13 - Adágio
— Isso não parece bom — comentou Moereen.
Ela e os gêmeos estavam parados um ao lado do outro na frente Ash, o olhando como se ele fosse um tipo de planta estranha que tivesse nascido no jardim deles e tentassem decidir se era venenosa ou não. Ash estava sentado na beirada da cama, ele contribuía com a conversa fazendo um comentário engraçadinho ou outro de vez em quando, mas os Campbell não pareciam achar graça e apenas continuavam o observando com as testas franzidas, então ele ficou em silêncio e esperou pacientemente.
— Os outros não vão gostar nada disso — tia Moe continuou.
— E o que você sugere? — questionou James sem desviar os olhos de Ash — Nós não vamos mandar ele embora.
Ash ficou surpreso consigo mesmo por se sentir aliviado.
— É tudo responsabilidade minha — Brooklyn disse — Não é como se eles concordassem com tudo que eu faço ou digo de qualquer forma, só mais uma coisa não vai fazer diferença.
— Eles só estão tentando se acostumar — Moereen se virou para a sobrinha — Até alguns dias atrás você era só uma garotinha que devia respeitar tudo que eles dissessem e agora é você quem da ordens a eles.
O queixo de Brooklyn caiu e ela olhou embasbacada para a tia, depois se recompôs e cruzou os braços.
— Eu tenho dezenove anos, não sou mais uma garotinha à muito tempo! — ela disse, Ash ficou tentado a dizer que aquela atitude que a fazia parecer uma garotinha, mas se conteve, não estava muito afim de ser verbalmente agredido, por outro lado James parecia ter pensado a mesma coisa que ele pois deu uma risadinha, para a sorte dele a gêmea pareceu não notar e continuou a falar — Além disso, o respeito deveria ser mutuo, independente da minha posição na hierarquia.
Moereen suspirou e esfregou as pálpebras com o indicador e o polegar, James estava perdido em pensamentos e Ash achava que Brooklyn iria começar a espumar de raiva a qualquer momento, o loiro se jogou de costas na cama, tinha começado a ficar entediado com aquela conversa, ninguém precisou dizer nada a ele para que percebesse que haviam problemas na alcateia e que esses problemas se resumiam a ele.
— Não é come se ele fosse o primeiro caçador que foi mordido e percebeu que era ridículo se matar por isso — disse James, Ash abriu os olhos e eles se encararam, era bem visível na expressão do garoto Campbell o quanto ele achava aquilo horrível, também pareceu que ele esperava que Ash fosse retrucar, coisa que ele não fez, apenas fechou os olhos novamente e os cobriu com o braço.
— É verdade — concordou tia Moe — Mas não é como se a nossa “alcateia tradicional” fosse aceitar isso facilmente.
— Eles vão ter que aceitar! — Brooklyn disse, a voz dela subiu uma oitava — Eles deveriam parar de agir como crianças mimadas.
A discussão se prolongou por mais alguns minutos, mas Ash já não estava mais prestando atenção, ele descalçou os chinelos que usava e se ajeitou na cama, devia ter dormido por algumas horas, pois quando Brooklyn o acordou novamente o sol tingia o quarto com a luz da manhã.
— Você passou de Cinderella para Bela Adormecida? Acorde!— a garota disse enquanto chacoalhava o ombro dele.
Ash resmungou e sentou-se na cama enquanto esfregava os olhos com as pontas dos dedos, ele achava que estava perdendo seus instintos de Caçador aos poucos, nunca teve o sono pesado, deveria ter acordado com o mínimo som que escutasse, antes mesmo que a garota pudesse entrar no quarto sem que ele percebesse, ou talvez só estivesse seduzido pelo colchão macio da cama depois de ter dormido mais de uma semana no chão, de qualquer forma, nunca passou pela cabeça dele que um dia seria acordado por uma Loba enquanto ela o insultava com nomes de personagens de contos de fadas.
— O que você quer? — Ash perguntou, ainda um pouco sonolento.
— Eu vou ter uma reunião com a alcateia daqui a pouco, mas antes preciso te explicar as nossas regras de convivência — ela esperou até ter certeza que Ash estava prestando atenção, depois começou a levantar um dedo a cada regra que explicava — Primeira: nós decidimos que você não pode andar por aí sozinho, se você quiser sair ou passear pela casa, vai ter que estar acompanhado de mim, James ou tia Moe. Não faça essa cara estúpida, você não estava esperando que fossemos passar a confiar em você da noite pro dia, não é?
