Capítulo 4 | [Típico dia de reunião]-parte 1
🔶 23 de janeiro de 2149
🔸Domingo | 08:07
A manhã de domingo chega como qualquer outro dia daquele final de mês: com um sol estridente e brilhante que faz um inferno na Terra.
Trey rola para fora da cama, com calor, mas se sentindo renovado da noite de ontem. Tropeça em meio aos cobertores cinzentos, enquanto esfregava seus olhos, indo direto para o banheiro. O espelho reflete sua figura sonolenta logo que entra, repleto de ataduras e esparadrapos, que sua mãe tinha feito questão de colocar, apesar de não precisar. Aos poucos, retira todos, revelando apenas alguns resquícios de cicatrizes nos locais.
Melhor do que eu esperava.
Isso o faz lembrar de algo muito importante, assim que percebe também seus olhos avermelhados. Ele abre o seu espelho, se encontrando com prateleiras quase vazias, tendo do mais básico, sua pasta e escova de dente, até uma seringa ao lado de uma cartela com três frascos de líquido incolor.
Retira os últimos dois itens.
Já era final do mês, o que significava que iria completar o prazo de dois meses sob efeito da droga, que mantinha sua forma humana o mais estável possível.
Segue os procedimentos com rapidez, dando uma batidinha na seringa e empurrando o êmbolo com cuidado para tirar o excesso de ar.
Sua veia fica visível o suficiente e ele insere a agulha da forma que sua mãe o ensinou, não recorda da primeira, ou segunda, ou décima, vez do procedimento, mas nesse ponto já se tornou uma memória muscular. Não era necessário ter todo esse cuidado, mas romper uma veia não era nem um pouco divertido, e a noite de ontem demonstrou isso muito bem.
Apenas um formigamento fica pelo local onde a seringa é inserida, e, terminado o processo, ele só para e espera.
Aguarda encarando os azulejos brancos do banheiro, uma ansiedade crescendo no seu peito e nada do que deveria acontecer ocorre.
De novo...
Suspira fundo e espia se a porta do seu quarto estava fechada. Sua audição fica mais aguçada e tudo que ele escuta é uma conversa abafada no primeiro andar, e os roncos de Miguel.
Certo, tudo limpo.
A porta do banheiro é trancada de forma silenciosa e suas mãos se dirigem, rapidamente, a mais um dos frascos.
O mesmo processo se repete, com a agulha pairando novamente sobre o seu braço.
E se tiver outro ataque?
Ele cerra seus dentes, ficando tenso com a possibilidade de ser inútil em um possível ataque. Talvez o metamorfo só estivesse tentando assustar os dois, mas isso não anula a possibilidade de ser uma ameaça verdadeira. Culpe Miguel e seu medo irracional que o infectou.
A seringa se afasta da sua pele e ele começa a guardar o material, com sentimentos conflitantes.
Até o dia da Academia eu posso tomar a outra dose e tudo voltará ao normal...
Ele sai do banheiro tenso e seu caminho até a porta é interrompido pelo caderno vermelho se destacando em sua escrivaninha preta.
Eu anotei o que aconteceu ontem?
Pensa até chegar a conclusão de que tinha ignorado sua obrigação. Pegando um pitoco de lápis, que estava jogado pela mesa, ele coloca a data e começa a anotar os acontecimentos do dia anterior.
Sua mãe sempre mandou ele ter coisas importantes anotadas, devido os efeitos colaterais da droga. Porém, depois que a dosagem foi aumentada para suprir qualquer instinto e estabilizar sua forma, aquele ato se tornou uma verdadeira necessidade, principalmente após decidir aumentar ainda mais a dose nos últimos meses pela falta de efeito em seu corpo.
Antes ele não se lembrava das memórias de quando ele era um filhote, mas agora as coisas simples do dia a dia tem sido tiradas dele.
