Capítulo 27 | [Voltando a normalidade]-parte 3
🔶 4 de abril de 2149
🔸 Segunda-feira | 13:00
- Vocês viram a notícia sobre o Max? Ele vai dar uma entrevista essa noite sobre o que ele passou na missão! - Uma das crianças na mesa próxima anuncia.
- Que legal! Ele deve ser tão forte pra ter sobrevivido! - A menina ao lado deles diz.
Um dos jovens se coloca em uma postura de "super-herói". - Quando eu crescer, eu vou ser igual a ele, um dos melhores combatentes do mundo! Não vai ter bicho que eu não consiga enfrentar.
As crianças riem juntas, continuando a discutir sobre os combatentes, enquanto outras se juntavam ao grupo.
A missão lunar havia sido um sucesso e, mesmo após meses, a cidadela ainda vibrava com ânimo por uma das maiores vitórias da humanidade contra os lunares, que, de anos em anos, ainda continuavam a tacar estilhaços de lua no planeta, ameaçando a extinguir a vida na Terra.
- Vocês acham que todos os lunares foram mortos mesmo? - Uma segunda garota pergunta.
O garoto ao seu lado responde. - É claro que sim! Você não viu aquela explosão?! Eu pensei que a lua ia explodir toda, mas Max foi tão bom que só matou todas as coisas!
- Mesmo com traidores na missão!
- Isso mesmo!
As crianças continuam a conversar animadamente, mas Trey não poderia se importar menos com as lembranças de pessoas aleatórias falando sobre aquelas baboseiras, ele só se importava com o frango assado que estava sendo servido no prédio da reunião, mesmo que ele estivesse em um sonho, tudo parecia muito real nos últimos tempos.
Até ele ser servido um pedaço minúsculo de peito, com a justificativa de que ele era pequeno demais para um pedaço maior. Talvez ele estivesse sendo influenciado pelo seu eu do sonho, mas a tristeza que sentiu naquele momento foi brutal.
Ele levanta a mão e aquela memória se desfaz. Trey estava de volta no "nada".
Muita coisa havia acontecido desde o ataque, uma das principais, e mais surpreendentes, é que ele não esquecia mais das coisas, pelo contrário, suas memórias continuavam retornando a todo vapor com os seus sonhos, e, como bônus, ele estava conseguindo controlar eles. Talvez estar dormindo boa parte do tempo tenha o ajudado com isso.
Vamos ver... O que aconteceu depois dessa reunião?
Levanta a mão e a joga para o lado, um vulto de cores passa em sua frente, até pararem e apresentarem o momento que desejava.
Ele estava do lado de fora, no estacionamento, com o grande prédio da reunião ao longe. A cidade se apresentava viva, repleta de luzes que traziam uma beleza única para aquele espaço. Em contrapartida, o céu estava preto, sem estrelas e com uma lua brilhante no céu. Um fraco olho decorava sua superfície, além de uma recém-formada cratera.
- Você ficou sabendo sobre os traidores? Nunca pensei que o ser humano poderia ser tão ruim. - O homem do carro ao lado fala, ódio em sua voz.
- Querido, talvez eles estivessem sendo controlados, nada foi confirmado...
- Pode ser, mas eu não duvido da capacidade das pessoas, quando elas querem, elas podem ser podres. - Ele entra no carro, seguido de sua esposa.
Trey sente algo puxando a manga do seu casaco gigante. "Miguel" estava segurando a porta do automóvel, o chamando para entrar e aguardar a chegada da sua mãe.
Ele assente, mas um som sútil, quase imperceptível, chama sua atenção.
Alguém estava chorando.
À sua direita, a uma distância considerável dele, havia uma garota, parecendo ter sete anos, a mesma idade que tinha em seu sonho. Usava um vestido ciano repleto de detalhes de flores e se encontrava abraçada às suas pernas, abafando o choro. A menina levanta a cabeça e por uma fração de segundo seus olhos castanhos se encontram, mas, assim como todas as pessoas dos seus sonhos, ela possuía o rosto embaçado.
Mesmo com sua incapacidade, estava claro para ele quem era aquela.
Lara?
"Miguel" continua a puxá-lo até a porta, porém, ele decide fazer algo ousado dessa vez: sair do roteiro.
Como se estivesse se separando de uma cola resistente, ele consegue, com muito esforço, se desunir daquela versão, que segue com "Miguel", com tamanha indiferença em seu semblante que gera incômodo até em Trey.