Ash tinha cruzado os braços e feito um expressão mal humorada, mas no fim acabou concordando, então Brooklyn continuou:
— Além do mais, isso vai ser benéfico para você também, acredite, não vai querer encontrar com um monte de pessoas que te odeiam mais do que tudo enquanto estiver sozinho — a garota explicou e quando Ash não disse nada ela continuou — O que nos leva a segunda regra: você deve evitar brigas com os outros, o mesmo vai valer para eles, vamos tentar manter a convivência mais harmônica possível, ok?
Ash analisou os termos por alguns minutos e depois suspirou.
— Por mim tudo bem, não parece tão ruim — disse.
Brooklyn pareceu satisfeita.
— Ótimo, tia Moe deixou algumas roupas para você, ela disse que vai comprar mais hoje — ela disse apontando para o guarda-roupa — Tome um banho e eu volto para te buscar em dez minutos.
Ela saiu sem esperar uma resposta, deixando Ash sozinho no quarto, percebeu que não tinha perguntado onde ela estava planejando leva-lo, mas deixou para perguntar quando ela voltasse, ele levantou-se da cama e foi até o banheiro, era um pouco maior do que o que costumava ter em seu quarto no Burned Souls, as paredes eram brancas e o chão tinha um piso antiderrapante, tinha uma pia de mármore com armário embutido do lado esquerdo e um vaso sanitário ao lado dela, um box de vidro ocupava toda a parede do fundo do cômodo, Ash tirou as roupas que vestia e começou a caminhar ate lá, mas se deteve na frente no espelho, observou o próprio reflexo nele, os cabelos loiros caiam em suaves ondas sobre a testa e as pontas da orelhas, Ash puxou suavemente uma mexa, decidindo que já estava quase na hora de corta-lo, um par de olhos cinzas o encaravam de volta de forma quase melancólica, era aquela expressão que ele precisava esconder a qualquer custo, mas que nunca deixava seu rosto quando estava sozinho, ele notou que o machucado que Archie havia deixado na bochecha dele havia sumido, deixando apenas a pela clara e lisa do rosto, Ash tocou suavemente o lugar onde o hematoma estivera, depois baixou o olhar para o peito, onde o local que Brooklyn o havia chutado ainda estava roxo, ele imaginou um encontro entre a Loba e o tio, ela com certeza daria uma surra nele.
Ash levou mais tempo do que dez minutos para ficar pronto, perdeu um tempo analisando as roupas que haviam deixado para ele, os tecidos eram macios e confortáveis, também pareciam caros, o que fez Ash ficar pensando em sua antiga vida, ele sabia que os Granville tinham uma boa reserva de dinheiro, pois a maior parte do lucro do bar era gasto com armas e munições, mas ainda assim Archie pagava um salario a Ash pelo trabalho de Bar Tender, mais do que o suficiente para comprar o silencio do sobrinho, que sabia de muita coisa que não deveria cair nos “ouvidos errados”, Ash levou quase dois anos para juntar dinheiro suficiente pra fugir, ele se perguntou o que Archie faria com aquele dinheiro, ele certamente não iria queima-lo, muito menos o carro do sobrinho, um jipe é sempre útil na Caçada.
— Você esta atrasado — Brooklyn disse quando ele finalmente saiu do quarto, ela estava com as costas apoiadas na parede ao lado da porta enquanto digitava no celular, depois o guardou no bolso do jeans e se virou para ele com uma expressão muito séria — Tem uma coisa que você precisa saber sobre atrasos Cinderella, nós não o toleramos de jeito nenhum, lógico que dentro de casa não tem importância, mas quando você estiver fora evite se atrasar ao máximo, se você não aparece na hora marcada, pode significar que você foi pego pela Caçada, o que vai acabar deixando toda a alcateia nervosa com um possível ataque eminente.
Ash achou tudo aquilo uma bobagem no começo, mas depois que pensou um pouco melhor aquilo até que fazia sentido, depois de prometer a Brooklyn que não iria mais se atrasar eles caminharam lado a lado pelo corredor, o papel de parede era no mesmo padrão do salão de baile, mas este era marrom e dourado, varias luminárias a gás de ferro pendiam em intervalos regulares nas paredes, ao olhar com mais atenção Ash percebeu que elas na verdade eram elétricas e apenas foram feitas para parecer vintage.
— Então, pra onde você está me levando? — o garoto perguntou a Brooklyn.
— Como eu tinha dito, vou me reunir com a alcateia agora para falar sobre você, pode ter certeza que eles não estão nada feliz com a sua presença e irão ficar bem menos felizes quando souberem que você está fora da cela — ela disse enquanto olhava para ele para ver sua expressão, mas ele não reagiu — De qualquer forma, James vai ficar de olho em você, estou te levando até ele agora.
— E onde ele está?