Uma das vantagens de ser um metamorfo é sempre poder modificar, e ter acesso, a qualquer parte microscópica do seu corpo e fazer o que quiser com isso, ainda que não seja permanente, 100% consciente e efetivo. Ou seja, isso lhe dá acesso a qualquer memória sua, ou pelo menos deveria, pois, o medicamento tem se tornado um grande obstáculo.
Não é como se ele não quisesse pagar o preço, mas ele se encontrava em um impasse.
Não queria ser descoberto mentindo por estar tomando dosagens maiores da droga. Não queria trazer, de forma alguma, mais nenhum problema para eles.
Mas também preferia não botar em risco sua família por conta de algo bobo como isso. Faria de tudo para impedir que um metamorfo qualquer fizesse alguma coisa com eles.
Ele termina de escrever e aproveita para rever os outros dias anotados, relembrando que não podia esquecer de fazer um trabalho de biologia para daqui a uma semana e pouca, em outras palavras, precisava de uma dupla.
Após se espreguiçar, segue até o corredor escuro, iluminado vagamente pela janela no final. A luz reflete em três portas ao longo do caminho: a do escritório do seu pai, a do quarto dos seus pais e a de Miguel, que ficava no lado direito, a frente da sua.
Sem decorações, sem fotos de família, como se até isso devesse ser escondido.
Seus dedos deslizam pela parede branca e áspera, até chegarem em uma porta de carvalho: o quarto de Miguel.
Vozes ainda podiam ser escutadas no andar de baixo, tudo que ele conseguia tirar da conversa era algo sobre metamorfos. Prefere não tentar escutar mais o assunto.
Lentamente, abre a porta de Miguel, encontrando-se com a figura do seu irmão jogado na cama, murmurando algo incompreensível.
Às vezes, ele imaginava como era sonhar.
Para alguém, como ele, que nunca sonhou em toda a sua vida, até onde ele se lembrava, sonhar deveria ser uma experiência incrível. No mínimo, mais interessante do que fechar os olhos e abri-los em outro horário, sem ao menos se sentir descansado.
O celular do maior vibra no cômodo ao lado da cama, mostrando estarem mandando mensagem.
— Miguel. — Cutuca ele na bochecha.
O adolescente nem sequer se mexe, então Trey continua cutucando. Depois de uns vinte segundos fazendo isso, o outro resmunga, dando um tapa na sua mão.
— É sério! Tão te mandando mensagem.
Miguel murmura algo incompreensível de novo e se cobre até a cabeça.
— Então é assim? — Trey olha indignado a figura se escondendo dele.
Ele então toma a melhor atitude dentro dessa situação, jogar Miguel da cama, o que faz o maior acordar de vez.
Miguel se levanta com muito esforço e uma cara de derrota.
— Precisava disso?!
Trey deixa escapar um sorriso. — Parece bem urgente as mensagens que tão te mandando, não queria que você perdesse algo importante. — Fala com uma voz "inocente", entregando o celular para ele.
— Muito obrigado. — Ele agradece com sarcasmo e toma o celular de Trey.
O menor vê o rosto do outro ir de sonolento, para confuso, para em pânico em meros segundos.
— Merda, eu esqueci da parada do trabalho! — Ele corre para arrumar a cama e caçar alguma coisa no guarda-roupa para vestir.
— Que parada?
— Eu marquei de resolver alguns trabalhos com o professor Louis às 10:00. — Ele termina de colocar a roupa para sair.
— Em um domingo? Você já não vai se encontrar com ele na segunda?
— É uma parada urgente, por isso que pedi para falar com ele hoje. — Termina de pentear o cabelo e sai do banheiro para pegar os materiais.
O maior se retira às pressas do quarto, carregando uma mochila cinza com detalhes laranjas. Trey desce logo em seguida, encontrando seus pais na cozinha e Miguel pegando alguma coisa na mesa.
Sua mãe estava no fogão, preparando algo, enquanto seu pai estava sentado na mesa com várias papeladas.
— Bom dia. — Fala um pouco baixo.
