𝕮𝖆𝖕𝖎𝖙𝖚𝖑𝖔 2 - 𝕰𝖓𝖙𝖗𝖊 𝖔 𝕾𝖔𝖓𝖍𝖔 & 𝖔 𝕯𝖊𝖘𝖊𝖏𝖔
William tinha acabado de completar trinta e cinco anos primaveras, mas se sentia com cinquenta e imaginava que Eduard Radcliffe fosse de sua idade. Ela, porém, era bem mais jovem. Sabia que Florence esperava que ele começasse a falar, e não pôde culpá-la pela impaciência na voz quando perguntou.
— O que tem a me dizer, sr. Montague?
William a olhou, fez menção de falar, mas perdeu a voz. Conhecia o sintoma e através de experiências anteriores sabia que o incidente era seus nervos.
Fisicamente podia falar, tratava-se de um bloqueio mental. Era uma situação real e deveras frustrante. Com dificuldade, ele conseguiu pronunciar.
— Se não se importa, podemos tomar o café que ofereceu?
Florence deixou transparecer certa irritação, e Wlliam a compreendeu. Ela se levantou, saiu por um minuto e retornou em seguida.
— O café logo estará aqui. Escute, sr. Montague...
— Sim?
— O senhor está bem? Quero dizer, está com algum problema que o impeça de falar, talvez...
Ele meneou negativamente a cabeça. Como desejaria ser capaz de lhe dizer a verdade! Entretanto, ainda se sentia constrangido de revelar às pessoas.
— São os nervos, só isso.
Nervos abalados pela dor de cabeça persistente, pela insônia constante e pelos pesadelos horríveis que se repetiam quando conseguia dormir.
— Vai passar, estou fazendo tratamento, mas... — Desculpou-se.
Uma jovem de avental branco e preto entrou com o café. Florence o serviu e lhe perguntou se aceitava creme e açúcar. Ele balançou a cabeça em sinal de negação e tomou-lhe a xícara fumegante das mãos. O café quase queimou-lhe a garganta. Depois de um momento, ele conseguiu articular.
— Sra. Radcliffe... a senhora não reconhece meu nome?
Florence pensou um pouco e então admitiu.
— Não, creio que não. Mesmo assim... tenho a impressão de já tê-lo ouvido em algum lugar.
— Estou certo de que sim. — Asseverou Willian com gravidade. Reuniu toda a coragem de que dispunha e recomeçou. — Sra. Radcliffe, meses atrás eu estava no mesmo vapor em que seu marido foi feito refém.
Florence pegava o açucareiro enquanto o ouvia; sentiu que sua mão ficou tensa. Apertou a frágil porcelana e precisou de todo o esforço para manter a compostura e vencer o temor que se apoderou dela. As palavras de William continuaram a ecoar em sua cabeça, mas ela procurou não demonstrar aflição.
Encarou-o e teve uma premonição horrível. Então, ouviu-o murmurar.
— Oh... eu sinto muito!
— Por favor, sr. Montague... — Ela protestou, tentando elaborar o que diria em seguida. — O senhor também não foi um refém?
— Fui.
Ela continuou encarando-o, e a tortura que percebeu nos olhos de William era algo difícil de testemunhar. De repente, viu-se desejosa de confortá-lo, mesmo sem saber ainda por que ele estava ali. Certamente, aquele homem devia ter passado por uma experiência tão dolorosa naqueles meses quanto ela mesma. Elaine, tentando manter o mesmo tom de voz, prosseguiu.
— Então deve ter conhecido Ed quando...
— Sim.
— É por isso que veio aqui? Para dizer que sente muito? Já se passaram mais de nove meses, não vejo por que tem de me dizer isso. Afinal, não é responsável pelo que aconteceu a ele.
— Responsável, não. — Concordou William.
— O senhor, assim como um número considerável de pessoas, esteve nas mãos de biltres piratas. — Florence continuou, firme. — É um milagre que qualquer um tenha saído com vida.
