VI- CICATRIZES E INTIMIDADES
CAP. VI. REVOLUÇÃO N. 150
Poucas horas depois do encontro na sala de caça; o sono me bateu à porta mais uma vez. Meu corpo estava cansado e sem forças. Meu corpo tremia por debaixo das cobertas. Não pelo frio, mas pelo temor, pela dor e pelas lembranças estranhas do acidente. Estava preocupada demais para conseguir dormir; e com uma certa razão: no meio da madrugada, pude observar de uma fresta numa das portas afastada da entrada, quatro homens saindo da mansão e se dirigindo à carruagem guiada por um outro cocheiro. Ao menos, pelo que me disseram, Conrad estava estável, mas com o corpo muito lesionado. Perdera quantidade significativa de sangue, enquanto eu, saí com apenas algumas feridas nas mãos, pescoço, pés e antebraços - nada que eu não pudesse suportar. Contudo, Conrad havia quebrado uma das pernas e duas costelas, lesionando o ombro esquerdo durante a queda, obtendo uma fratura exposta; as costas, antes brancas, agora se encontravam avermelhadas e com diversos rasgos. Ele me salvara deixando de proteger a si mesmo. Simplesmente me protegeu e se feriu no meu lugar. Eu o devia muito e não sabia como poderia agradecer.
Demétrio, por sua vez, parecia se recusar a responder minhas perguntas sobre o acidente, sobre os homens e sobre todo o resto que meus olhos contemplaram naquela noite. Ele aparentava estar abatido, mesmo que com o sorriso no rosto. Ah, aquele sorriso... Havia mais do que eu podia ver ali, como sempre. Me abraçou uma ou duas vezes e repousou sua cabeça em meu ombro com ternura durante os poucos minutos que desfrutamos na sala de caça. Eu sabia bem que Demétrio só estava se fazendo de forte, era óbvio para mim. Mesmo que estivesse sorrindo, tendo atenção e não demonstrando nenhuma emoção brusca, eu pude perceber em seu olhar que não estava tudo bem. Demétrio parecia preocupado e eu mal sabia como ajudar e nem se deveria. Eu me sentia viva o suficiente para continuar a duvidar da aura de mistério que rodeava aquele homem. Conrad me protegera e quem parecia ter se sacrificado era ele. Conrad foi quem quebrou duas costelas, mas fôra ele quem foi em direção aos troncos rígidos da floresta. Era ele quem estava armado em cima da carruagem, mas era Conrad quem liderava as direções. Minhas teorias e suspeitas não pareciam fazer sentido, porém, algo me dizia para não descartá-las tão rápido. Demétrio não parecia estar muito ferido apesar da violência com que fôra arremessado. Suas mangas longas e o restante do traje formal não me permitiam visualizar suas lesões. Apenas um pequeno corte em seu pescoço era aparente, mas o mesmo já estava enfaixado.
Já passavam das 02:00 da manhã e eu ainda não tinha sequer tirado um cochilo. Evidentemente, minhas memórias estavam a mil. A perseguição, os movimentos de Conrad, Demétrio no teto, os cavalos, os tiros, a adrenalina; tudo me obrigava a fechar os olhos com força e torcer para que fosse apenas um pesadelo; que ninguém havia se machucado por mim e que eu não precisaria acreditava em ter visto Demétrio expelindo tal matéria negra de sua boca. Mas o que mais me fazia palpitar, era o fato de Demétrio ter subido no topo da carruagem. Para um homem da sua estatura, uma força incomum seria necessária para se manter, no mínimo, estável o suficiente para atirar. Seus cabelos podiam facilmente cobrir seus olhos quando não penteados corretamente, por isso, era impossível que Demétrio tivesse acertado aqueles tiros com tamanha exatidão. Naquele momento, o vi como nunca antes: Demétrio era um homem. Um homem poderoso e de olhar insano pela adrenalina, suas veias expostas acima das mãos demonstravam sua afinidade com o perigo. Garota tola... demorei tempo demais para perceber meu erro. Eu não entendia as circunstâncias e ele também não ajudava em nada. Precisava de respostas, pistas ou qualquer coisa que fosse para que não ficasse louca de vez. Apesar disso, se ele não me ajudasse a entender tudo o que escondia nas informações misteriosas, então eu precisaria dialogar com outros. Talvez o homem grisalho, ou até mesmo Conrad. Entretanto, me lembro bem de ter notado que ele não estava acordado o suficiente para se lembrar com detalhes, enquanto ainda me mantinha segura em seus braços. Portanto, pelo que parecia, o homem grisalho que ajudara Demétrio era minha única testemunha, mesmo que ele só tenha chegado após o acidente. Pude vê-lo conversar com Demétrio durante o jantar atrás de uma das paredes da sala de jantar. O som dos pratos sendo colocados sobre a mesa e os talheres se encostando bruscamente não me permitiam ouvir a conversa em sussurros. Contudo, ainda pude entender que se tratava dos homens que nos atacaram, e apenas isso.
