V- FIO VERMELHO EM SALA DE CAÇA
CAP. V. REVOLUÇÃO N.150
Meu corpo sentia-se pesado; minha mente confusa; meus sentidos, antes aflorados, prontos para hibernar durante eras. Podia sentir-me mais abalada do que nos dias anteriores. Contudo, ao menos ainda conseguia sentir as folhas secas tocar-me as mãos feridas. Por diversos momentos pensei estar morta, no entanto, aquelas mesmas folhas traziam a mim a dor dos ferimentos. Minha carne estava ficando gélida como a de um cadáver, mas ao mesmo tempo, meu sangue ainda fluía dentro de minhas veias com euforia e calor. Assim que abri meus olhos pude perceber que o rapaz loiro não me abandonara em momento algum. Ele ainda estava ali, quieto, ao ponto de morrer congelado por conta do rigoroso vendaval de neve que nos atingia a todo momento. Ele mantinha meu corpo quente como quem não desiste de algo, como quem dá sua vida por algo maior que si mesmo. A minha vida valia tanto assim para o jovem rapaz ter a ousadia e a coragem de não me abandonar ali? Seria eu um tipo de objeto com o valor duplicado? Parecia ser um tipo de servo fiel ao seu dono. Seus braços tremiam e ele apertava os olhos ao sentir a dor. A boca entreaberta libertava, hora ou outra, pequenos fios de sangue que desciam de seus lábios até a alva neve. Seu rosto, antes límpido, agora se mostrava surrado. Estava machucado demais até mesmo para respirar. Por isso, tomei minhas últimas forças e me libertei do abraço dele com cuidado. Eu não era resistente o suficiente, mas não poderia deixar que ele morresse ali por minha causa. Tentei por algumas vezes levantá-lo, com dificuldade, falhando continuamente. Contudo, se dando conta da minha persistência, se forçou a ficar de pé com muita dificuldade, gemendo de dor. As roupas rasgadas e as mãos trêmulas não conseguiam esconder o enorme buraco em sua costela causado pela queda. Em carne viva e ainda jorrando muito sangue, se segurou em mim com o máximo de delicadeza que conseguia. Meus olhos e minha consciência não suportaram. Ele estava se forçando demais, até mesmo para não colocar peso demais sobre meus braços. Seu coração era enorme. Um coração puro e inocente demais para morrer naquele inóspito vendaval. As lágrimas continuavam a rolar enquanto eu buscava alguma forma de nos tirar de lá. Os olhos embaçados não me permitiam compreender o que se passava ao meu redor com exatidão. Em razão disso, gritei. O mais alto que pude, gritei. Gritei na esperança de alguém me ouvir e nos ajudar, na esperança de ver Demétrio vivo. E enfim, quando pensei que minhas forças jamais resultariam em algo, pude ver ao longe no topo da ribanceira, em meio às árvores secas, o torso do homem que viera livrar nossos corpos da dor incessante: meu esposo. Ele descia rapidamente, desesperado demais para se preocupar com as pedras ensanguentadas da escosta. Seu rosto já não era mais o mesmo quando o vi se aproximar de mim. Meus olhos eram forçados a se abrirem e meus braços tremiam com o peso do corpo do homem ao meu lado, mas eu jamais poderia soltá-lo até que o salvamento fosse completo. Por mais forte que a morte pudesse me puxar para seu lado, eu sabia que jamais desistiria e que minha relutância para com ela seria recompensada com nossas vidas.
Quando me dei conta, Demétrio já segurava minha nuca. Eu estava caída em meio à neve mais uma vez e o rapaz loiro jogado logo ao meu lado. Não me atentei ao que Demétrio dizia incontrolavelmente, mas prendi meu total foco no rosto desacordado do homem que me salvara da morte. Sucumbi às lágrimas mais uma vez e, sem nem mesmo perceber, já havia fechado os olhos há muito tempo.
Em meu profundo sono funéreo, cenas estranhas adentraram minha mente. Não sonhos, mas sim memórias. Assim que consegui fazer retornar parte dos meus sentidos, percebi que minha consciência desesperada me fizera ver coisas. Quem se jogara em nossa direção para nos socorrer não havia sido Demétrio, mas sim, um homem de cabelos mais claros que os dele, de olhar cortante e cicatrizes aparentes no rosto. Sendo carregada por ele, retirada de toda aquela neve, pude ver ao lado meu marido. Aos prantos expelia uma estranha matéria negra de sua boca e ao mesmo tempo era segurado por um outro homem, de cabelos grisalhos e com o olhar em desespero. Ele ainda tentava se aproximar com dificuldade, preocupado e em plena amargura, mas o senhor não o permitia. Aquelas memórias... pareciam verdadeiros sonhos. Devaneios de uma mente traumatizada, fruto de uma imaginação abalada.
No entanto, durante o verdadeiro sonho, um novo enigma surgiu: Eu via um homem com trajes formais, gravata detalhada em ouro, cartola altiva e paletó de um vermelho atraente. Rodeado por relógios me saudava com o chapéu. Não tive a chance de ver seu rosto e isso me trouxe um desconforto enorme. Ao mesmo tempo que se distanciava de mim, que, por minha vez, aparentava estar, agora, pendurada de ponta cabeça, dizia palavras as quais não consegui compreender. Quem sabe, aquilo não fosse apenas mais uma peça pregada por mim mesma. Contudo, ao perceber a mudança de temperatura no meu corpo, acordei aos prantos, mãos trêmulas, suor frio escorrendo pelo meu rosto, visão embaçada; pés enfaixados, braços, pernas, pescoço. Ao meu lado, manchas de sangue maculavam os lençóis brancos. Era como se alguém os tivesse agarrado freneticamente. Tentando esconder minha visão daquele cenário, me sentei na macia cama assim que meus sentidos voltaram completamente e minha visão clareou. Desse modo, pude notar que meus pés não tocavam o chão. A cama em si era alta, bem arrumada com cobertores vermelhos. Logo, pude notar um fio de lã, também vermelho, que se estendia de debaixo de minha cama até a porta entreaberta. Apoiei meus pés calmamente no chão e segurei o fio. Não queria olhar para trás, nem para os lados. Tentava manter a calma e normalizar o fôlego recentemente cortado. Com o canto dos olhos, pude vislumbrar o que poderia ser um rastro de sangue até pouco antes da entrada. Me prendi à dor e segui adiante seguindo o fio de lã. Meus pés e juntas doíam como nunca antes.
Abri a porta de forma cautelosa e continuei a seguir o fio vermelho pelo extenso corredor que se mostrava à minha direita. Aquilo poderia ainda ser parte do sonho anterior, mas a dor me dizia o contrário. Eu estava muito confusa para conseguir entender algo significativo. Adentrei o que parecia ser uma sala de música e passei direto ao ver a curva que o fio fazia em seu interior. Apenas o puxei ao retirá-lo de próximo dos pés do velho piano negro. Continuei pela caçada até o destino misterioso passando por uma enorme escadaria que dava até a porta principal. Segui adiante entrando em um outro corredor curiosa para o que estava acontecendo. Olhares pareciam me seguir, cheguei a ouvir uma pequena risada manhosa seguida de uma baixa sombra. A lua já se levantava no céu preguiçosa novamente, eu sequer havia notado. No grande corredor enfeitado com cortinas vermelhas, candelabros dourados e mesinhas de canto detalhadas com arabescos em madeira maciça, virei à esquerda descendo as escadas que o tapete vermelho acompanhava. Quadros praticamente escondidos naquele escuro ponto da casa pareciam seguir minha caminhada com mancar. O fio se estreitava cada vez mais e a sombra continuava a fugir risonha. Então, virei à esquerda novamente entrando no que parecia ser a cozinha e rapidamente pude ver que se tratava de uma pequena criança. A segui ao ouvir seus risinhos alegres por mais uma vez. Era como uma brincadeira, um joguinho apenas para nós duas. Eu já não andava, eu corria ansiosa para ver aquele sorrisinho belo em seu rosto. Crianças sempre trazem alegria ao lar...
Prosseguimos pela sala passando pela porta principal novamente e foi então que, ao seguir aquela bela menininha, adentrei uma sala repleta de troféus de caça, cabeças de cervos, candelabros, pinturas, armas e... quatro homens rodeando a mesa central. Dois perto da redonda entrada, um ao lado das cortinas fechadas e outro sentado na poltrona ao lado. Todos os quatro homens se calaram assim que a garotinha rompeu o recinto. Eu estava cercada por todos os lados daquela enorme sala. Mas a garotinha, por sua vez, continuava a puxar o fio vermelho em minha mão para que eu me aproximasse mais, mesmo que eu permanecesse em um estado de quase choque. Seus cabelos castanhos encaracolados entravam em contraste com os olhos azuis límpidos da menina. Trajada elegantemente num vestidinho cor-de-rosa, parecia ser a única coisa capaz de trazer um ar vívido para a fúnebre mansão.