Ele se olha, vendo que estava com a sua idade atual e com suas roupas de dormir. Era como se ele fosse real demais para aquele plano, fazendo todo o cenário parecer ficção.
Certo... Isso é estranho, mas não deve dar em nada!
Um "crack" estoura em seus ouvidos, e ele percebe rachaduras se formando na realidade do sonho, como se algo estivesse tentando fazê-lo se afastar dali, da mesma forma que aconteceu no sonho do cachorro e diversos outros que teve ao longo das semanas.
Sua atenção retorna à menina, agora rodeada por seus pais, que a confortavam, mas suas palavras não importavam, apenas as da garota. Ele se agacha com cuidado, com medo de criar mais fraturas no chão. Olha para a esquerda, vendo que o carro de seu pai ainda estava estacionado.
Eu ouvi essa conversa toda?
A garota respira fundo, a voz trêmula e embargada. - D-desculpa... Eu só... eu não sei como... - As lágrimas voltam a escorrer, a interrompendo. - Eu só queria que eles...
E então, silêncio. Não apenas suas palavras desapareceram, mas todo o mundo ao redor. As rachaduras, que antes avançavam lentamente em sua direção, subitamente cessaram. O ambiente agora parecia um espelho quebrado, estagnado no tempo.
O que aconteceu?! Por que tudo ficou...
Quando seus olhos retornam para sua versão passada, ele toma um susto.
Isso é novo...
Trey do passado o encarava, seus olhos negros como o céu noturno, vazios de qualquer traço de humanidade. Aquele olhar distante e frio não refletia quem ele era, apenas um abismo. Lentamente, com uma expressão imutável, a figura balança a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse silenciosamente alertando-o para não seguir adiante.
Trey apenas ri. Aquilo era um sonho, seu sonho.
Imagina que aquela fosse uma "brincadeira" do seu consciente-sub, ou algo do tipo, mas isso não deixa ele de ter controle sobre a sua própria mente. Quer aquilo queira ou não, ele está determinado a se lembrar de tudo dessa vez e finalmente confirmar sua possível relação com a metamorfo.
- Quem você pensa que é, tampinha? - Sorri de maneira debochada. - Eu faço o que eu quiser aqui! Essa é a MINHA mente e eu VOU recuperar minhas memórias! TODAS elas!
Ele levanta a mão e faz o movimento típico para sair da lembrança.
Contudo, nada acontece.
O Tampinha - como ele carinhosamente apelidou - abre a porta, sem tirar os olhos dele, e desce de quatro no chão, como um animal.
Trey engole em seco, ainda tentando fazer o movimento para sair dali.
- Tá, tá! Acho que a gente pode deixar isso de lembrar para depois! - Ele ri, nervoso, desejando sair daquele eminente pesadelo imediatamente, em vista de que suas habilidades padrões não funcionavam naquele espaço.
Em um piscar de olhos, ele perde o seu outro eu de vista.
O silêncio é ensurdecedor, sendo quase obscurecido pelas batidas ligeiras de seu coração imaginário. Ele dá alguns passos para trás, todos os objetos e pessoas ao seu redor parecendo sumir daquele plano lentamente, tomando tons escurecidos, ganhando a forma de sombras.
Algo se agarra a sua perna e, em questão de segundos, ele é derrubado com um forte baque. Apesar de ser um sonho, seu corpo sente as dores, sente um gancho afiado se fincar a sua pele, sendo quase ofuscado pela dor da linha orgânica, repleta de pequenos espinhos, se encravando cada vez mais fundo no seu corpo.
Mais dois ganchos são lançados quando tenta arrancar o primeiro, cada um se agarrando a um braço e o imobilizando no chão.
Enquanto lutava futilmente pela sua liberdade, Trey vê, em cima do carro, sua versão passada lentamente se revelar. Naquele momento, ele sente algo que nunca pensou que sentiria por qualquer outro ser: medo genuíno, um sentimento tão humano, que, por um instante, pensou ser uma presa humana emboscada na armadilha de um metamorfo.
A criatura aterrissa em cima da sua barriga, seu peso, desproporcional ao tamanho, parece amassar seus intestinos, causando uma dor imensa que o faz desejar vomitar.
O cintilar de uma lâmina captura sua atenção. A foice, o mesmo tipo que ele descobriu uns meses atrás, agora no antebraço da sua versão passada, brilhando contra a luz da lua.
