IV- QUE O DIA SEJA BENDITO
CAP. IV. REVOLUÇÃO N. 150
Passaram-se aproximadamente duas horas desde que adentramos a barca. Demétrio e eu tivemos alguns diálogos, mas nada muito significativo. Ele ainda se mostrava muito misterioso, assim como é um deserto ainda não desbravado. Ao longo da viagem tentei me distrair com a paisagem e o horizonte ao invés de observá-lo como quem quer desvendar um enigma. A atual situação me deixara trêmula. Ter estado tão perto dele, mas ao mesmo tempo tão longe. Era de maneira silenciosa que eu conseguia segurar minha tensão. Os momentos de riso já haviam cessado. Creio que ele se sentia num silêncio confortável, mas não era o mesmo para mim. Tudo parecia fugir do recíproco. Sem sentimentos ou emoções que não fossem momentâneas, me agarrei aos únicos momentos calmos de antes. Agora, minha mente voltava aos poucos à bagunça anterior e o caos voltava a dominar. Fomos avisados pelo capitão da balsa que a viagem logo chegaria ao fim já que estávamos nos aproximando da costa. Aquela notícia me trouxe uma grande euforia, e também, um frio na barriga inigualável. Eu finalmente conheceria meu novo lar e isso era sim uma notícia boa, visto que, ao menos, eu teria um lugar só meu. Contudo, isso também significava que o momento da consumação do matrimônio estava se aproximando. A não ser que o cansaço que Demétrio apresentava gritasse mais alto que seus desejos carnais, o que me trazia incertezas. Pressenti que deveria fazer algo, qualquer coisa para detê-lo. Eu não estava pronta para isso e não sabia quando estaria. Teria de dar um jeito se o sono não o desse. Enfim, quando, lamentavelmente, chegamos à costa, Demétrio se levantou, mesmo que sonolento e guiou-me pela saída da barca. Ele parecia estar contente. Seu sorriso era perceptível ao longe comparado com seu rosto reluzindo de satisfação. Retribui com um sorriso fraco de nervoso e desviei o olhar. Assim, nos dirigimos a uma outra carruagem que já estava à nossa espera. Estranhamente, com o pouco que pude ver do novo cocheiro, sentia como se houvesse algo familiar nele. Adentrando o veículo, sentei-me no lado esquerdo e Demétrio no direito à minha frente. Ele parecia gostar de me observar sorrindo.
— Então...— iniciei.— Estamos indo para sua casa, certo?
— Nossa casa— ele retirou o lenço que pendia sob o pescoço. Ele parecia estar o incomodando já há um bom tempo.— Não falta muito para chegarmos agora. Apenas mais uma hora de viagem e estaremos em casa— assenti envergonhada por sua primeira afirmação e tornei a deixar minha atenção exclusivamente na paisagem.
Se estávamos em Valle Sorbon, local de onde as cartas eram enviadas, eu deveria admitir que era um belíssimo lugar. Pinheiros altos e majestosos balançavam com a brisa fria vinda do mar que banhava a costa juntamente com o lago escuro que atravessamos e a grama de cor gélida que dançava ao som dos pássaros verdes da região. E lá estava Demétrio, novamente repousado sobre o lado da janela. Por que ele sempre parecia tão cansado? Era alguma consequência de seu trabalho misterioso ou ele era algum tipo de preguiçoso incurável? Suspirei com minhas curtas teorias. Metade delas sequer faziam sentido, mas mesmo assim não quis ignorá-las, afinal, a mais improvável de todas - que era a de que o homem das cartas me pediria em casamento - se cumpriu. Portanto, me recusei a ignorar as demais. Uma delas teria de estar certa. Parte de mim queria ser uma boa esposa, no entanto. Mesmo assim, ainda existia uma outra que dizia para minha rebeldia guardada há anos aflorar e mostrar-lhe o inferno na terra em forma de mulher. Porém, de uma maneira ou outra, eu não poderia ser capaz de destruir-lhe a vida. Agora, eu era sua esposa, o que significava que sua decadência se tornaria a minha. As opções eram escassas. "Tome juízo, Camélia!", me adverti em pensamento. Jamais deixaria aquele sentimento de prisão tomar-me a pouca liberdade que restava, além da lucidez. Eu teria de achar um outro jeito para mostrar a ele do que era capaz. Eu poderia mostrar-lhe minha força, minha sabedoria e perspicácia! Não precisaria optar pela crueldade feminina que eu possuía, a não ser que a situação pedisse por ela. De qualquer modo, eu mesma não conseguia me ver atormentando a vida daquele belo homem. Demétrio parecia ser calmo, apesar de sua feição séria; e também parecia ser amável e cuidadoso, como demonstrou ser em nosso casamento. Ah... eu acabaria cedendo em algum momento. Maldito o dia em que vi aquele sorriso e me afundei naquele olhar. Sim, o futuro era incerto. Mas ali estava, aquele mesmo maldito momento se repetindo. O sorriso que me fazia desmoronar em meus pensamentos mais leves, que me ajudava a clarear a manhã, que me trazia de volta a certeza de que o mundo poderia ser incrível! Era Demétrio, era sempre Demétrio. Não pude entender como, em tão pouco tempo, rendi parte de minha sanidade daquela forma. Ali, dentro daquela carruagem, sorri por mais uma vez, caindo dentro daquele afiado olhar. Pude sentir toda a boa áurea que ele deixava transparecer invadir o ambiente. Eu já havia esquecido a empresa, o medo, a incerteza. Aquele único sorriso me fazia transbordar num rio cristalino de rochas prateadas. Naquele mísero momento de encantamento nada mais me importava. Se eu seria triste dali em diante ou se eu seria maltratada; aqueles segundos pagavam todo meu futuro. Independente de como ele seria. Como num feitiço, aquela foi a última coisa que vi antes que meus olhos piscassem.
