Capítulo 18 - Entranhas
Acordar naquela manhã corpulenta, com o frio congelante, ricocheteando a vegetação ao redor dos ranchos e simples residências, indicava que mais uma manhã o ar penetrante só piorava um dia após o outro.
E Eduard Martozzi sentia o frio atingir em seus braços, descobertos, enquanto atravessava a vazia estrada, logo atrás do sr. Vellian, deixando a trilha entre os pinheiros para trás.
As galinhas dentro do saco já não davam mais tiques nervosos, quando o sr. e sra. Jhonson's cruzou o cercado incompleto do lado esquerdo da frente da casa, e Eduard mais atrás. Seu olhar, outrora fixava em pontos distintos daquela paisagem da estrada e as duas casas que conseguia avistar no entorno. Seria difícil se acostumar com o vazio das pessoas transitando, pensou ele.
Sr. Vellian Jhonson's abriu a porta, deixando todo o ar congelante entrar, observando Norton ao lado da lareira, em sua poltrona, as mãos sobre as pernas, encarando o piso da sala. Do outro lado, desta vez em pé, Elizabeth debruçada sobre as costas da poltrona, encarando cada pessoa que passava naquela porta. Estava mais inquieta. Suas filhas Carol e Ana Lusia mais próximas da janela, assistia tensamente o silêncio mórbido.
Com seu sorriso desajustado, sr. Vellian foi andando a passos cansados, atravessando a sala, mas curiosamente ninguém retribuiu o gesto, fazendo com que o velho desfizesse, assumindo um semblante sério.
- Mas que diabos aconteceu? - perguntou ele, olhando de um lado da sala, para o outro.
- O senhor ainda não sabe? - rebateu instantaneamente, Elizabeth, ajustando o corpo.
- Saber o que?
O Velho encarava Elizabeth, sendo tocado com o braço de Margareth, parando em seu lado, fintando-o.
- Abra a torneira da pia e veja o que sai de lá – indicava Elizabeth, dando a volta pela poltrona, sugerindo que o sr. Vellian fizesse o mesmo.
Cauteloso, o senhor se direcionava a passos lentos, sempre procurando os olhares da sua esposa, que vinha logo atrás. Esta estava com convicção em seu rosto. Sr. Vellian confirmou com ela e voltou a olhar a pia onde já estava a sua frente. Girou a torneira e o sangue desceu.
Rapidamente ele girou a torneira de volta, incrédulo, mas sem falar nada. Encarou novamente os olhares curiosos dos demais da sala e retornou a olhar o sangue que escorria pelo ralo da pia aos poucos. Coloca sua outra mão sobre a pia e abaixa a cabeça, como se pensasse em algo.
- Está acontecendo em outras torneiras? - perguntou ele.
- Sim! - respondeu quase que rispidamente, Norton, lá do fundo da sala, embora não quisesse implantar esse tom de voz.
De costas, após a resposta que o velho recebeu, permaneceu.
- O riacho mais próximo... - sussurrou pra si.
- O que ele falou? - perguntou Elizabeth, mais atrás, ao lado de Margareth.
- Eu... - suspirou Margareth - ... não escutei. Querido, o que você falou?
Eduard surgia na cozinha, querendo entender o que estava acontecendo, afinal, havia saído assim que amanheceu e não presenciou o incidente macabro. Com os braços cruzados, assistindo o sr. Vellian pensando no que falar, repudiava a cena do sangue ao invés de água, descer pelas torneiras.
- Talvez... talvez seja o riacho – respondeu sr. Vellian, desvencilhando da pia, encarando cada um que ali estava.
- Como assim o riacho? - ainda incrédula, Elizabeth jazia por explicações, embora os Jhonson's não tivesse motivos para explicações. Estavam presenciando aquilo do mesmo jeito que ela.
- É... - quem falava agora era Margareth, andando em direção a janela da cozinha, próximo a porta que dava acesso aos fundos. Parecia imaginar rotas ao olhar por meio daquelas árvores no fundo, ao longe do seu quintal. - ele corta boa parte aos arredores da cidade, faz sentido...
- O que é que corta toda a cidade, por favor me expliquem – pedia Elizabeth.
- O riacho. Ele abastece boa parte das outras cidades, até chegar na cidade mais próxima da gente, que é justamente onde o governo conseguiu fazer o resgate, porém lá, há uma boa encanação, processos de filtração e distribuição, mas aqui, das cidades dos interiores, ou precisamente nesta cidade, a encanação é bem mais básica. A nossa água vem dele – explicava Margareth, enquanto gesticulava e andava de um lado da cozinha para o outro.
Quem abriria a boca para perguntar, talvez, a ligação do riacho com o sangue jorrar das torneiras, era Eduard, porém sr. Vellian exaltou-se primeiro:
- ... e possivelmente nossa água possa tá contaminada – o velho olhava para Eduard, estático ao lado da passagem – Pelo menos estou achando que seja.
- Então vamos verificar! - apressou-se em ressaltar, Elizabeth, - pra qual lado fica esse riacho?
Repentinamente, sr. Vellian Jhonson's encara sua esposa após o término da fala de Elizabeth, com Margareth respondendo a mesma feição no rosto.
Elizabeth passou pelos dois, andando a passos largos, voltando para sala.
- Bom, se eu não me engano – apressou-se sr. Vellian, mancando, em virar-se e se direcionar para sala onde parecia todo mundo se reunir involuntariamente – o acesso até o riacho é feita aqui pelos moradores com aquela estrada do lado esquerdo que possivelmente vocês viram no caminho até aqui...
- Certo, vamos descobrir isto – dizia Elizabeth inquieta, porém assertiva nas palavras.
Sua ânsia em descobrir se de fato era o que os sr e sra. Jhonson's suspeitava, lhe consumia. Já não importava com os fios loiros ensebados, saírem do rabo-de-cavalo feito noite passada. Rumava desta vez pra porta da frente.
- O que vai fazer? - perguntou Norton, da poltrona, seguindo Elizabeth com os olhos.
- Pegar minha arma – respondeu ela, sem mesmo parar ou olhar para Norton.
Abandonou a todos, caminhando ao trailer estacionado ainda ao lado da camionete. O cheiro de umidade subia e preenchia todo o ar ambiente ao pisar sobre o gramado. Elizabeth não escondeu o desgosto daquele odor. Olhou para toda a extensão da estrada antes de abrir a porta do trailer e subir.
A arma que Elizabeth procurava estava lá, encostada no canto ao lado do banco e mesa, do jeito que ela deixou. Mesmo assim ela demorou dentro do trailer. Sentou em um dos bancos, e por instantes fintou o para-brisas bem mais a sua frente, aos poucos relaxando os braços sobre a mesa. Bastou alguns segundos e o para-brisas já não mais importava, seus pensamentos estavam além, ela estava devaneando. Talvez quisesse finalmente ter aquele momento sozinha.
- Mãe... - gemeu - ... pa... pai – a voz embargando. Deixando escorrer a lágrima contida – o que aconteceu com vocês? Por que não me esperaram chegar. Mesmo morando longe, eu chegaria a tempo...
Por fim, desabou por cima da mesa, aos prantos.
- Mãe?
Depressa, Elizabeth tratou em enxugar o rosto com os punhos da jaqueta jeans. Jogou os cabelos para trás rapidamente e abriu a porta.
- Está chorando? - perguntou Ana Lusia com estranheza na voz.
Mais ao fundo, se formava um aglomerado de pessoas de baixo do pequeno alpendre da entrada. Todos pareciam sair, talvez, dispostos a desvendar o que acontecia para com o riacho, se caso fosse concretizado que seria ele o responsável pela água cor de sangue.
Elizabeth fungou o nariz, já avermelhado.
- Estava – respondeu ela, desviando o olhar de sua filha, sem jeito – mas, não é por isso não sabe? - apressou-se em se explicar.
- Mãe, tá tudo bem.
- Vamos ficar bem, iremos embora caso ... - suspirou - ... não haja nada nesse riacho e esse caso não houver mais explicações. Cuidarei de vocês duas. Sempre.
- Mãe – suplicou, Ana Lusia, para que sua mãe parasse de falar e o olhasse nos olhos – vai ficar tudo bem. Desde que o papai foi embora, sempre cuidamos umas as outras. Eu cuidarei de você.
Elizabeth sorriu, em meio as lágrimas que escorriam novamente, chegando a encostar na boca. Encarou por alguns segundos aquela nova mulher que Ana Lusia se formava na frente dela. Desceu os degraus do trailer, com o rifle em uma das mãos, e abraçou a ainda garota.
- Quando foi que você cresceu tanto assim? - sorria enquanto desta vez que choramingava era Ana Lusia, apertando sua mãe no envolto do abraço. Soltou-se do abraço – Quero que fique com sua irmã, lhe prometo que eu vou ficar bem e caso tudo der errado, eu juro que voltarei.
- Mas mãe... - insistiu a jovem.
- Ana Lusia, por favor.
Sua filha insistiria mais algumas vezes e Elizabeth sabia que sim, afinal, as discussões que tinha com Ana Lusia desde o colegial da garota, eram intensas. A insistência sempre testou a paciência de Elizabeth. Mas ao invés disso, Ana Lusia apenas virou o rosto para ver o sr. Vellian passar ao seu lado, parando no canteiro da estrada. Eduard em seguida e ainda parado de baixo do alpendre, Norton, agachado, dialogando com a Yallow.
Ao ver ele ali, possivelmente conservando sobre a ida dele até o riacho com sua filha, Elizabeth se prontificou:
- Norton!
Ele, arqueou-se e a encarou.
- Ana Lusia ficará pra olhar Carol, ela pode olhar sua filha também.
Concordando, Norton voltou seus olhos novamente para Yallow, cochichou e a pequena assentiu, ficando de pé, olhando para Ana Lusia de longe, da sua direita. Norton então desceu, ajustando o que seria a arma encontrada no casebre, nos fundos da sua calça, parando ao lado de Elizabeth.
- O que fará ou não mudar meus pensamentos sobre sair daqui, vai ser o que a gente descobrir desse riacho. Não vou querer arriscar a vida de Yallow por ai, sem rumo.
- Mas não vai querer mais ficar aqui, assim como eu, se descobrirmos que a água de sangue que está saindo da torneira, não teria a ver com o riacho, e sim com as palavras do padre...
- É por isso que estou indo – respondeu Norton, por fim.
Ana Lusia tinha entendido sua tarefa enquanto sua mãe estivesse fora. Abandonou os gramados e guiou Yallow para dentro, dialogando com ela, onde Margareth surgia na porta, sugerindo que tomassem cuidados.
Vellian iniciou a caminhada até a estrada que dava acesso ao riacho. Cautelosos, os demais ia seguindo. Não demorou para que a residência dos Jhonson's sumisse por completo da visão ao fazerem a curva e desta vez, precisando passar por cima de algumas cercas acabadas, de madeira oca. Além dela, o gramado era consideravelmente extenso, cenário ideal para o pasto. O curioso era que nenhum animal rondava naquela região.
Foram se aproximando das árvores, com trilhas para serem feitas, mais ao fundo, até entrarem.
O silêncio parecia ser lei entre eles. Ninguém tinha motivos para debater ou discutir algo. Nem mesmo aquela caminhada serviu para esquentar os corpos dentro das roupas vestidas. O frio surgia abruptamente.
Só pararam, enfim, de caminharem pela extensão daquela floresta, quando Vellian sinalizou.
- Mais a frente é o riacho.
Elizabeth encarou Norton que havia parado ao seu lado, enquanto Eduard encostava em uma das árvores.
Receosos, continuaram a caminhada até conseguir enxergar a borda. As árvores ficaram pra trás. Pisavam apenas em gramados úmido mais uma vez, em vez de terra e musgos. E a feição em cada rosto presente foram se transformando em repúdio. Elizabeth era quem mais se aproximava do riacho mesmo depois do que assistia. Era como se fosse involuntariamente, até ser parada por Norton, que a segurava pelo braço.
Já não era mais água que corria naquele riacho. Era sangue. A anomalia se concretizava quando os olhos daqueles que viam, olhavam desde o começo do riacho de onde seus olhos conseguiam enxergar, até a outra ponta. Sangue. Mas não havia somente isto.
Neste momento Elizabeth se solta de Norton, e golfa a ponto de enverga-se.
Pedaços de corpos, evidentemente de pessoas, boiavam e seguiam rumo para onde a transação do riacho seguia.
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