52. Condenado
— Achei que não pudesse se levantar — Roy me analisou enquanto adentrava o quarto.
— Liz terminaria de me matar, se soubesse; mas não consigo continuar nessa cama, há tantas coisas pra se resolver. — Todo torto, sustentei meu peso com as mãos apoiadas no criado-mudo.
— Não resolverá nenhuma delas, se estiver morto — ele riu.
— Soube que Robert está perto, talvez o avião já tenha até pousado na cidade. Tenho pouco tempo.
Ele ergueu as sobrancelhas, como quem não opinaria sobre isso. Vagou alguns minutos pelo quarto, eu sabia que ele queria falar algo, mas não dei tanta atenção à isso, visto que meu ferimento começou a sangrar. Abri a maleta de Liz à procura de apetrechos para um novo curativo.
— Quando Jenny saiu... Não pareceu tão arrasada como quem acabou de terminar um relacionamento...
Sentei-me na cama, extenuado pelo esforço de ficar em pé sem ser sustentado pelas mãos ocupadas com gazes, fitas esparadrapo e um frasco de um liquido viscoso que Liz costumava cobrir o ferimento.
— Não terminei com ela, Roy... Me ajuda aqui, por favor.
Ele me olhou, não estava surpreso, e sim curioso.
— Mal consegue ficar em pé, como acha que irá resolver seus problemas?
— Apenas me ajude nisso.
Ele chegou próximo a mim e pegou os utensílios de minha mão, logo puxei minha blusa deixando a mostra o curativo encharcado de sangue.
Engoli em seco, fazer novos curativos era quase uma tortura, não sabia por que ainda doía tanto.
Vi os olhos de Roy se estreitarem quando removi o gaze sangrento, enquanto eu sentia repercutidos calafrios.
— Cara, isso aqui ta bem feio...
— Liz costuma jogar esse liquido por cima antes de fechar o curativo — disse, ignorando seu comentário.
— Ei, não se esqueça que também serei médico.
Roy pegou uma gaze e a embebedou em um outro liquido que estava próximo à cabeceira.
— O que está fazendo?
— Você pediu ajuda. Precisa limpar antes de fazer outro curativo.
— Não tenho tempo pra isso, Roy. Por favor, faça apenas o curativo.
Sem contra-proposta, ele jogou o gaze no lixo ao lado da cama e iniciou o curativo.
— Se quer saber, Dakota perguntou de você... — disse, enquanto derramava o liquido viscoso na ferida.
A surpresa colidiu com a dor, me fazendo ranger os dentes.
— Perguntou? O que ela disse?
— Se você já estava melhor. Sabe como é, Veronika é curiosa e tive que dizer que você estava doente... Dakota jura que pegaram a mesma doença, afinal, só hoje ela conseguiu levantar da cama.
— Não estive com ela...
— Nem poderia. Você está doente, ok?
— Disse que ainda estou doente?
— Sim. Até por que não é cem porcento mentira. Sabe que não passará da porta com Liz em casa.
— A menos que ela veja que estou melhor.
— Essa eu pago pra ver, Quasimodo*.
Ele riu. Demorei pra entender a referencia.
Passar por Liz não seria tão difícil quanto fingir estar bem diante de Dakota. Era difícil endireitar a postura, já que qualquer movimento que eu fizesse, meu ferimento parecia repuxar; e ficar com a postura íntegra seria impossível.
Levantei-me devagar, e caminhei em passos lentos até a porta, sentindo as fisgadas.
Roy não me impediria, é claro, mas também não estava cem porcento de acordo.
— Se Liz perguntar, diga que fui consertar minha bagunça — eu disse, antes de sair e descer as escadas sem causar ruído.
Eu não sabia exatamente como iria fazer aquilo, talvez tivesse que inventar alguma história. O que sabia, é que não poderia deixar passar nem mais um dia. Precisava salvar aquilo que ainda nem havia começado com Dakota.
— Vi Megan na enfermaria hoje, Matt... — Liz puxava assunto. Estavam espalhados pelos sofás da sala.
— Viu? — Matt parecia desinteressado, mas não deixaria Liz no vácuo.
— Sim. Estava doando sangue, um gesto bonito, aliás. Hoje em dia poucas pessoas fazem isso.
Até então eu estava apenas ouvindo a conversa, mas não pude deixar de reparar, depois do que Liz disse.
Megan doando sangue? Aquilo me intrigava, mas também me inspirou uma boa ideia.
Do topo da escada, tentei avistar meu celular. Estava na estante, muito próximo de Liz.