O mundo ao seu redor apaga. Se distorcendo e fazendo tudo parecer ser feito de uma espécie de líquido, um tipo de sangue ausente de cor, enquanto uma cacofonia de conversas incompressíveis se torna presente, como se tivesse dezenas de pessoas presas abaixo dele.
Que droga é essa?!
A sua outra versão se agacha lentamente até o seu rosto, sua expressão neutra se transformando no mesmo sorriso que fez momentos atrás. O mesmo sorriso debochado.
- "Quem você pensa que é?" - Pergunta, repetindo o que Trey disse com o mesmo tom e copiando, roubando, sua voz.
A figura se levanta e a lâmina é cravada no seu coração.
🌑
Trey abre os olhos, suado, ofegante, desesperado e com uma dor indescritível em seu peito.
Quando olha para o lado, vê três pares de olhos o encarando com curiosidade. Ele toma um susto e se levanta.
- Ei, ei! Calma, Trey! - Miguel é o primeiro a falar. - É só a gente!
- Você tava tendo um sonho? - Bruno pergunta, dando uma meia risada com a reação dele.
- Parecia mais um pesadelo... - Mari provê, preocupada.
- O que vocês estão fazendo no meu quarto?! - Reclama, tentando disfarçar o medo em sua voz. - Eu não posso dormir em paz?!
Miguel rapidamente troca algumas palavras com os filhotes e os dois se retiram, com a promessa de que receberiam um doce mais tarde.
- Se esqueceu que a gente tem uma prova hoje? - Miguel pergunta, sua voz levemente cansada.
Trey arregala os olhos e cai de novo na cama, desejando se esconder do mundo com seu cobertor e voltar a dormir.
Acho que eu prefiro voltar para o pesadelo...
🌑🌓🌕🌗🌑
Após um almoço silencioso, Alex deu carona para Miguel e Trey, assim como tem feito sempre que eles precisavam ir em algum lugar, impedindo que eles se tornassem presas fáceis para os metamorfos.
Seu pai os deixa no local, parecia querer dizer algo importante a Miguel, mas desiste, falando apenas o básico para ambos terem cuidado.
Trey assiste seu pai ir embora com sentimentos mistos em seu interior. Tudo ainda estava meio confuso para o metamorfo depois do que havia acontecido, especialmente após as coisas que Miguel contou para ele no abrigo.
Sem contar a situação insana da Academia.
Por pura birra, ele ficou dormindo, ou o ignorando, todos os dias que passou ao lado de Miguel, estudando ao lado dele em raras ocasiões. Ainda não acreditava que seu próprio irmão tinha feito aquilo com ele.
Eu? Um combatente? Miguel ficou maluco quando teve essa ideia!
Porém, tinha a outra parte da história, a justificativa do porquê Miguel fez isso: seu pai queria fazer algo com ele. Não havia uma confirmação se era abandoná-lo, jogá-lo em um centro de pesquisas para ser estudado ou apenas matá-lo. Mas era algo do gênero, talvez um pouco de cada um.
Ainda assim, mesmo acreditando em seu irmão com toda a sua vida, ele não conseguia ver seu pai o odiando dessa forma.
Não conseguia aceitar aquele fato.
Olha para Miguel, que, assim como ele, vestia roupas feitas completamente do tecido gore-tex, sendo as do maior uma jaqueta bomber azulada, repleta de detalhes neons alaranjados que pareciam fogo em seu ombro e pulso, uma calça jeans da cor azul-cobalto com pequenos rasgos, que não expõem a pele, e um tênis tipo chunky, completamente branco e com acabamentos metálicos. Acompanhado também de um par de luvas marrons, semelhantes às suas, de um material parecido com couro.
Já Trey não se encontrava muito longe disso, com as únicas exceções sendo o preto predominante, com diversos detalhes vermelhos, em seu casaco e o tamanho, e espessura, bem maiores para não deixar nenhuma parte do corpo muito exposta.
Em meio a paisagem desértica da cidade, com diversos adolescentes e guardas espalhados pelo espaço, indo direto para o prédio onde aconteciam as reuniões, ele conseguia ver a sútil tristeza no olhar de seu irmão, como o mais velho estava mais quieto, e como o que aconteceu com Cléber estava o afetando negativamente.
Uma leve tristeza percorre por Trey, se sentia incapaz de ajudar o seu irmão. O outro sempre foi a sua "luz", a pessoa que ele poderia contar para qualquer coisa. Mesmo que a situação entre eles estivesse turbulenta nos últimos tempos, Miguel continua o ajudando de todas as formas possíveis.