"Descemos da carruagem no meio do que parecia um pequeno mercado. No maior entusiasmo, Demétrio me puxou para fora. Era tudo tão colorido e cheio de vida! Pequenas tendas eram montadas nas encostas e inúmeras pessoas iam de um lado para o outro em questão de segundos ao observar a quantidade de mercadorias interessantes que o mercado oferecia.
- O que achou?- perguntou o moreno animado.
- É um lugar lindo...
- Estás deveras correta, pequena- ele riu, direcionando à mim um olhar terno.- Então, o que acha de vir aqui comigo amanhã?
- Por que viríamos aqui novamente amanhã se já estamos aqui hoje?- ele riu diante da minha pergunta inocente.
- Experimentar as iguarias com mais calma, é claro- dito isso, sorriu e me puxou apressado pelo pequeno mercado.
Algumas tendas vendiam acessórios para cabelos, outras, temperos de cor viva e iguarias de aparência desconcertante. Algo como lesmas roxas, talvez? Quem sabe o que poderiam ser? Minha visão estava embaçada, e tudo o que eu conseguia ver claramente à minha frente era Demétrio. Ele continuou me guiando pelo mercado enquanto eu observava cada tenda. Haviam tecidos de diversas cores e texturas, além de bebidas exóticas e objetos em madeira. Rompemos a multidão que se aglomerava em uma ou duas tendas mais visitadas e nos deparamos com um cais gigantesco.
A brisa... Ah, as ondas batendo nas colunas do velho cais. Que visão impressionante. No final daquela imensa obra de arte o céu desenhava belas formas alaranjadas no horizonte. As ilhas distantes deixavam seus pinheiros livres, a areia branca ir e voltar com a água do mar. Era uma visão extraordinária... uma visão só minha. Era o vislumbre que somente Camélia poderia ter. Nada além de um sonho".
Acordei com a rápida movimentação da carruagem. Então, tudo aquilo não passara mesmo de um sonho... era certo. Eu não seria tão sortuda a esse ponto. Já era fim da tarde e o céu se escurecia rapidamente. Pelo jeito eu havia dormido assim que caí no charme daquele sorriso estúpido. A única luz que restaria em breve seria a das lanternas do lado de fora da carruagem. Mas algo parecia estar errado: Aquela não parecia ser a movimentação costumeira... Os cavalos relinchavam e o vento atacava as pequenas cortinas do interior do veículo com fugacidade levando, também, meus cabelos, de um lado para o outro. Certamente estávamos sendo perseguidos. Três homens, montados a cavalo em roupas negras, nos seguindo a todo vapor. Com suas longas capas e capuzes, cobriam seus rostos, mas para mim- que olhava tudo pela pequena janela da carruagem - era tudo muito claro: Eram assassinos. Uma faca adornada em detalhes de prata era segurada pelo homem do meio, enquanto os outros dois se armavam com pequenos sacos de cor caramelada.
O cocheiro atiçava os cavalos ao máximo dizendo coisas que eu não compreendia. Meu coração acelerava segundo após segundo num ritmo incessante de pânico. Um dos sacos foi atirado em direção à carruagem me fazendo libertar um bramido fino. Eu estava com medo, com muitíssimo temor do que aconteceria. Um pó amarelado se dissipou no ar rapidamente, mas graças à velocidade do veículo, foi-se com o vento momentos antes de alcançar minhas narinas. Há essa altura, não havia sinal de Demétrio. O tranco da porta estava levemente aberto, batendo contra a madeira por conta da ríspida movimentação. Contudo, no meio de todo aquele desespero, ouvi uma voz familiar. Me lembrava de uma voz incomum: a voz do rapaz que trazia nossas correspondências em minha casa. Aquele o qual apelidei como Áureo. Ele gritava em brados longos e quase incompreensíveis. Porém, havia uma outra voz que recebia suas palavras: a de Demétrio, vinda de cima do telhado. Eu tinha certeza de que era ele, mas me perguntava como ele poderia ter subido lá. Olhei para cima, pela janela, me segurando fortemente pela porta. Ele parecia estar segurando um tipo de arma. Não consegui discernir o que ela faria, mas sabia que não queria estar ali para saber. Contudo, o primeiro tiro foi libertado rapidamente. Ajoelhado com certo ar profissional, Demétrio disparou uma segunda vez em direção aos homens que nos seguiam freneticamente.