— Você vai ver — disse e deu um sorrisinho discreto que ela provavelmente pensou que ele não notaria.
Eles desceram uma das escadas até o grande salão e então pegaram outro corredor muito parecido com o anterior.
— É aqui — Brooklyn disse quando eles pararam em frente a uma porta dupla com notas musicais entalhadas elegantemente na madeira.
A garota saiu sem dar mais explicações, deixando Ash para trás, ele olhou para porta levemente intrigado, não precisava ser um gênio para deduzir que aquele lugar deveria ser uma sala de música, ele apenas não entendia o por que de Brooklyn tê-lo deixado para encontrar James ali. Ash abriu a porta lentamente, ele imaginou que ela fosse produzir um rangido alto como os portões de um castelo, mas apesar da madeira pesada, as dobradiças soltaram apenas um leve resmungo, o garoto ficou levemente boquiaberto com a beleza da enorme sala de música, suas paredes de um branco impecável eram preenchidas com os mais variados tipos de instrumentos musicais, alguns tão exóticos que Ash jamais poderia deduzir seus nomes, alguns instrumentos maiores como um violoncelo de madeira reluzente estavam apoiados em suportes no chão, também haviam varias poltronas e bancos estofados espalhas pelo local, em um canto ao fundo havia uma prateleira com varias pastas finas empilhadas lado a lado que ele imaginou conterem partituras ou alguma coisa do tipo, tinha um sucinto lustre de cristal no teto, não era tão imponente quanto o do salão de baile, mas o garoto acreditava que ele poderia facilmente aplacar a fome de uma família humilde sozinho, a luz refletida nas meias-canas douradas e dava um ar de beleza imperial do salão. Mas a maior beleza na sala estava em James sentado em frente a um piano de calda branco, ele tocava uma música delicada e elegante.
Havia algo de mágico em ver James tocando, os dedos dele deslizavam sobre as teclas do piano, a cabeça estava inclinada para baixo, os olhos estavam semicerrados em concentração, ele parecia estar em uma espécie de transe, Ash quase podia ver a alma dele surfando em meio as notas, dançando e se embrulhando nelas, ela era feita disso, a alma dele era feita de notas complexas de uma música que Ash não conhecia, que parecia flutuar e se espalhar ao redor dele quando tocava, convidando a alma cinzenta e fria de Ash para dançar com ela, mas ela era muito pesada para isso. A música do piano estava quase acabando, e James estava se recolhendo para dentro de si mesmo de novo, sua velha carranca mal humorada esta retornando para o belo rosto, e quando a última nota foi tocada ele disse:
— O que você está fazendo aqui?
Ele olhou para Ash muito intensamente, como se esperasse que ele fosse fazer algum comentário com o seu costumeiro deboche, coisa que ele não fez.
— Brooklyn me deixou aqui — disse simplesmente — Bela música a propósito.
James pareceu levemente surpreso, ele ergueu um pouco as sobrancelhas, depois pareceu baixar um pouco a guarda, Ash notou que a música parecia ser um assunto delicado para ele e se parabenizou mentalmente pela decisão de calar a boca.
— Você pode apagar a luz, por favor? — James pediu enquanto se levantava para abrir as janelas — Tem um interruptor perto da porta.
Ele apertou o botão e a luz artificial se apagou, a mediada que as cortinas iam sendo abertas, o salão parecia ficar ainda mais belo com a luz do sol que dominava lentamente o ambiente.
Ash andou um pouco pela sala, parou em frente a um violino que estava pendurado na parede e deslizou o dedo indicador suavemente pelas cordas.
— Não é assim que se toca violino — James disse enquanto fechava a ultima cortina e voltava a sentar em frente ao piano.
— Ah, perdoe a minha ignorância, meu lorde — Ash disse, olhando para ele por cima do ombro.
— Se esta tentando me conquistar com uma referência a Kuroshitsuji*, saiba que não vai dar certo — James disse enquanto folheava uma partitura apoiada logo acima das teclas do piano, Ash franziu o cenho.
— O que?
James riu e balançou a cabeça.
— Esquece isso — ele disse, depois se virou para olhar para o loiro e mudou de assunto — Esta interessado em aprender a tocar violino?
Ash pensou um pouco a respeito enquanto James abria espaço para que ele sentasse no banco ao lado dele, o banco era largo o suficiente para acomodar os dois confortavelmente, ainda assim seus ombros se esbarravam um no o outro, o ex-caçador achou que ele fosse se afastar, mas o garoto Lobo permaneceu no mesmo lugar.
— Você sabe tocar violino? — Ash perguntou enquanto apertava uma tecla do piano, a nota soou mais alta do que ele esperava.