Naquela mesma noite, assim que o jantar foi servido por uma formosa serva, Demétrio me apresentou a ela: Saori, era seu nome. Ela possuía lindos cabelos negros, olhos igualmente belos num tom de castanho, o corpo -apesar das roupas simples e comuns- encantador. Saori aparentava ser oriental por conta dos olhos puxados e o cabelo totalmente liso. Uma majestade oriental, era o que a aparência de Saori determinava sobre ela. Durante o jantar, pude perceber que Demétrio também a tratava com ternura e não somente a mim. Me perguntei algumas vezes sobre o porquê dele não ter se casado com a jovem garota ao invés de mim, uma desconhecida. Não era melhor se casar por aparência do que por poder? Ao menos, poderia aprender a amá-la por sua beleza exterior, o que diferia muito sobre como teria de me suportar pelo restante de sua vida, ou até que enjoasse da brincadeira ilusória e me trocasse por outra. Quem sabe, Saori, já que os olhares dos dois se encontravam facilmente. Eu mal havia chegado, e meu coração já palpitava com aquela sensação estranha.
Era ali, em meio às minhas cobertas, que eu criava minhas próprias histórias de ninar a fim de esquecer os episódios passados e tentar adormecer. Já havia lido alguns livros sobre perseguições e mistérios, então, transformei aquela situação num objeto que eu poderia movimentar para qualquer lado que eu desejasse criando uma história um pouco menos trágica do que parecia ser realmente. Assim, minhas fantasias se tornariam mais aventureiras e menos assustadoras. Por sorte, ou pela tradição de nossa sociedade, Demétrio não veio me procurar naquela noite e isso me relaxou por um bom tempo. Mesmo que eu estivesse com a camisola da minha mãe e temerosa sobre como ele poderia me tratar durante a consumação, não haveria nenhuma troca de toques àquela noite e por isso eu podia respirar e dormir tranquilamente, ainda que agora parecesse impossível. Poderia esquecer o acidente, minha preocupação com Conrad, Demétrio, a matéria negra... tudo! Eu dormiria bem, mesmo que obrigada. Precisava disso, ao menos como agradecimento pela misericórdia do universo.
Fechei meus olhos mais uma vez naquela madrugada, com calma e sem movimentos bruscos. Me ajeitei em meio aos lençóis de seda e desliguei meu corpo. Imaginei a bela paisagem noturna de Valle Sorbon. As poucas nuvens, o céu completamente estrelado, as pedras cobertas por musgos de diversos tons, as criaturas da floresta... Eu iria dormir, em breve. Limpa, protegida e sã. Dali a poucas horas amanheceria novamente e minha mente continuaria a borbulhar sem me deixar dormir nem por um segundo. Eu já estava agoniada depois de esperar tanto para pegar no sono; os lençóis já estavam quentes, assim como a cama toda. Meu travesseiro já não parecia mais tão macio e a bela paisagem de Valle Sorbon já não me prendia. Mais uma tentativa falha de dormir. O grande relógio de pêndulo posicionado ao lado da porta de madeira maciça já apontava às 4:35 da manhã. Dali mais duas horas eu teria de levantar e mesmo assim, não tive notícias de Demétrio no quarto, o que continuava a ser um alívio. Era provável que já estivesse dormindo, visto que só tirara uma pestana por algumas horas durante a viagem e gastara uma considerável quantidade de energia antes da queda da carruagem naquela estrada. Por um momento, me preocupei. Ele podia até não ser o meu príncipe encantado, mas lutara por mim como um. Porém, de uma forma ou de outra, o que é que eu estava pensando?! Homens são criaturas ignorantes, que pensam nas mulheres como objetos de valor e prazer, nada mais que isso. Eu não precisava me importar com ele e muito menos com suas horas de sono; e também, se ele não veio se deitar comigo, melhor ainda! Quanto mais longe ele se mantivesse, mais tempo de liberdade eu teria. Mal havia me dado conta, mas passava tempo demais "não" me preocupando com esse assunto.