Mas o que eu posso fazer para ajudar Miguel?
Apesar disso, também não poderia ignorar os problemas que o próprio tem passado. Tanto a questão da metamorfo quanto a de ser um possível predador do "pior tipo", e, especialmente, o fato dele ainda não ter confessado isso para Miguel - algo que Lara ficará certamente brava.
- Preparado? - Miguel pergunta, tentando descontrair a caminhada deles e tirar sua atenção dos guardas, os analisando atentamente.
Se você tiver a habilidade de inserir todo o seu conhecimento na minha cabeça, então sim.
- Aham.
- Tem certeza? - Ele se aproxima para sussurrar. - Se você achar que não, você pode pegar um pouco do meu sangue e...
- MIGUEL! - Grita, tomando a atenção de todos ao redor.
O loiro olha desesperado para as pessoas. - Foi mal! Ele tá emocionado com a prova! - Miguel ri de nervoso. - Quem não tá, né? - A pergunta parece amenizar as preocupações das pessoas, que concordam com a situação.
- Você ficou maluco?! - Miguel o puxa para perto.
- Eu que diga! - Sussurra no mesmo tom de voz. - Que ideia de maluco é essa?! Eu tô com cara de larval pra adquirir suas memórias consumindo o seu sangue?!
Seu irmão suspira, estressado. - Vale a tentativa! O Max não vai poder te dar uma moral se você tirar zero!
- Eu não fiquei só dormindo esses dias, tá?! Pelo menos os cinquenta pontos eu consigo tirar pra passar!
- Trey, a média é oitenta.
- O quê?! Por que não me disse iss-
- Eu te disse! - Ele balança Trey pelos ombros, o puxando logo em seguida para o banheiro. - Vamos, se a gente for ao banheiro agora ainda dá pra você se safar dessa. Você sabe porque eu tô fazendo isso, dez gramas a menos de massa cerebral em mim não muda nada!
Antes que Trey pudesse correr dali, os amigos de Miguel começam a chamá-lo, e, quando pensou que ia ser deixado em paz, o jovem teve a surpresa de ser carregado até o grupo pelo seu irmão.
- Oliver? - Poppy é a primeira a questionar com seu tom amigável de sempre. - Você veio fazer prova para qual área?
Para a de suicídio voluntário.
- Combatente. - Responde com um sorriso falso.
Poppy pisca, surpresa, Iago levanta uma sobrancelha, confuso, e Theo cai na gargalhada, recebendo uma cotovelada dos outros dois.
- É... - Miguel começa. - Parece que ele se descobriu durante o ataque.
- Cooom certeeeza. - Diz, se lembrando das revelações que aconteceram.
Miguel franze o cenho com o tom da resposta.
Poppy ajeita a sua jaqueta rosa. - Uau, isso é inesperado, mas vai ser bom ter você por aqui, Oliver! - Ela abaixa seu olhar, entristecida, a ausência de Cléber parecendo se tornar nítida naquele instante.
Um som corta a conversa de todos, o familiar toque da sirene. Eles encaram uns aos outros, trocando olhares de nervosismo e expectativa. Era hora da prova.
🌑🌓🌕🌗🌑
Trey é um dos primeiros a finalizá-la, podendo ter o vislumbre de alguns jovens saindo com um sorriso ou uma carranca no rosto, sem contar aqueles que já corriam para o banheiro à beira das lágrimas.
Enquanto observava o deserto que se tornou o seu lar, quase como se estivesse em uma cidade fantasma, para se distrair dos possíveis resultados da prova, os problemas da vida real, os mesmos que ele ignorou e fugiu para o mundo dos sonhos, caem sobre ele.
Olha para as suas próprias mãos, uma luva marrom normal e uma transparente abaixo dela para certificar que não houvesse riscos de ser descoberto. Conforme suas memórias estavam retornando, mais claro ficava algo em sua mente: aquele não era ele, ele estava usando a aparência de alguém.
E, mesmo sabendo disso, ele não acha que poderia ser qualquer outra coisa além do que ele é hoje. Mudar uma vez ou outra para sua aparência real não era um problema, se o momento pedisse, ele mudaria. Porém, ser só essa sua versão monstruosa era inimaginável para sua mente, ser igual aquela metamorfo era impossível.
Ele não queria ser aquilo.
Ele não era aquilo.
Algum dia eu realmente preciso deixar de ser o Oliver? Ele não está mais aqui, ninguém ia se incomodar com isso... Não é?