Quase num murmúrio, William disse-lhe.
— Foi uma questão... de cara ou coroa.
Ela o encarou.
— O que disse?
— Não um jogo de fato. Quero dizer... — Ele esclareceu — Mas deu no mesmo. Eu estava sentado ao lado de seu marido quando os malfeitores atacaram a nossa embarcação. Ocupava a cabine do corredor, a da direita estava vazio. Ficamos no porto por horas. Durante a noite, enquanto os sequestradores negociavam com as autoridades, pedindo inclusive combustível, pois queriam navegar novamente, enfim... estava no fim corredor e seu marido a meu lado... — Repetiu ele.
— E... — A pergunta saiu espontânea.
Na verdade, Florence gostaria de lhe dizer que não queria saber os detalhes, mas não conseguiu articular as palavras.
— A situação... era terrivelmente tensa. Durante todo o tempo as armas estiveram apontadas em nossa direção. — William fez uma pausa como que para tomar fôlego. — Com a aurora se aproximando, resolveram matar um refém por hora se não fossem atendidos em suas exigências. Estávamos todos exaustos. Pedi para ir ao banheiro, e um dos sequestradores me escoltou.
Florence acompanhava atentamente o relato, e ele prosseguiu começando a tremer de pavor pelas fortes lembranças.
— A hora se esgotou enquanto eu estava no banheiro. Então... escolheram seu marido. Se eu estivesse lá, na proa da embarcação, com certeza teriam me escolhido.
Ela sentiu a boca seca. Levantou-se bruscamente e foi até o balcão.
Apanhou uma garrafa de conhaque, dois copos pequenos e os serviu. William aceitou a bebida e tomou-a de um só gole. Suas mãos ainda tremiam quando ele deixou o copo vazio sobre a mesa.
— Obrigada. — Sua voz ainda estava rouca quando comentou. — Quando a recepcionista lhe disse meu nome, fiquei com medo de que não me recebesse.
Florence ainda tremia, embora se sentisse queimar por dentro.
— Creio que devia ter reconhecido seu nome. Talvez o tenha, inconscientemente. — Ela começava a perceber quantas lembranças havia bloqueado. — Quantos eram os reféns?
— Cinquenta e cinco. Entre homens de todas as idades, mulheres e algumas crianças. — William jamais esqueceria esse número, apenas cinco não saíram com vida: o marido de Florence e um casal de velhinhos engraçado que havia trabalhando num circo, uma garçonete que voltava para o seu país e um jovem recém formado em direito.
— Cinquenta e cinco... — Repetiu Florence, estremecendo. — Como o senhor disse... seu nome me incomodou. Quando o vi parado no balcão, identifiquei algo familiar...
— Usava barba na ocasião em que fui solto. — Disse William, acariciando o queixo. — Ficamos trancados por vinte e seis dias depois de chegarmos naquele país, num casarão perto do porto. Desculpe-me, sra. Radcliffe, não queria entrar em detalhes.
Ele olhou para o teto e quase mencionou o fato de que tudo não ser importante para ela, já que seu marido estava morto.
Florence o escutava com atenção. Teve vontade de lhe perguntar por que começara aquele assunto, mas conteve-se a tempo. Por nove meses vinha tentando reconstruir sua vida. Havia tocado o projeto de restauração da Amberes House e conseguira inaugurar o prédio no prazo de seis meses depois.
Colocara toda sua energia na pousada, no salão de coquetel, no restaurante...
As pessoas costumavam dizer que ela era corajosa, e muitas vezes sentira-se impulsionada a lhes dizer que não se tratava de coragem, mas de desespero. E agora, nove meses depois, começava a reconstruir sua vida fora da pousada.
Já aceitava, ocasionalmente, convites para jantar com amigos íntimos. Estivera até pensando em promover uma festa para essas mesmas pessoas. Tinha consciência de que era jovem demais para viver sozinha, de que precisava de companhia, mas a de um grupo. Não pensava em se envolver com um homem outra vez; sentia-se mal ao se imaginar ligada emocionalmente a um único homem. Devagar, vinha retomando seus hábitos.
E, então, William Montague fazia com que recuasse em direção às sombras ao forçá-la a relembrar o que não queria.
A irritação ficou evidente em sua voz quando indagou.
— Por que veio aqui, sr. Montague?
Para William, a voz cortante dela fez com que se lembrasse do arame farpado que circundava a área do casarão onde fora prisioneiro. Uma vez, na tentativa de escapar, ferira a mão. O corte acabou infeccionando e demorou a cicatrizar. Agora, era uma pequena cicatriz que lhe trazia lembranças assim como o tom de voz de Florence Radcliffe. Ele respondeu em voz baixa.
— Eu não queria vir aqui, sra. Radcliffe.
Florence estivera olhando para o vazio e, então, o focalizou, os olhos de um azul profundo questionando-o. Ela é tão linda, pensou William. Era estranho, mas a beleza dela o incomodava.
— Nove meses já se passaram...
— Sei muito bem disso.
— Eu sei. Mencionei a passagem do tempo porque há algo que não sabe.
Observando-o mais atentamente, ela percebeu que William se sentia preso numa armadilha. Talvez o conhaque tivesse ajudado a desinibi-lo.
Quando sequestraram o vapor, Florence assistira buscara notícias em todos os jornais e tabloides da época, os contatos eram raros e as autoridades pouco revelavam. O caso estivera nas primeiras páginas de todos os jornais do mundo, mas, ao saber que Eduard estava morto, não se interessara por mais nada; até saber que os reféns tinham sido libertados e voltavam para casa. Alguns dias depois, não resistira ao impulso de ligar o rádio e assistir a uma entrevista com os reféns. Fora, então, concluiu, que reconhecia a voz de William Montague e ouvira seu nome. Só que na época ele tinha barba e não era tão magro, sua foto saiu em alguns jornais. Vagarosamente, ela acrescentou tentando acabar logo com aquela horrível conversa.
— Foi muito doloroso recordar isso tudo. Mas posso compreender que deve ter sido pior para o senhor. Estive pensando apenas em mim mesma...
— Bem, tento não pensar muito sobre isso... pelo menos conscientemente. No nível de inconsciente, a lembrança não me abandona, e creio que não me abandonará tão cedo. Mas não é disso que quero lhe falar. Durante o tempo que estivemos juntos no vapor, seu marido e eu... — William parou bruscamente.
— Por favor, continue... — Ela o encorajou.
— Bem, nós conversamos bastante. Em circunstâncias como aquela as pessoas tendem a falar sobre assuntos que normalmente guardam para si mesmas. Sabíamos que nossas vidas estavam por um fio, e tínhamos consciência de que talvez não saíssemos vivos daquele lugar.
Florence sentiu que seu pulso se acelerava e, apesar do mal-estar, implorou-lhe com o olhar para que continuasse.
— Desculpe-me... — Disse ele suavemente. — Mas tenho de fazer o que me foi pedido.
— O quê? — Ela arregalou os olhos, sentindo-se ligeiramente nauseada.
— Um pouco antes de deixar meu lugar junto dos reféns, seu marido conseguiu me entregar algo. Foi um milagre. Nenhum sequestrador viu. Na verdade, ele colocou o objeto no meu bolso. Eu ia começar a falar, mas então ele me olhou como se pedisse silêncio. Depois de alguns segundos, ele voltou a falar, mas não me encarou. Disse mais ou menos as seguintes palavras. O nome de minha mulher é Florence. Ela mora em Malta e, se eu não escapar daqui com vida, entregue-lhe isso. Mas só daqui a alguns meses, no começo de maio...
William tirou um objeto do bolso, deixando-o cair sobre a mesa. Florence se surpreendeu olhando para uma chave de prata antiga.
1736 Palavras
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