Capítulo 22 - Nossas dores
Eu nunca fui em um cemitério antes, nem mesmo quando meus avós paternos morreram há alguns anos.
Meu pai disse que eu era muito nova para ir num lugar como aquele, entretanto, agora, eu sinto a necessidade de ter ido. Eu queria ter ido no enterro dos meus avós, queria fazer parte da divisão de sentimentos quando tudo aconteceu. Queria estar ao lado do meu pai naquele momento, para ao menos tentar confortá-lo de alguma forma. Aquilo, a morte dos meus avós, não iria deixar de acontecer, mas pelo menos a dor poderia ser contida, ser repartida.
Notar que minha tia está chorando, quietinha no banco da frente o carro, no caminho para o cemitério, mostra-me o quanto seria importante para minha ligação com meus pais eu ter ido, ao menos uma vez, visitar o túmulo dos meus avós.
Mesmo sendo um pouco atrapalhada pelo cinto de segurança, passo meus braços pelo lateral do banco e abraço de qualquer forma minha tia. Eu não tenho o que dizer à ela. Perder um filho quando se está prestes a tomá-lo nos braços deve ser uma das coisas mais complicadas na vida de qualquer mãe, ainda mais jovem. Não consigo nem imaginar como meus tios se sentiram ou como se sentem agora.
Tudo que eu quero agora é quebrar esse clima meio tempestuoso que se instalou aqui. Se Luís estivesse aqui agora... ele é um crack nessas coisas.
Porém, quando não se tem Luís, usa-se tio Daniel.
— Por que não vamos tomar sorvete depois? — Tio Dani sugere, oferecendo um sorriso terno à minha tia.
— Ou você pode me pagar aquelas coxinhas que está me devendo, tio — brinco e volto a me encostar no estofado atrás de mim.
— Vocês querem me deixar mais gorda do que a Sophia está me deixando? — minha tia questiona, rindo e secando as lágrimas.
Esse trem de clima pesado não é comigo. Apenas sinto vontade de me encolher em posição fetal e chorar rios de líquor¹. Consciência de fato se encolhe em seu divã e murmura coisas incompreensíveis para qualquer humano.
— Sophia? Já escolheram o nome? — pergunto, interessada naquele assunto e ignoro a vontade de rir e ao mesmo tempo consolar meu eu interior.
— Sim, e se for um garoto vai se chamar Leonardo. — Daniel sorriu, virando o carro numa rua e estacionando. — E, amor, gorda é tudo que você não está, e se tivesse, não deixaria de ser linda. — E então selam um beijo rápido.
— E já decidiram a madrinha e o padrinho? — interrogo rindo um pouco do amor fogoso deles.
Estou louca para que pelo menos um dos meus pais assumam esse posto, porque assim meu futuro primo ficaria mais próximo de mim. Por alguns minutos, nós esquecemos para que lugar estamos indo e o carro está com uma aura mais leve.
— Vamos deixar isso para mais tarde — tio Daniel diz e nós três saímos do carro. — Incrivelmente tem uma galera boa se convocando para o cargo.
Não duvido nada que essa galera é composta pelos meus pais, a tia Irene — que para falar a verdade eu estou morrendo de saudades —, o tio Danilo e talvez a Cibele, sócia da minha tia no salão de beleza dela.
Andamos até uma floricultura na esquina da rua em que o carro está estacionado. A parede de frente da lojinha é completamente de vidro, alternando entre transparente, azul e verde, formando um lindo mosaico e possibilitando a visão do seu interior. Meus tios pegam um buquê de gérberas, uma espécie que eu só conhecia por vista, mas nem imaginava que esse é o nome. O senhorzinho que cuida da floricultura nos disse, quando minha tia fez um resumo emocionado do porquê estamos aqui, que essas flores representam a essência do amor, e é muitas vezes ligada à infância. Eu pego apenas uma flor copo de leite, que o senhor explicou que significa pureza e inocência. Pagamos e seguimos para o cemitério ao lado da pequena lojinha de flores.
Uma certa ansiedade se apodera de mim quando chegamos ao grande portão do cemitério. Aquela saudade que eu não sabia que poderia sentir também vem. Mesmo eu tendo nascido quatro anos depois da minha prima ainda sinto uma ligação que tenho com ela, ou ao menos com sua memória.