— Bom dia, Trey! Dormiu bem? — Sua mãe responde com o ânimo de sempre. Já o seu pai dá um "bom dia" baixo, completamente focado nos papéis.
Ele responde a ela balançando a cabeça em confirmação e se senta.
— Miguel! Não precisa comer com pressa, nada vai sair da mesa! — Érica reclama.
— Foi mal, eu já tô de saída. — Miguel toma um gole rápido de café. — Tô atrasado para uma parada. — Fala já com um pão na boca.
— Que "parada"? — Sua mãe questiona, sendo respondida por Miguel de boca cheia com frases impossíveis de se entender. Também não aparentava estar tentando se explicar mesmo.
Trey ignora a conversa, apenas esperando pela sua parte do café da manhã.
— Já estou de saída também. — Alex se levanta, recolhendo os papéis em uma pasta e tomando seu último gole de café. — Quer carona?
Miguel concorda com a cabeça sem pensar duas vezes.
— É sério que eles estão exigindo relatórios em um domingo? Não poderiam esperar pelo menos até amanhã de manhã? — Sua mãe comenta indignada com seu pai, mexendo com vigor a frigideira no fogo.
— Não se pode perder tempo com isso, ainda mais com os ataques recentes. — Seu pai responde rápido, olhando para o documento em sua mão.
— Hm. — Ela termina o seu serviço e coloca a refeição no prato de Trey, que os olhos brilham no mesmo instante em que se deparam com as duas fatias grossas de picanha mal passada, mais os três ovos fritos.
— Se cuidem, então. — Ela encara por um bom tempo, com uma expressão duvidosa, seu marido.
Os dois se despedem e saem de casa. Podendo ser ouvido apenas o motor do carro lá fora.
— No que você está se metendo... — Érica sussurra, com preocupação em seu tom, enquanto acariciava sua têmpora.
— Hm? — Trey pergunta de boca cheia, percebendo só agora que os dois já tinham ido.
— Não é nada, estava só pensando em algo. — Sua mãe se senta à sua frente, nem um pouco surpresa de que o prato dele já estava vazio.
— Então, pretende ir hoje à reunião?
Ele faz uma pausa, olhando para os olhos quase idênticos aos dele. Na breve luz do sol, que adentrava a janela, Trey conseguia ver a beleza de sua mãe se iluminar.
Érica era uma mulher quase na meia-idade, mas com uma aparência nova e bem cuidada. Seus longos cabelos castanhos, levemente ondulados e volumosos, escorriam pelos seus ombros, dando destaque para sua pele de tons bronzeados. Vestia um simples vestido verde no momento, que gostava de usar todo final de semana.
Se lembra dela sempre ter um cheiro de menta característico, uma espécie de ardido adocicado, que combinava com sua personalidade. Sentia falta de senti-lo.
— E então? — Ela pergunta novamente.
Estava preparado para dizer "não", mas ele balança a cabeça que sim, tentando disfarçar o seu desânimo com um sorriso forçado.
— Sério? Agora você me surpreendeu!
Trey faz cara feia, não é como se ele não tivesse ido algumas semanas atrás em uma das reuniões.
— Vai me ajudar também a preparar alguma coisa hoje? Faz tempo que meu melhor ajudante não está comigo. — Ela brinca.
Suspira. — Pode ser. — E se levanta para ajudá-la a limpar a mesa.
Sua mãe fica boquiaberta, ficando ainda mais radiante, mas se contém cantarolando, enquanto limpava as coisas.
🌑🌓🌕🌗🌑
Apesar de sua mãe estar parecendo "tranquila", ele sentia que havia algo diferente no ar.
O desespero no rosto dela, quando avistou Miguel chegando em casa, em um estado quase anêmico, era uma imagem que preferia esquecer.
A mulher estava focada na massa em suas mãos, mas questiona. — E então... Como foi lá?
— Lá? — Trey pergunta receoso, com a colher de frango desfiado centímetros da sua boca.
— A pequena "aventura" de vocês dois.