Já estava me sentindo orgulhosa, deitada na cama toda largada, sem modo algum. Até que, a maçaneta foi girada bem devagar. Lentamente, a luminosidade fraca de uma vela foi adentrando o cômodo. Com pressa, tentando produzir o mínimo de sons possível, me cobri dos pés à cabeça com o fino lençol que jazia sob meus pés tentando não fazer nenhum barulho. Eu sequer havia me dado conta dos outros cobertores mais grossos ao lado, graças ao enorme susto que levei. Por sorte, acredito que não tenha reparado na movimentação abrupta, nem na minha respiração anormal. Embaixo do mesmo, pude ver com pouca dificuldade o que se passava. Era Demétrio, claramente. Ele parecia ter acabado de sair do banho. Seu rosto aparentava o cansaço, o cabelo recentemente lavado ainda pingava e seu corpo definido mostrava marcas que eu jamais imaginaria ver: cortes de diferentes profundidades e tempo se mostravam em suas costas e peitoral, todos grandemente lesionados e arroxeados. Os braços - antes cobertos - agora deixavam transparecer todos e quaisquer machucados causados pelo acidente. Seu lado esquerdo, na região das costelas, estava completamente pintado com tons de roxo, verde e vermelho. Aquilo parecia doer muito, o tipo de dor que nos faz urrar com um simples toque. Alguns de seus ossos se deixavam transparecer na pele. De alguma maneira, seu rosto ainda se mantinha mais em forma que o restante de sua aparência. Porém, indo além de todos aqueles machucados, a lesão em seu lado esquerdo era a que mais me chamava atenção. Era como se eu pudesse ver filetes de um futuro próximo demais à mim, pintados em minha memória como uma obra renascentista em tons borrados. Gotas... gotas... gotas... meus olhos já não me obedeciam.
Eu permanecia imóvel, prendendo a respiração o máximo que podia tentando não fungar o nariz atingido pelas lágrimas involuntárias. O observando ao lado da porta que, agora, era fechada novamente atrás de si, apertava minhas mãos para que não revelassem seu tremor. Contudo, quando a porta rangeu ao ser movimentada contra o trinco, Demétrio olhou em minha direção e aquilo me fez arrepiar. E se ele quisesse consumar tudo ali e naquele mesmo momento? Afinal, por que mais ele teria vindo até o meu quarto naquele estado de semi-nudez? Ele iria me acordar ou simplesmente ignorar meus sentimentos? Ele permanecia me fitando, portanto, semicerrei os olhos a fim de que ele não visse que estava acordada e vendo tudo, afinal, eu não sabia quão transparente aquele cobertor podia ser. Meus antigos surtos internos retornaram depois de tanto tempo sem ler um livro cheio de emoções. Por essa razão, e apenas por ela, tive que admitir que ele era um homem verdadeiramente encantador. Apesar da magreza, seu corpo masculino continuava a esbanjar um certo charme, os cabelos ainda mais escuros quando molhados, os olhos âmbar que enfeitiçaram-me a alma, o jeito que sorria enquanto destruía meu futuro. Percebi naquele momento o quão fácil seria não me apaixonar por ele. Homens tão perfeitos daquela forma sempre escondiam algo em seu mais profundo abismo e eu tinha a certeza de que Demétrio não era diferente. Ele iria se revelar em algum momento, bastava esperar com paciência. Além de que não havia nada em mim para que se interessasse o suficiente.
Assim, após retirar seu olhar de mim, continuou a enxugar seus cabelos e logo depois vestiu uma das camisas brancas que jaziam em cima de uma pequena mesa no canto com uma certa dificuldade, por conta dos ferimentos. Meu corpo ferveu de temor assim que ele se aproximou da cama e andou pelo seu redor com uma calma tão constante quanto a chama daquela vela. O chão de madeira antiga rangia aos poucos com os passos dele. Eu estava no canto, na esquerda, portanto, ele se dirigiu à direita e se deitou ao meu lado. Com o ato parcialmente inesperado, meu coração se acelerou ainda mais do que já estava. Minhas mãos, agarradas uma à outra próximo ao peito, tremiam e eu tentava incontrolavelmente manter minha respiração ofegante em secreto. Minha vontade era sair dali correndo e desaparecer com meu constrangimento. Contudo, apesar dos meus surtos internos cheios de certeza, nada aconteceu. Ele apenas tocou minha mão por cima do lençol e se virou para o outro lado puxando uma das demais cobertas. O ato incerto me fez repensar meu desespero. Quase não pude suportar minha risada nasal quando percebi a quantidade de emoções que haviam substituído o medo e a incerteza que antes me afligiram tanto.
Se não fosse um casamento arranjado, e se eu não estivesse disposta a acabar com toda a paz daquele homem, aquela noite poderia ser uma história divertida para compartilhar com ele um dia.
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