Das primas mais próximas que tenho, ela seria a mais velha e mais próxima. Imagino como a família reagiu perdendo a primeira filha, sobrinha, neta, já que ela viria a ser a primeira em tudo. Penso também em como meus avós maternos se portaram quando souberam que Luíza era uma natimorta. Essa parte da história eu não conheço muito bem, porém é por opção, já que minha tia se dispôs a contar. Meu maior medo era que meu desgosto aumentasse ainda mais caso eu soubesse que meus avós maternos não deram nenhum tipo de conforto à minha tia, à filha deles. Era como estar diante de uma ventania e ter que escolher entre conhecer as forças dos ventos e ser levada, ou se esconder para não ser ferida. Eu escolhi a segunda opção.
Enquanto caminhamos entre as sepulturas, eu observo meus tios. Minha tia está usando um vestido azul marinho sob um sobretudo longo e escuro, nos pés, um salto baixo preto. Já meu tio está com um terno preto, nada parecido com sua costumeira calça verde musgo do exército, camisa cinza simples e botas. Estou usando uma saia preta que vai até meus joelhos e uma blusa cinza de mangas longas. Queria, antes dos meus avós paternos se fossem, compreender porque as pessoas focam tanto no preto, cinza e branco para lugares como esse, foi então que eu conheci o luto. As roupas se tornam, de alguma forma, a representação do que estamos sentindo.
Então meus tios param e eu vejo o pequeno espaço no gramado para a sepultura de Luíza, e a placa de metal com escritos gravados nela, sua lápide.
Luíza B. Carvalho Morais
19/08/1995 - 19/08/1995
Nossa amada filha, sobrinha e neta, que viveu pouco, mas foi amada para uma vida inteira.
— Eles deixam enterrar mesmo um bebê natimorto? — Sempre pensei que algo diferente acontecia aos bebês que morrem durante o parto. Abraço-me rodeando os braços em meu tronco quando um vento frio passa pelo cemitério. — O corpinho dela está mesmo aí embaixo?
— Sim, é o procedimento para bebês natimortos que tem o peso ideal — meu tio conta, observando minha tia se abaixar e passar os dedos lentamente pela lápide. Em seguida, os olhos deles se voltaram para mim. — Os médicos, que fizeram o parto, que coordenaram todo o procedimento. Nós, a família toda, estávamos muito abalados. Deixamos mesmo tudo nas mãos dos médicos e funcionários responsáveis. Nós nem chegamos a ver o corpo de Luíza, insistiram para que o caixão fosse fechado para evitar que sentíssemos mais dor.
Talvez os responsáveis tivessem razão, porém ver a bebê poderia ser uma forma dos meus tios deixarem a ficha cair mais rápido, recuperarem-se da perda mais rapidamente também, por mais complicado que isso seja. A possibilidade de vê-la por pelo menos uma última vez me pareceria mais reconfortante do que apenas encarar o caixão fechado.
Tio Daniel faz uma oração enquanto tia Rafaela organiza as flores em torno da lápide com delicadeza. As primeiras lágrimas vêm deles e logo outras banham meu rosto.
— Tenho certeza que seríamos grandes amigas — murmuro para a placa de metal, para minha prima, e deixo a flor copo de leite ao lado, encostada na placa.
Por que Luíza morreu? Por Deus deixou que um bebê se fosse? Logo quando minha tia mais sofria, mais lutava para tê-la. Por quê? Ainda que eu esteja tentando ocultar, eu sinto. Dói. Dói não entender o porquê de coisas ruins acontecerem às pessoas boas.
Olho em volta, a alguns metros à direita, um casal chora abraçado. Quase imperceptível pelos meus olhos, alguns metros à minha frente, um homem carrega uma bebêzinha encarando um túmulo à sua frente. As lágrimas embaçam minha visão. Abraço minha tia pela barriga e deposito um beijo rápido nesta. Agora até mesmo eu torço ainda mais para que esse bebê vingue. Meu tio vem e nos abraça também. Pela primeira vez desde que eu conheci o luto, entendi o que é dividir a dor de uma perda.
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O domingo chega ensolarado, tanto em relação ao clima quanto ao resto. O sol está forte e nem parece que estamos no inverno. A varanda de casa acabou se tornando o lugar perfeito para passarmos o domingo. Às vezes minha mãe opta por algo assim, mais natural, diz ela que faz bem para a mente, mudar um pouco o ambiente. Almoçamos aqui fora e agora, depois de um incrível pudim de leite que minha mãe encomendou com a tia Ju para a sobremesa, estamos jogando pife.