— Melhor do que eu esperava. — Ele responde de boca cheia, percebendo a carne sem muito gosto.
— Isso é bom?
— Hehe, por aí. Por um momento, pensei que Miguel não ia conseguir lutar, mas depois parece que ele pegou o jeito.
— Ele travou no meio da luta?!
— Paralisou de cara com a criatura! Se aquilo conseguisse pegar ele, levava pelo menos metade dele!
Sua mãe fica levemente pálida, deixando cair a vasilha que estava segurando.
Trey limpa a garganta, percebendo seu tom muito "feliz". — Mas eu segurei a coisa antes que pudesse chegar nele! — Ele derrama o sal no frango.
A mulher pisca algumas vezes, ainda desnorteada, pegando do chão o objeto ainda inteiro.
— Agora entendi as feridas. — Ela abre os grandes armários do canto da cozinha e tira uma assadeira de vidro.
Trey respira fundo. — Desculpa.
Érica encara confusa seu filho.
Ele prossegue, com muito esforço. — Eu não deveria ter incentivado ele a ir. Pensei que a gente ia ficar seguro, eu sempre deixei a gente seguro. Mas... Eu não sei o que aconteceu dessa vez.
Uma mão calorosa toca no seu ombro, acariciando. — Trey, você acha mesmo que eu estou aborrecida com você? Olhe para mim. — Seu tom se mantém calmo.
O garoto a olha, observando os mesmos olhos de café que os dele, porém muito mais doces e suaves, que demonstravam apenas a verdade.
— Miguel me contou o que aconteceu quando você foi para o seu quarto, ele disse que você estava com medo. Você acha mesmo que eu te culparia por algo depois disso?
Ela retorna para a tarefa que estava fazendo. — Não, e eu nem precisaria ouvir dele isso para saber que foi um acidente.
O adolescente continua mexendo o frango desfiado, após ter se certificado de ter tirado qualquer vestígio do seu ser do talher.
Encarava intensamente a panela, perdido em seus pensamentos. — Ele podia ter morrido.
— Acidentes acontecem, Trey.
— E ia ser minha culpa.
— Trey! — Sua mãe puxa sua mão, fazendo sua atenção voltar para ela.
— Se existe algum culpado nisso, sou eu e o seu pai, e talvez Miguel, mas ninguém mais. — Ela fala de maneira irritada, talvez mais consigo mesma do que com ele.
Ele força sua expressão a se manter neutra.
— Miguel já é quase um adulto, ele sabe muito bem que tá gastando a "sorte" dele nessas brincadeiras. — Ela aperta sua mão, uma tristeza escurecendo sua expressão. — E se algo deu errado no meio disso tudo para ele estar fazendo essas coisas... Eu e o seu pai somos os únicos culpados...
Ela se afasta, voltando para sua tarefa e deixando o silêncio ser preenchido pela carne, fazendo pequenos barulhos de estouro.
Trey arregala os olhos e desliga o fogo, feliz de que o frango não tinha queimado.
— O que eu faço com isso agora? — Levanta a panela de frango desfiado na frente dela, antes que pudesse voltar com o assunto.
— Ah, agora é só colocar ali.
🌑🌓🌕🌗🌑
A tarde parecia cada vez mais quente, com o sol brilhando forte e seus raios preenchendo toda a sala. Sentia-se assando na sala.
O relógio apontava exatamente 14:00, o empadão já estava quase pronto, só precisava deixar mais alguns minutos para dourar.
Estava sentado na poltrona, afundado nela, lendo a notícia que tinha acabado de sair no blog da cidade.
"É realmente uma surpresa recebermos o grandioso Max Owen, também conhecido por muitos como o "Herói Inabalável".
Todo mundo já sabe da última missão lunar, certo?
Se não, deixa eu refrescar a sua memória:
De todas as outras essa foi uma missão muito especial, não só por ser a primeira com objetivos tão ambiciosos, mas também pelo terrível acidente que ocasionou uma catástrofe na base lunar. O que fez com que perdessem parte essencial da base e, aproximadamente, 2/3 dos seus astronautas.
Mas, apesar de tudo, nosso herói se manteve invicto perante os terrores lá de cima, motivando seus companheiros a cumprirem a sua missão!
Mais curiosidades serão lançadas até o dia do anúncio, assim como a revelação de outra combatente muito especial."
Seu celular vibra e uma notificação de mensagem do Miguel chega: "Já to chegando."
Trey se levanta, de maneira preguiçosa, indo avisar a sua mãe. Ele vai em direção às escadas do porão e desce com tranquilidade, deslizando a mão na parede, que se tornava fria e metálica conforme chegava no local.
Uma porta grossa de metal com um código de segurança fica em seu caminho.
Estranho, normalmente ela sempre deixa aberta.
Qual era a senha mesmo? Vamos ver... É algo de história, que até eu consigo me lembrar com minha memória meia boca.
A lâmpada se acende em sua mente e digita rapidamente a combinação 2-1-3-9. A porta se abre.
Um local completamente diferente da "simples" casa deles aparece em sua visão.
O ambiente era um labirinto estéril de branco reluzente, onde as paredes lisas e as superfícies impecáveis exalavam uma perfeição clínica quase opressiva. O silêncio, interrompido apenas pelo zumbido baixo dos sistemas de filtragem de ar, amplificava a sensação de isolamento. Mesas de trabalho alinhavam os lados do corredor, abarrotadas de utensílios científicos que pareciam pertencer a uma era distante, além da compreensão imediata de quem olhasse casualmente. Aqui e ali, etiquetas com códigos alfanuméricos piscavam em displays holográficos, sugerindo propósitos que não conseguia decifrar muito bem.
No canto esquerdo, sua mãe estava posicionada. O traje de proteção que vestia parecia mais um exoesqueleto de última geração do que um macacão comum, feito de camadas reforçadas de gore-tex com propriedades antimicrobianas e barreiras contra partículas subatômicas. Da cabeça aos pés, ela era uma extensão do ambiente, uma figura impessoal e meticulosa. As botas seladas e as luvas menos pesadas, embora funcionais, destacavam a gravidade do que estava sendo manuseado.
Movido por uma curiosidade que ultrapassava o seu instinto quase inexistente de cautela, ele se aproximou com passos inaudíveis, como um espectador hipnotizado diante de uma cena proibida. À frente, sua mãe manipulava uma jarra cilíndrica de material híbrido, uma combinação de vidro polimérico reforçado com uma liga metálica translúcida. O lacre eletrônico no topo parecia um bloqueio militar, exigindo não apenas uma senha numérica, mas provavelmente biometria avançada para ser destravado.
Dentro da jarra, o prisioneiro era uma aberração da biologia, em outras palavras: o fragmento de um metamorfo, ou seja, um resquício funcional do organismo original. A criatura era uma mosca ampliada a proporções grotescas, oito vezes maior do que seu equivalente natural. Seus membros desproporcionais e alongados pareciam uma paródia da engenharia evolutiva, enquanto o abdômen pequeno contrastava com o tórax hipertrofiado, como se tivesse sido esculpido em um laboratório sem respeito pelas leis naturais. As asas rachadas, cobertas de buracos como tecido corroído, refletiam a luz de forma errática, dando a impressão de que pulsavam com uma energia residual. O detalhe mais perturbador era a lâmina no centro de seu rosto, fina e afiada como uma ferramenta cirúrgica, que arranhava o interior do vidro, emitindo um som agudo e metálico.
A criatura não movia um músculo, paralisada e imprensada naquele pequeno compartimento, o qual foi etiquetado rapidamente com um dos papéis de sua mãe, como "Fragmento #06, Ala Leste".
Poderia ser o metamorfo do túnel na barreira? Mas por que ele teria ido da ala sul até a ala leste?
Érica começava a anotar algo em um diário e ele aproveita para se aproximar mais, e, pela primeira vez, a criatura se mexe, ainda que de forma suave. Seus olhos, antes completamente pretos, piscam em uma sequência de coloração verde e amarelo.
Trey entorta a cabeça de leve, curioso. A pequena ação também parece obter a atenção de sua mãe, que encara a criatura por alguns segundos até olhar para trás.
— Meu Deus, Trey! — Ela fecha o diário.
— Foi mal, esqueci de bater... — Cruza os braços, encarando a criatura estranha. — O que é isso?
Ela recupera o fôlego do susto, pegando a jarra e indo até outro lado da sala. — Um fragmento de metamorfo encontrando na ala leste.
Ele a segue, incapaz de desviar o olhar da criatura, que o encarava com uma intensidade quase humana, como se medisse cada movimento seu com uma inteligência inquietante.
Érica se move com precisão metódica, posicionando o recipiente sobre uma base equipada com conectores brilhantes e complexos. Sem hesitar, ela conecta dois tubos às entradas embutidas no lacre metálico da jarra. Seus dedos ágeis digitam um código específico no painel lateral, ativando o mecanismo. Em segundos, um gás criogênico começa a ser liberado, preenchendo o interior com uma névoa densa e gelada.
A criatura desaparece lentamente na fumaça, seus contornos grotescos se dissolvendo, enquanto o som sutil do gás que preenche o recipiente ecoa pelo ambiente.
— Imaginei... — murmura, mantendo os olhos fixos na jarra. — Mas isso parece, uh... Defeituoso? — Escolhe a palavra com cuidado, torcendo para ser a certa. — Você fez alguma coisa com ele, ou o prazo de validade já tá no fim? — Brinca, sabendo que uma hora ou outra um fragmento de aparência fraca e distorcida como aquele morreria com a ausência do corpo principal.
Érica solta um suspiro denso, que carrega um inesperado tom de pesar. — Às vezes, a maior prova de perigo está justamente na imperfeição. — Sua voz soa quase como um pensamento em voz alta, mais dirigido a si mesma do que ao filho.
O comentário deixa Trey ansioso; ele sente a garganta secar enquanto observa a criatura imóvel na jarra. — Então... um predador, certo? Mas não um qualquer... Deve ser um daqueles que come... — Sua voz falha, incapaz de completar a frase.
A mulher finalmente se vira para encará-lo, e Trey desvia o olhar, evitando encontrar os olhos dela. — Nem sempre. — Sua voz é firme, mas carrega um peso que ele não consegue ignorar. — Às vezes, eles não nascem assim... São criados por mãos cruéis. — Enquanto fala, pousa a mão no ombro dele, em um gesto que mistura carinho e preocupação.
Trey recua um passo, sua expressão endurecendo de forma sutil. Érica o observa, confusa, mas antes que pudesse questionar, ele retoma a conversa, o rosto agora ausente de qualquer sentimento, como se o momento anterior jamais tivesse acontecido.
— Por que você tá com uma coisa dessas? Pensei que você não fizesse mais esse tipo de serviço.
— Seu pai insistiu que eu olhasse. — Ela tira o "capacete" de proteção. — E acredito que eu entendo o porquê. — Seus olhos se mantêm focados na criatura, sendo congelada sem qualquer resistência.
— O que você achou?
Ela pega a jarra e se aproxima de um compartimento embutido na parede, semelhante a um freezer de alta tecnologia. A superfície metálica da porta emite um brilho opaco, cortado apenas por um visor digital que exibe leituras ambientais em tempo real.
A mulher desliza a jarra para dentro do compartimento, onde prateleiras alinhadas mantêm recipientes semelhantes, mas nenhum equivalente ao que estudava atualmente. O som sutil de vedação hermética preenche o ar quando a porta se fecha automaticamente, garantindo o isolamento total da criatura no ambiente gélido e controlado. A temperatura interna é tão baixa que o ar ao redor do freezer parece ondular levemente.