— SENHOR!— gritou o cocheiro. Uma curva estava se aproximando, ele deveria se segurar firme se não quisesse ser arremessado com violência às árvores do caminho.
Com o primeiro disparo, um dos homens foi atingido, caindo do cavalo em alta velocidade logo depois. As coisas estavam ficando ainda mais complicadas. Num ato súbito, Demétrio abriu a porta da carruagem assim que voltei para dentro da mesma e a fechou novamente atrás de si tempo suficiente antes de destruir sua coluna em um dos enormes eucaliptos da floresta morta.
— Demétrio! O que está acontecendo? Quem são eles?!— perguntei trêmula, sem nem mesmo respirar, quase em puro desespero.
— Se acalme e preste atenção!— ele deixou de lado a arma e segurou meu rosto com as duas mãos.— Se alguma coisa acontecer com a carruagem, saia dela e corra o mais rápido que puder. Não olhe para trás, não ouça nenhuma voz. Entendeu?
— Não! EU NÃO VOU CONSEGUIR!— minhas pernas tremiam como varas verdes e meus olhos lacrimejavam como nunca. Era como se o mundo que eu conhecia antes estivesse se partindo em centenas... centenas de milhares.
— Ou corre, ou morre! É você quem decide, Camélia.
Demétrio saiu apressado para o lado de fora novamente assim que me dera sua intimação, trancando a porta após si. Ele me tratara com raiva nos olhos pela primeira vez. Mas não era uma raiva direcionada a mim, mesmo que seu olhar fosse. Eu estava desesperada, perturbada, com medo. Nunca tinha passado por algo do tipo. As lágrimas rolavam por meu rosto sem controle, mas eu sabia que teria de me acalmar. Ter uma mulher descontrolada dentro da carruagem não ajudaria Demétrio em nada. Porém, uma coisa era certa: Eu não estava mais na minha zona de conforto.
— SENHOR! OUTRA CURVA À ESQUERDA! TEREI DE SER BRUSCO! SEGURE-SE!
Num movimento arriscado, o cocheiro loiro curvou o mais rápido que os cavalos suportavam. Os garanhões negros não pareciam estar nem um pouco cansados, pois relinchavam preparados para a guerra. Repentinamente um dos homens alcançou a janela ao lado onde eu me encontrava. Com um sorriso sádico de vitória no rosto sem mostrar-me os olhos, jogou suas ameaças.
— PEGAMOS A GAROTA PRIMEIRO, DEPOIS OS DOIS IMBECIS!— neste momento, o encapuzado foi atingido por um tiro vindo do telhado. Com o susto, caí para trás no assento. Não parecia ser o tiro de uma arma comum. Era comparado a uma seringa com um líquido vermelho escuro em seu interior. Imediatamente o homem caiu estrada afora sendo deixado para trás. Eu mal havia ouvido Demétrio armá-la novamente quando o quarto tiro foi disparado acertando o cavalo do último homem o fazendo cair em meio aos eucaliptos. Contudo, parecia que mais um homem havia surgido das sombras da floresta espessa. Eles eram espertos, tudo aquilo não passava de uma emboscada estrategicamente perfeita. Estaríamos mortos em poucos minutos se continuassem a brotar mais homens do meio da floresta.
— VOCÊ ESTÁ BEM? ELE TE TOCOU?— perguntou Demétrio olhando de cabeça para baixo da janela desesperado. Seus cabelos acompanhavam o vento veloz e seus olhos jorravam o medo. Não um medo covarde, mas sim o medo de que eu me machucasse.
— Eu estou bem! Não aconteceu nada!— gritei em resposta.— Tenha cuidado Demétrio— ele apenas assentiu e voltou sua atenção para o homem encapuzado que nos perseguia freneticamente.
Mais dois tiros foram disparados, mas não de Demétrio. Num som ensurdecedor pude discernir o tiro, o relinchar de dois cavalos, o encontro com um rochedo e um grunhido de dor. De repente, eu estava sendo arremessada para fora da carruagem, Demétrio havia sido jogado para dentro da escura floresta de eucaliptos provavelmente batendo em um deles com brutalidade e o cocheiro loiro tentava me alcançar no ar, tudo isso em questão de míseros segundos. Segurei sua mão o mais rápido que pude por puro instinto e fui puxada para os braços do rapaz loiro. Com seu pequeno sucesso, me segurou fortemente me protegendo da longa queda ribanceira abaixo. O sangue voava pelo ar enquanto ele me protegia de cada pedra que surgia em nossa queda. Ele já estava muito machucado quando finalmente paramos de dançar com as gotas de sangue. A última coisa de que pude me lembrar, foi de ver o rapaz ensanguentado ainda me segurando em seus braços e o homem encapuzado nos observando de cima da queda.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro