IX- O JANTAR
A noite já caía sobre Valle Sorbon quando o jantar foi servido com a pitada certa de sangue, gritos, desespero e suor. A necessidade de sobrevivência e a ferocidade enchiam a velha sala de jantar da Mansão Sorbon. Uma mistura perfeita entre o caos e o equilíbrio. Uma batalha acirrada em meio ao brilho dos talheres. As taças de vinho sofisticadas se quebravam no chão com uma maestria exuberante. Cacos de vidro escorregaram pelo piso bem encerado. A criatura de olhar exasperado urrou ao pisar em um dos falsos diamantes fragmentados do lustre e atacou novamente sem a mínima compaixão. Seus dentes cravaram na pele como correntes agarradas ao punho do mais vil pecador e rasgaram a carne com voracidade. A saliva espumosa encheu o fundo das garrafas quebradas pelo chão como o mais puro Champagne; o adocicado aroma de morte.
Um tilintar de janelas batendo contra o vento, a força de um osso ao ponto de se romper, a beleza dos diamantes dançando por todas as direções. Nada mudou quando o bule, que nem deveria estar ali, foi atirado contra a criatura num ato quase infantil na tentativa de se livrar dela. A espada havia sido jogada longe quando o braço foi atacado pelos dentes tortos da besta. Um teatro bem elaborado de beleza inconfundível.
Da janela presente na parede frontal da mansão, a visão da cena era ampla. Podia-se ouvir os gritos horrorizados das mulheres, os grunhidos de dor dos homens e também a bela melodia dos cacos se debatendo no chão graças à rápida movimentação dos pobres sujeitos. Alguns chamariam de caos, como fôra verdadeiramente no início, porém, com a agulha encontrando o vinil repentinamente, uma música animada e clássica passou a incrementar a linda dança contra o óbito tornando tudo como num circo espalhafatoso de palhaços e sangue.
Demétrio foi o único que permaneceu de pé ao final, assim que matara a criatura, decapitando-a - mesmo na frente de duas donzelas- passou a tentar recuperar o fôlego, ofegante demais até mesmo para acalentar a esposa em estado de choque do outro lado da sala. Delicadeza nunca fôra o seu ponto forte.
De certa forma, Camélia agradeceu aos céus ou para quem fosse que estivesse pensando e voltou a respirar após o minuto mais longo de sua vida. Tudo passara como numa lentidão inexplicável, permitindo-a que visse cada detalhe daquele fatídico momento. Para ela, tudo aquilo não passava de uma história de terror. Não havia vitória, música ou marido enfraquecido. Apenas uma guerra travada há muito, gritos de desespero vindos da cidade e um homem cujas mãos acabaram de separar a cabeça de um ser de seu corpo com um simples fio prateado.
— Demétrio— era Conrad, buscando as palavras em sua mente bagunçada.— A cidade estará perdida se ninguém agir rápido o...
Ele não pôde terminar sua alegação, pois seu corpo debilitado não suportou mais o seu peso. Conrad, corajosamente, havia percorrido uma distância desconhecida da Casa de Repouso GraintFell em uma velocidade extraordinária, considerando a quantidade de ferimentos que possuía. Uma perna e duas costelas quebradas, sem falar das outras inúmeras lesões que quase o fizeram outra pessoa. O rosto enfaixado parcialmente, os olhos inchados e em constante lacrimejar; as pedras do rochedo escondido pela neve e pela lama não se mostraram nada piedosos enquanto manchavam sua pele em tons de roxo e verde; seu lábio, orelha e nariz possuíam cortes profundos que provavelmente não iriam se curar sem deixar lembranças visíveis; o cabelo loiro retorcido em meio ao suor e ao próprio sangue, enquanto a febre permanecia em seu estado inalterado. Conrad sofria muito, mas não desejava a morte. Assim como Demétrio, Escor e o homem de cabelos grisalhos, Conrad se manteve firme durante a luta. Sua perna retorcida não foi suficiente para pará-lo quando chutara a face grotesca da criatura separando-a do braço já ensanguentado de Demétrio com brutalidade.
Com um pouco de dificuldade, Escor o levantou, colocando-o em seus braços de forma com que não piorasse sua situação ainda mais. Camélia ainda permanecia inerte como os falsos diamantes espalhados.
— Ele precisa de ajuda— afirmou Escor, com uma preocupação de irmão crescente.
— Como foi que chegou aqui nesse estado?!— o velho homem bradava como um pai irritado. Seu filho amado havia acabado de desmaiar pela dor.
— Temos...— Demétrio ainda tentava alcançar o fôlego perdido. O braço com duas presas encravadas na carne latejava, mas nenhuma reação era vista.— Temos que ir até a cidade. Acabar com essa algazarra de vozes suplicantes e descobrir por que raios aquele miserável tornou-se tão inconsequente de uma hora para a outra!
— Sim, senhor— não mais uma família unida, não mais pais, irmãos e filhos; uma horda de guerreiros prontos a acatar as ordens de seu comandante.
— A honra de Conrad deve ser desperdiçada,— continuou— então preparem o armamento do ataque. Ele acabou de ser adiantado. Atacaremos hoje, ao soar o sino.
Nenhuma objeção, nenhuma palavra mais. Apenas um olhar de esposo para esposa e um pedido:
— Por favor... seja grata pela vida que tem e cuide de Conrad para mim, assim como ele cuidou de você.
- O restante do escrito e seus detalhes foram perdidos em meio às chamas no incêndio da Mansão Sorbon. Não puderam ser recuperados.
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