— Nada que você deva se preocupar. — Responde de maneira pensativa.
— Nem um pouquinho? — Pergunta, perdendo a seriedade para dar lugar à sua curiosidade. Estava quase se transformando em sua versão de sete anos para derreter o coração da mulher e conseguir algumas respostas.
Ela ergue uma sobrancelha, cruzando os braços. — Eu não pedi para você ficar de olho no empadão?
Trey arregala os olhos e sai às pressas.
🌑🌓🌕🌗🌑
Por sorte, o empadão não chegou a ficar queimado, mas ele estava, consideravelmente, mais crocante. Na concepção de Trey, é claro.
Miguel tinha chegado logo em seguida, todo suado e derrotado pelo calor. Dizendo que tinha conseguido resolver o assunto e aproveitou para fazer o treino do dia na academia, por isso a demora.
Claro que também teve o detalhe dele ter chegado atrasado e derramado sem querer suco no seu chefe, mas essa parte sua mãe não precisou saber.
— Trey! A gente vai sair daqui à meia hora! — Ouve sua mãe do andar de baixo.
— Tá!
Coloca a história em quadrinhos em cima da escrivaninha e vai até o seu guarda-roupa. Abre as portas de madeira em sincronia e procura uma roupa para a reunião.
Suas opções não eram tão variadas, o que ele tinha era uma combinação de casacos e moletons com algumas calças jeans disponíveis. Tudo sempre o mais fechado e largo possível, se fosse para sair. Não pensa muito, pegando a primeira blusa preta que tinha visto e o seu casaco vermelho com vinho favorito, adornado com listras avermelhadas nas mangas, que brilhavam um pouco no escuro.
E, é claro, as suas luvas de gore-tex padrão.
Alguns minutos se passam e já se encontrava no andar debaixo, esperando pelos outros dois.
Miguel é o primeiro a aparecer arrumado com uma jaqueta, jeans padrão, com alguns detalhes laranjas neons, luvas pretas e uma blusa quadriculada por baixo. Um pequeno sorriso de lado era evidente no seu rosto, enquanto olhava para o celular.
— Vocês dois já estão prontos? — Érica chega descendo a escada às pressas.
— Aham, a gente só tá te esperando. — Miguel responde.
— Trey, pode pegar o empadão? Deixei em cima da pia. — Ela fala enquanto ajeitava as mangas bufantes do seu vestido verde, salpicado por várias bolinhas neons douradas, como ouro em pó.
Eventualmente, os três entram no carro. Miguel estava na frente batendo na porta com os dedos no ritmo de alguma música e Trey estava se segurando ao lado do empadão enquanto esperava sua mãe, que estava pegando algo em sua bolsa.
— Toma. — Érica dá uma caixa para Trey.
— Essas luvas? Aconteceu alguma coisa? — Miguel pergunta.
— Seu pai disse que aumentaram o número de guardas na área e que eles estavam sendo mais restritos quanto à verificação.
— Você tomou a dose que tinha para semana, né, Trey? — Érica pergunta.
O garoto se mantém focado na pequena caixa preta aberta à sua frente — se tivesse um laço, ele poderia até dizer ser um presente —, contendo um par de luvas longas, invisíveis para qualquer um, menos ele, se fizesse um pouco de esforço.
— Sim. — Responde baixo.
— Ótimo! Vamos então!
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.
.
-NOTAS-
Um capítulo mais caseiro e sem muitas emoções 👌
Curiosidades desse capítulo:
-Trey é bem filhinho de mamãe, mas isso envolve outras questões.
-O visual característico de Trey já teve diversas mudanças, a única coisa que permaneceu foi o casaco com detalhes vermelhos. Quando finalizar as artes dos personagens estarei postando as ideias descartadas por aqui também
-Sim, existe um laboratório e um arsenal de armas no porão deles. Não é pra qualquer um, né?
A pergunta mais importante desse capítulo é: você gosta de empadão? Sim ou claro?
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