dois andares e inúmeras escadas distribuídas por todo canto, aquela livraria enfeitiçada tomava proporções cada vez mais alarmantes. Se não fosse apenas pelos livros voadores indicando a falta de sentido do lugar, poderia-se dizer com toda certeza de que se tratava da maior e mais completa biblioteca de todo o mundo, até mesmo mais bela que as livrarias imperiais antigas.
Camélia não podia deixar de ficar boquiaberta diante de tamanha grandeza. Rodava em busca de mais e mais visões daquele lugar. A cada ângulo, uma nova forma surgia, um novo livro se abria e cada vez mais papel caía das altitudes se transformando numa chuva de finos brilhantes sem alcançar o chão.
— Como isso é possível? — perguntava, não para ele, mas para si mesma.
— Vejamos... — prosseguia o homem a todo vapor. Parecia procurar um exemplar específico numa estante que indicava "Ervas & Cheiros". — Ah, aqui está. Segure para mim.
Camélia caminhou rapidamente recuperando a proximidade. Quanto mais adentravam a biblioteca, mais livros carregava nos braços. O cansaço não a pesava mais, estava maravilhada o suficiente para sequer saber onde pisava.
— Acho que esses serão suficientes. Nunca me lembro exatamente em qual livro se encontra a receita correta, são tantas palavras controversas em cada um. Me sinto um pouco mais ignorante a cada leitura.
— O que quer dizer? — indagou, cada vez mais curiosa.
— Veja o nome na capa.
Finalmente notando a assinatura, geralmente em linhas de ouro, na capa dura de cada exemplar, Camélia pôde perceber que ele não só se tratava do proprietário, como também do autor de todos aqueles escritos que carregava nos braços.
— Como? — não demoraria muito para que o queixo de Camélia resolvesse se soltar por vontade própria da mandíbula.
— Sou o escritor de cada livro que vê aqui. Mas, por algum motivo, sempre vejo erros no que escrevo. Não há nenhum livro aqui sequer que seja suficiente para me satisfazer. Seja uma palavra ou uma expressão, um acento ou um parágrafo, nenhum deles possui as informações de forma perfeita. Nenhuma palavra nessas páginas faz meu coração bater.
Era claro como o dia: não havia erro algum em nem um livro sequer daquelas estantes, mas se seu próprio autor, o dono da verdade, dizia que havia, não tinha pelo que lutar contra.
— O senhor escreveu todos esses livros?! De todas as estantes? — a voz alta de Camélia ressoava por todo o extenso espaço. Agora sim, fazia sentido o que ele tinha dito quando chegaram: "Mantenho a porta da frente trancada por motivos de espaço". Provavelmente, quando a loja abria e a porta frontal era destrancada, a biblioteca desaparecia dando lugar a um simples e pequeno espaço para a relojoaria real.
— Prefiro que me chamem por Knowmore, ou por qualquer outro nome, excluindo formas de tratamento comuns, como "senhor", "mestre", ou qualquer coisa que venha a se parecer com isso — seu olhar foi novamente direcionado à ela, agora um pouco mais firme. — Exceto pessoas próximas, com quem tenho ou desejo ter certa intimidade.
Aquelas palavras finais a desconcertaram um pouco, mas ainda assim, permanecia enfeitiçada pela situação em que se encontrava.
— Então, Knowmore — iniciou, abraçando os livros contra o peito. — como conseguiu escrever tantos livros, sendo que parece tão... jovem.
— Jovem? — ele parou de revirar as páginas de um livro sob o braço por um momento, mas logo voltou a sua atividade de pesquisa. — Eu não diria que sou jovem, apesar da aparência desse corpo.
Como sempre, mantinha o tom categórico na voz, como se a falta de expressão no rosto não fosse suficiente.
— Na verdade, eu gostaria de me desculpar com você e Conrad — Knowmore fechou o livro em mãos elevando o olhar para a cúpula da biblioteca. — pela cena que viram pouco tempo atrás. Uma maldição sem reversão, sem quebra. Como eu disse, 'existem algumas coisas que não podem ser revertidas' — parou por um segundo, como se refletisse sobre um pensamento maçante — Esse é o meu caso.
A imagem à frente de Camélia não era a de um monstro amaldiçoado, mas de um homem de feição séria, olhos atentos e focados no trabalho, mãos ágeis, veias altas, pernas longas e ombros largos. Em nada parecia um monstro.
Ele elevou uma das sobrancelhas escuras e tornou seu olhar para Camélia.
— Desde que chegou, tenho me perguntado a mesma coisa: a preocupação no seu olhar é apenas com Conrad, ou também com você-sabe-quem?
— Quer dizer... — a voz de Camélia tremulou mais uma vez, era a primeira vez que recebia uma pergunta desse tipo. — Demétrio? P-porquê eu estaria preocupada com ele? — perdendo-se por um breve momento, Camélia sentiu um arrepio percorrer a espinha. — Mal nos conhecemos...
— Não se conhecem? Não achei que aquele garoto demoraria tanto assim para se aproximar da própria esposa. Ele realmente é burrice pura em seu estado intocado.
— Como? — muitas vezes, Knowmore soava como um sábio intelectual, e ainda outras, como um jovem implicante.
— Aquele animal sequer lhe explicou a razão pela qual está aqui, não é? — respondendo a si mesmo mentalmente, o Relojoeiro voltou a fitar a cúpula de vidro acima de suas cabeças. — Devo abrir a boca e dizer? Isso o irritaria, provavelmente... Vou fazê-lo.
Com um sinal de aprovação para si mesmo, se aproximou de Camélia tomando os livros de sua mão e os atirando para cima. Como num passe de mágica, desapareceram no ar em milhares de tufinhos.
— Dentes-de-leão — concluiu. — Isso é incomum de se ver... venha comigo.
Ignorando completamente sua última observação, ele se distanciou em passos largos indo em direção à um canto mais escuro da biblioteca. Camélia o seguiu de perto. E chegando próximo às enormes portas de madeira de um armário, Knowmore as escancarou sem sequer tocá-las. De dentro dele, tirou um livro empoeirado e sem capa. Parecia mais um esboço do que um escrito original.
— Seria um engano lhe dizer que todas as respostas para suas perguntas estão aqui, ainda assim, acredito que poderá encontrar, ao menos, um norte à seguir.
Entregando-lhe o livro, ele se distanciou mais uma vez.
— Tome o tempo que precisar, eu estarei preparando o chá de Conrad e um outro menos amargo para nós dois. Agora me lembro de qual receita preciso.
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