— Mais ou menos, eu sou melhor no piano. Mas Brooklyn poderia ensinar você, ela é um gênio do violino — James disse sem olhar para Ash, ele apertou em uma sequência de teclas brancas e pretas que produziram um som bem menos desajeitado.
— Então acho que eu prefiro aprender a tocar piano — ele olhou bem para James e abriu o sorriso mais deslumbrante que tinha.
— Tudo bem — James tentou manter uma expressão séria, mas não teve muito sucesso, pois ainda era possível ver um leve sorriso nos lábios dele — Repita isso.
Ele tocou algumas notas enquanto as nomeava para Ash, que tentava decorar em quais teclas ficava cada nota, quando tentou repetir, pareceu mais um piano caindo de uma escada do que uma música. James fez uma careta como se tivesse comido algo muito azedo e Ash gargalhou.
— Eu nunca vou conseguir fazer isso — O ex-caçador disse enquanto olhava pensativamente para as teclas — Os Granville apenas destroem, nós não criamos nada bonito.
— Isso não é verdade, todo mundo tem um lado artístico, só que algumas pessoas o desenvolve melhor do que as outras — disse James — Eu tenho certeza que você tem algum talento artístico também, mas talvez ele não esteja na música.
O loiro riu novamente quando James fez outra careta, o clima era tranquilo entre o dois, Ash notou com um certo espanto que não o considerava mais uma ameaça, até mesmo o garoto Campbell parecia ter relaxado um pouco. Mas o memento descontraído durou pouco, pois a expressão de James voltou a mudar, mas dessa vez havia um misto de tristeza e inquietação no olhar dele, Ash teve um mal pressentimento tão forte que o fez sentir um arrepio na nuca.
— Ash, você...— James fechou os olhos e respirou fundo, como se criasse coragem para continuar — Você já parou pra pensar sobre a razão de a sua mãe ter escrito o próprio nome naquelas cartas? Ela poderia simplesmente ter criado um pseudônimo que só ela e a minha mãe saberiam.
— Ela queria que a Caçada viesse atrás dela — Ash disse, porque aquilo era uma coisa óbvia para ele.
— Por que? — tinha um leve tom de indignação na voz de James — Isso é quase como colocar um alvo na própria testa.
Ash balançou a cabeça e deixou escapar um som que estava entre um riso e um suspiro.
— Você não conhece a Caçada. Não realmente. De uma forma ou de outra eles iriam descobrir que era ela que estava vazando informações e ela provavelmente sabia disso, “colocar um alvo na própria testa” como você diz, provavelmente foi a forma que ela encontrou de desviar a atenção deles da sua mãe.
— Ela era a heroína — James disse tão baixinho que o outro quase não pode ouvir.
— O que?
— A sua mãe era uma heroína — dessa vez ele disse com mais força, deixando que um leve sorriso se formasse — Ela nos salvou, salvou a nossa alcateia... minha mãe, eu, Brooklyn, tia Moe... todos nós.
Ash sentiu-se atordoado, ele não tinha pensado no assunto dessa forma, ele fora criado como um caçador, estava acostumado a valorizar mais a própria vida do que a dos outros, por isso o gesto dela tinha lhe parecido uma grande burrice desde o começo. Mas agora, James havia exposto as coisas para ele de uma forma totalmente diferente, Catarina tinha trocado a própria vida para salvar a vida daquelas pessoas e provavelmente, se não fosse por ela, talvez James não estivesse vivo agora, nem ele, nem as outras duas pessoas que haviam resolvido deixar todas as diferenças e preconceitos de lado para dar uma segunda chance a Ash.
O Granville desviou o olhar para as teclas do piano novamente, a sensação que tinha era que haviam batido no peito dele com uma marreta, ele já sentia o nó se formando na garganta, mas se recusava a deixar que James o visse chorar mais uma vez. Por isso ele não viu os olhos de James se arregalarem quando ele lembrou de algo importante.
— Vem comigo — ele disse, ficando em pé e estendendo a mão para Ash — Tem uma coisa que eu preciso te mostrar.
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Notas:
*Adágio: [Música] Cujo andamento se apresenta de maneira lenta; a execução de um trecho musical de maneira lenta.
*Kuroshitsuji: Também conhecido como Black Butler, é um anime (animação japonesa) abientado na Londres vitoriana, que conta a história do jovem conde Ciel Phantomhive, que fez um pacto com um demônio para se vingar dos responsáveis pelo assassinato de seus pais, o demônio Sebastian* acaba se tornando o mordomo da mansão Phantomhive até que a vingança de seu mestre esteja completa.
* Uma das frazes de efeito de Sebastian é "Yes, my lord" e é aí que está a referência citada no capítulo.
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