— Camélia— uma voz familiar. Demétrio se levantou da poltrona no mesmo instante em que olhei em seus olhos.— Estás desperta. Sente-se bem?
— Ah... sim, eu... estou bem, obrigada. Desculpe interromper— cabisbaixa demais para soltar algo além de sussurros, não ousei queixar-me da dor incessante que meu corpo sentia.
— De forma alguma. Pessoalmente pedi para que Amélia a trouxesse até aqui quando acordasse— seu tom de voz baixou.— Estava ansioso para vê-la...— a menininha de vestido rosa sorriu com seus dois dentes faltando.
Ainda havia um fato estranho. Demétrio parecia completamente bem, com o leve sorriso de sempre no rosto e em perfeito estado de elegância e boas maneiras. Sequer tinha um arranhão em seu rosto. Era como uma marionete de porcelana. Ria quando lhe era útil rir, aquietava-se quando lhe era mais sábio, gritava quando lhe cabia.
—Sim... certo. Então, o que aconteceu? Eu só me lembro de cair e ser segurada por um...— a frase não pôde ser completada. Naquele mesmo instante me lembrei do loiro que me protegera.— Espere! Onde está ele?!
— Ele? Ele quem, pequena?— perguntou confuso.
— O cocheiro! O rapaz loiro que me segurou!— respondi com a voz trêmula. Eu estava deveras preocupada e com razão, ele estava muito machucado quando o perdi em minhas memórias.
— Conrad está bem— desta vez, respondera sem o sorriso. Usara um tom diferente do costumeiro.
— Não se preocupe, senhora— revelou-se o sujeito que espreitava atrás de uma das cristaleiras.— Ele já teve ferimentos piores. Aqueles cortes não o farão quietar por muito tempo.
— O levamos para um centro médico, mais especificamente a Casa de Repouso GraintFell, assim que conseguimos arrancá-lo da cabeceira da sua cama. E claro, peço perdão por isso. Não pudemos trocar os lençóis por medo de despertá-la. Parece ter um sono leve— completou Demétrio.
Dito isso, o homem mais alto saiu da sala com uma feição séria e cortante. Era o mesmo que me carregara em meio a neve no lugar de Demétrio. Minha curiosidade se aguçou ao ver que os três que haviam sobrado rodeando a mesa o seguiram prontamente.
— Quem... era aquele?— perguntei a Demétrio com uma curiosidade infantil.
— Quem ele é?— Demétrio pensou por um instante antes de responder.— Bom, ele apenas faz o que peço e isso basta para nós. Saber quem uma pessoa é verdadeiramente é algo muito complicado e complexo. Porém, meus homens e eu costumamos chamá-lo de... Escor.
— Escor? O que significa?- perguntei interessada enquanto observava a menininha se retirar da sala a sala guiada para fora por um dos homens.
— Significa: "Transições, a morte e o ato de morrer; luxúria, dominação, traição e proteção". O nome carrega inúmeros significados, mas todos eles se encaixam nele com deveras perfeição. Contudo, no geral, o apelido que demos à ele é apenas um fragmento do nome Escorpião.
O fitei novamente. Ele realmente tinha me respondido com um tipo de filosofia? Suas palavras, ainda que simplistas, exalavam o doce perfume do conhecimento e da sabedoria genuínos. Certamente, ele era mais do que um nobre de bons hábitos.
— Você entenderá quando conhecê-lo melhor. Se obtiver a oportunidade, é claro.
Notando o sumiço dos demais, aproximou-se devagar embalando-me em seus braços com cuidado. A dor persistia, mas a frieza do meu corpo não se comparava à dele.
— Ah...— ele gemeu sôfrego.— Você parece gostar dos meus abraços— riu.
— Por que fez esse som? Dói?- perguntei sem pensar ao afastá-lo com as mãos postas sobre seu peito cuidadosamente.
— Bom, creio que não seja tão evidente assim que eu caí em uma floresta densa de eucaliptos... pode ser que eu esteja com alguns doloridos— forçou um dos olhos a fechar.
— Oh, é verdade. Desculpe-me— respondi ao me afastar por completo. No entanto, logo me puxou para seus braços novamente. Começávamos a finalmente criar algum tipo de calor humano em meio àquela gélida demonstração de preocupação.
— Só vamos... permanecer assim por alguns instantes... por favor.
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