Eu não conseguiria descer as escadas e passar pela porta sem que ela percebesse, tampouco pegar meu celular.
Voltei para o quarto, Roy continuava sentado na cama, agora com seu celular na mão.
— Preciso de um favor — eu disse.
Ele me olhou, não estava surpreso, sabia que eu não passaria por Liz.
— Preciso que pegue meu celular na sala e me traga. Vou sair pela janela mesmo.
— Acha mesmo que vai conseguir? Eu não apostaria nisso...
— Vou tentar cair sem quebrar nada.
Ele riu. Logo saiu do quarto e voltou em poucos instantes com meu celular na mão. Roy era bom nisso; fazer coisas sem que ninguém percebesse.
Abri a janela e olhei pra baixo. Constatei que nunca pareceu tão alto quanto naquele momento; devido ao meu estado, poderia complicar ainda mais minha situação. Mas ainda assim, valia a pena arriscar.
— Vou levar outra camisa, por precaução — comentei, enquanto pegava qualquer uma na gaveta. — Acha que Liz escutaria minha queda?
— Acho que na condição em que está, sua queda faria bastante impacto. Isso chamaria atenção não só de Liz, mas de todos.
— Consegue distraí-los por um momento?
— Posso tentar. Seja rápido.
Roy caminhou até a cômoda e pegou um rádio portátil bem antigo. Uma vez, ele havia ligado aquilo no volume máximo e feito todos pularem de susto. Teria que se preparar para novos xingamentos.
Enquanto Roy saia do quarto, eu me ajeitava sobre a janela pequena. Não sabia ao certo como cair; a verdade é que qualquer que fosse a posição, seria um verdadeiro sofrimento. Então só precisaria proteger o celular e a camiseta.
Esperei ouvir o rádio de Roy tocar; e assim que se procedeu, eu saltei, sem pensar muito.
Arrojei por cerca de dois metros. Por sorte não quebrei nada, mas a dor em meu corte foi tão intensa que me deu vontade de vomitar. Concentrei-me para que isso não acontecesse, e com muito esforço me coloquei em pé, ou quase isso.
Com a mão por cima do curativo, pude sentir o sangue escorrer entre os dedos. Aquilo não ia mesmo cessar.
De dentro da casa Roy fingia estar com problemas em desligar o rádio, enquanto todos reclamavam, aproveitei a brecha e sai dali.
Caminhei até meu carro, eu sempre deixava a chave no contato, sabia que isso um dia me beneficiaria.
Enquanto dirigia pra longe da casa, peguei meu celular.
Haviam três chamadas perdidas de Dakota, em horários bem distintos. Ela não era o tipo de garota que colocava pressão, mas com certeza estava pensando porquê eu não retornara as ligações. Resolveria isso mais tarde; primeiro precisava me livrar daquele buraco impertinente.
Procurei o contato de Megan e selecionei chamada.
— Megan, preciso da sua ajuda.
(...)
Em poucos minutos eu estava na casa de Megan. Ela não estava lá, mas chegara logo atrás de mim.
Descemos o porão, e naquela altura, minha camiseta já estava irreconhecível devido a tanto sangue.
Megan não estava entendendo, mas esperou pra perguntar, já que eu estava disposto a beber mais sangue. Ela não ousaria me dar chances pra desistir.
— Primeiro, me garanta que esse sangue não é seu.
Ela estreitou os olhos; minha suspeita estava estampada em seu rosto. A culpa transpareceu.
— O que está dizendo?
— Ouvi Liz dizer que te viu na enfermaria da faculdade hoje. Doando sangue.
Megan riu, parecendo um pouco aliviada.
— Só me senti culpada em roubar as bolsas da faculdade, foi a maneira que encontrei de recompensar.
— Por que ficou assustada quando toquei no assunto?
— Achei que não acreditaria em mim. Que voltaríamos a estaca zero. E é evidente que está precisando de sangue.
— Prove que não é seu.
— Ok. — Ela pegou sua mochila que havia jogado no canto, e tirou um papel. — Aqui está escrito meu tipo sanguíneo: O-. Não há como ser alterado, me deram hoje na enfermaria, pode ver a data de emissão.
Olhei pra ela, procurando algum vestígio de mentira, porém aquele papel havia mesmo acabado de ser emitido, ela não teria acesso à isso, além do que, havia uma assinatura do responsável.
— Pode ver, não há nenhuma bolsa marcando O-. — Ela abriu o frigobar; haviam várias bolsas, de fato nenhuma delas era do tipo sanguíneo de Megan.