Meus tios foram embora ontem mesmo, depois de me pagarem salgados e picolés. Passei o resto da tarde conversando com Erik e fotografando alguns lugares do bairro acompanhada do meu irmão e nossas bicicletas. Pelo menos quatro novas fotos de algum canto do Planalto entraram para meu varal de fotografias.
Depois do que se passou no cemitério, eu notei que precisava passar mais tempo com as pessoas que eu amo, que me importo. E infelizmente percebi também que venho negligenciando meu papel como irmã. Eu levo o Edu todos os dias para a escola, mas nem ao menos conversamos direito. Nossa diferença de idade só começou a afetar quando a tal da puberdade me atingiu, brincar já não era algo que eu gostava de fazer, fui deixando de lado meus brinquedos, meus jogos de tabuleiro e junto disso, foram-se também meus momentos com meu irmão.
Pedalar, andar, fotografar e até mesmo ensinar alguma coisa do que eu sabia e do que eu também venho aprendendo no meu curso para meu irmão me mostrou que eu não devia deixá-lo de lado só porque eu cresci. O entendimento que tive foi que as brincadeiras de criança se findaram, mas o Eduardo não.
E se a gente já perdeu uma prima mais velha, não queremos perder o nosso pestinha também.
Talvez a passagem curta de Luíza nessa terra tenha esse significado: nos aproximar e perceber que a vida é muito curta para não demonstrarmos o que sentimos para quem está perto de nós.
Volto ao presente, minha mãe está pensando, é a vez dela lançar uma nova carta ao monte. Quando ela o faz, e então eu sorrio.
— Ganhei! — exclamo. Pego a carta que minha mãe jogou, exponho meus três pares de cartas para a mesa e puxo o montante de Toddy cookies que apostamos para meu lado. — Todos essas delicinhas para mim.
— Acho que ela tá roubando — meu pai ameaça, olha-me de soslaio e toma um gole do vinho que minha mãe insiste que ele beba, acompanhando-a. Eu rio.
— Inteligência e sorte não é roubo, papai. — Arqueio a sobrancelhas e levo alguns cookie de Toddy à boca.
— Excelente jogada, querida. — Minha mãe sorri, acena e cumprimenta meu copo de suco natural sabor manga, que pegamos da própria árvore que temos no quintal, e sua taça preenchida pelo líquido roxo.
— Quero revanche — Eduardo diz e corre para o interior da casa.
Olho para meus pais que dão de ombros e saem da grande mesa redonda, indo juntos para um sofá de madeira com estofado vermelho e laranja e almofadas fofas de cor bege, que fica ao lado contrário da rede onde eu costumo passar o tempo. Quando Edu finalmente retorna, traz consigo o tabuleiro de xadrez e peças de dama em uma caixinha dobrável.
— Mas a gente vai disputar os biscoitos na dama. — Ele coloca o tabuleiro e a caixinha sobre a mesa, e puxa a vasilha de biscoitos de volta para o centro da mesa.
— E desde quando tu sabe jogar dama, garoto? — inquiro, em provocação, e sorrio, estalando meus dedos.
— Pra sua informação, maninha, sei até xadrez. — Eduardo começa a organizar as peças brancas, que logo deduzo que são as escolhidas dele. Não me impressiona, branco é sua cor favorita e como eu, acreditar em coisas que podem dá sorte também é algo do meu irmão. De certa forma, fico feliz por termos algo tão singular em comum.
— Quê? Quanto tempo eu dormi? — brinco, colocando cada peça preta em seu devido lugar.
O jogo começa e eu vou logo distribuindo o jogo e me colocando na zona de combate. Conversamos durante o jogo, ele me conta das novas oficinas da escola integral, onde ele passa a parte da manhã e à tarde tem aula regular. Foi lá que aprendeu a jogar a xadrez e dama e resolveu também aprender a lutar judô.
Quando não estamos conversando, observo-o como jogador. Meu irmão é esperto e é engraçado quando ele para um momento para pensar na próxima jogada. Seus olhos ficam esbugalhados e ele coloca a mão no queixo e a outra coça seus cabelos, enquanto isso ele fica suspirando e me olhando sorrindo, como se dissesse "por que raios fez isso? Não tem lógica". Ao final, o jogo fica empatado. Uma dama para cada lado e nenhum de nós dois quer entregar o jogo. Uma coisa sobre os filhos de Ricardo Almeida: somos altamente competitivos e a derrota é a última hipótese em um jogo. Optamos então por dividir o prêmio e sentados na escada que liga a varanda ao pequeno quintal onde está nossa consideravelmente alta árvore, saboreamos dos biscoitos e suco que a mamãe preparou.
— A 'fessora passou um filme pequeno — Edu comenta e suponho que, na verdade, ele esteja falando de una curta metragem —, tinha uma garota. Ela era pequena e já trabalhava, vendia mel. Eu não entendi aquilo, e só no final a 'fessora notou que tinha passado o filme errado, porque íamos assistir A Vila Burger. Por que uma criança tava trabalhando quando podia tá brincando como as outras?
— É trabalho infantil, Edu, é isso que retrata no filme, ou curta, talvez. Acontece muito no Brasil, mas igual tu disse, a criança devia tá brincando ao invés de trabalhar, por isso trabalho infantil é crime.
— Mas por que acontece?
Ainda que meu irmão já tenha oito anos, ter uma mãe psicóloga faz com que ele — e de certa forma, eu também — tenha que seguir uma sina; aprender e entender algo em seu devido tempo. Não consigo julgar se Eduardo é capaz de entender que ainda que algo seja errado, não deixa de acontecer, por isso, escolho bem as palavras antes de continuar:
— Algumas famílias não conseguem sobreviver apenas com os trabalhos dos adultos, sabe? — Ele acena com a cabeça e mordisca um cookies, continuo: — Aí, elas mandam as crianças trabalharem. Tipo aquelas crianças que vendiam balas no sinal quando a gente tava voltando de Caeté nas férias, lembra? Aquilo é mó errado, a criança na rua, correndo perigo, sozinha e ainda trabalhando, mas em alguns casos é a única forma das famílias terem uma renda a mais e sobreviverem.
Muito triste isso. Imagina as consciências dessas criancinhas...
Pois é.
— Mas ninguém ajuda as famílias? As crianças deviam tá na escola, não? — ele continua e eu franzo meus lábios. A boca seca e eu bebo um pouco do suco do meu copo.
— O governo devia ajudar e as crianças tinham que tá estudando mesmo, mas infelizmente isso não acontece, não é nada muito justo nessa vida, nesse país. — Levanto os olhos para Edu e o vejo segurar o rosto entre as mãos enquanto apoia os braços no joelho, pensativo.
— E o que a gente pode fazer para tentar acabar com isso? — Eduardo pergunta e eu noto um quê de esperança em sua voz e nessa notória esperança se torna maior quando ele se levanta.
— Denunciar, sempre. Não tem garantia que vá funcionar, mas é nosso dever — digo e passo as mãos pelos braços quando um vento mais frio passa por nós. — Assim as crianças param de trabalhar e vão estudar e brincar igual você.
— Não sei se vão gostar de estudar, sabe? Ainda mais ter que fazer dever de casa todo dia. — Eu rio da cara que ele faz. — Mas a parte de brincar é legal. Devia ser lei: criança tem que brincar.
— Que tal a gente botar essa lei pra funcionar? — sugiro e levanto-me também, tirando a sujeira da escada da minha bermuda rosa claro. Quando voltamos para a mesa, bocejo. — Nossa, não é nem seis horas da noite e eu já tô morta de sono!
— Mas é claro, né? Fica a noite toda conversando com seu namoradinho virtual. — Se eu ainda tivesse tomando meu suco, ele provavelmente estaria todo no chão.
— Como é que é? — indago. Contudo, meu irmão apenas dá de ombros e ergue suas sobrancelhas, indo buscar outro jogo dentro de casa. — Namoradinho virtual — repito, balançando a cabeça.
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¹ Líquor: O líquido cefalorraquidiano (LCR), Fluido cerebrospinal, ou Líquor, é uma solução salina muito pura, pobre em proteínas e células, e age como um amortecedor para o córtex cerebral e a medula espinhal. (Entre o Real e o Virtual também é ciência, mores).
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Oi, oi! Capítulo com inicio meio pesado e depois papo meio polêmico para forma um capítulo inteiro hahaha, na verdade é a primeira parte, porque ele ficaria grande (e talvez ainda mais choroso) se fossem as duas partes juntas. Mas logo logo eu posto mais!
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