— Ok, acredito em você.
Ela sorriu, satisfeita.
— Escolha. — Ela estendeu a mão em direção ao Frigobar. — Você já sabe como faz.
Olhei pra ela, sentia um pouco de receio, mas era a única maneira que eu havia encontrado, talvez meu corte não havia cicatrizado por falta de sangue. Meu corpo andava me dando várias pistas de que eu precisava focar em sangue humano, estava começando a aceitar isso.
Peguei uma bolsa qualquer; pra mim, o tipo sanguíneo ainda não fazia diferença, era tudo sangue humano, todos seriam deliciosos e substancial igualmente, nem havia experimentado todos pra saber diferenciar.
Diferente de como era com os animais. Eu sabia diferenciar qual era mais apetitoso e nutritivo. Por isso, preferia sempre caçar felinos.
Sem rodeios, tirei o tubo da bolsa e virei-a em minha boca.
A sensação foi muito parecida como da última vez. O frenesi, o êxtase.
Encostei-me sobre um balcão, com os olhos fechados e a cabeça girando; soltei a bolsa e ela caiu vazia ao chão. Levei um tempo pra me recuperar; não afoitei-me a pegar outra.
Me lembrei do porquê estava ali, e também lembrei que Megan estava ali.
Ela me olhava, paciente. De fato, esperava que eu fosse querer mais; então pra não restar dúvidas, fechei o Frigobar.
Ela abriu a boca pra falar, mas eu a impedi.
— Só uma. É o suficiente — declarei.
Ela assentiu uma vez, sem relutar.
— Ao menos, dessa vez você não saiu correndo.
Me afastei do Frigobar; aquilo, aos meus olhos, parecia uma mina de ouro. Sentei-me sobre uma cadeira próxima e levantei a camiseta encharcada de sangue.
Sobre o curativo, o sangue ainda estava fresco, recente. Puxei, então, para poder contemplar a cicatrização. Mas nada parecia acontecer.
— Vai me contar como ganhou isso ai? — Megan olhava com cuidado.
— Foi uma estaca. O pai de Jenny devia estar querendo me matar, ou seja lá o que quisesse fazer comigo... Eu só adiantei as coisas para ambos os lados, mas ao contrário disso, só me trouxe essa grande dor de cabeça. Essa droga nunca cicatriza.
— E nem deve. Como era essa estaca? — Ela não parecia apenas curiosa, devia saber algo sobre as estacas.
— Não lembro muito bem... Tinha pouco menos de trinta centímetros, uma planta fixada em volta e alguns números e letras gravadas.
Megan arregalou os olhos, estava claro que sabia qual estaca eu me referia.
Ela correu em sua mochila e tirou um livro grande e aparentemente antigo. Estreitei os olhos, tentando imaginar aonde ela conseguira tal livro.
Megan colocou o livro sobre o balcão, fez um estalo devido ao peso, então passou a folheá-lo até parar numa página específica.
Ela apontou o dedo numa imagem estampada na folha.
— Era parecida com essa? — perguntou, ansiosa.
— Definitivamente. É a mesma.
Na imagem, era apenas um desenho. Mas detalhava exatamente como era a estaca. Eu tinha certeza.
— James, você poderia ter morrido! — disse, com clareza. — Existe no máximo três dessa estaca no mundo! Na realidade, duas delas não é vista há milênios. Cada uma delas tem uma marca diferente pra poder identificá-la, e provavelmente a única que andou circulando por aí, é a mesma que te feriu. É tão rara, quanto mortal. Não acredito que estava esse tempo todo com o pai de Jenny.
— Megan, o que está falando? Como sabe tudo isso? Que livro é esse?
— Esse livro relata muitas coisas sobrenaturais. E se a estaca está nele, é por que é verdade.
— Aonde você conseguiu esse livro, Megan?
— Não importa! Você só precisa ler isso.
Ela apontou mais uma vez para a folha, só que dessa vez, em cima de um pequeno texto embaixo da imagem.
"Estaca de Cedro
Não apenas sacrificais, levais à sofrimento perpétuo.
Uma vez que usada, fragmentos ficarão, cedo ou tarde morrerás."
— Eu não entendi... O que quer dizer essa última frase? — perguntei, preocupado.
— Você tem estilhaços da estaca alojada em suas cavidades, elas estão caminhando em direção do coração, James. Isso te levará à morte.
* Quasimodo: O corcunda de Notre-Dame.
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