Seu coração estava dividido, por um lado queria continuar sendo ele mesmo, mas por outro queria saber o que aconteceu entre ele e com a sua suposta irmã.
Conforme suas memórias retornavam, os momentos que brincava com Miguel e a forma como ele era muito próximo dos seus pais, cada detalhe, cada memória entre os seus onze e treze anos, que ele havia esquecido e havia retornado por completo nos últimos tempos, apenas o fazia se sentir mais completo comparado a casca do metamorfo que era há meses atrás, que nem sequer imaginava que suas lembranças pudessem o dar "vida".
A ideia de ter um lugar nesse mundo, um passado que explicasse porque ele era tão diferente, o trazia uma euforia atípica, pois sabia, bem lá no fundo, que assim que se lembrasse de tudo, ele se sentiria completo de novo.
Ele se sentia perdido antes e agora ele se sente alguém de verdade, ou pelo menos parcialmente.
Ainda havia alguns contratempos, memórias passadas, anteriores aos seus onze anos, como o seu último sonho, ainda eram incompletas e raramente voltavam assim que acordava. Da mesma forma que havia memórias de dois anos atrás que não voltavam, principalmente alguns momentos envolvendo o acidente com Miguel.
Aquilo era estranho. Suspeita que o "Tampinha" esteja envolvido nisso pela forma que o impediu de descobrir o que aconteceu com aquela Lara.
Suspira, cruzando os braços e os apertando ao redor do seu peito.
O que aconteceu com ela aquele dia?
Espera... Por que eu estou me importando tanto com isso?!
- Tudo está bem calmo, né?
Uma voz familiar o faz saltar de susto, o fazendo sentir falta das suas habilidades naquele momento. Seus olhos se encontram, e por um breve instante, parece que o mundo ao redor desaparece.
- L-lara?!
Ela sorri, com sua trança longa repousando suavemente sobre o peito. A jovem usava uma blusa gola alta de manga longa, que marcava levemente seu corpo, e uma calça larga afunilada no tornozelo; toda a roupa parecia ter um tecido fino, mas era nítido que o material era gore-tex.
Contudo, a parte principal era a cor: branco. Ela parecia brilhar contra o pano de fundo daquele lugar.
Lembrava que aquela era uma das roupas especiais usadas pela equipe do hospital nos últimos meses, nada tão surpreendente, mas, por algum motivo ainda desconhecido, aquela cor estava ganhado um significado completamente novo em sua mente nas últimas semanas.
Especialmente quando era a Lara usando.
- Você tá bem? - Ela se aproxima e sussurra. - Aconteceu alguma coisa? Você viu algo estranho?
- É... - Trey murmura, não conseguindo descolar os olhos dela.
- O quê?
- O quê? - Repete, ainda não compreendendo o desconforto no seu estômago. - E-eu perguntei, ia perguntar, se você, como você... O que você tá fazendo aqui?
Ela ri, curiosa com o que poderia ter feito o adolescente ficar tão atordoado.
Trey continua. - Quero dizer, pensei que você ia tá no hospital, trabalhando, estudando... Não sei. - Ele devaneia, irritado por não estar conseguindo conduzir uma conversa normalmente.
Cadê Miguel?! Por que ele não terminou essa droga de prova ainda?!
- Ah, sim. Eu vim fazer a prova e já, já retorno.
- Prova? Que prova?
- Você vai descobrir!
Eu vou? Como?!
- Além disso... Você conversou com Miguel sobre aquilo?
Trey fecha a cara no mesmo instante, enfiando as mãos no bolso.
Ela suspira. - Você não disse, nesse meio tempo que a gente ficou no abrigo, que ia contar assim que saíssemos de lá?
- Sim, mas... Ele não tava bem, não está, não sei se eu...
- Miguel é uma das pessoas que mais se importa com você nesse mundo, ele vai entender, eu tenho certeza disso. - Ela toca no ombro dele. - É só você contar daquele jeito que eu falei, começa conversando sobre as suas infâncias e depois entra nesse assunto, quando você menos esperar já terá contado tudo!
Olha para o chão, pensativo, e busca confirmação na expressão dela. - Você acha?
- Aham! - Ela sorri levemente.
Os dois ficam em um silêncio reconfortante por um momento, a leve brisa de verão refrescando ambos.
- Como você tá? - Ele pergunta, a pegando de surpresa.
- Um pouco cansada... Acho que seria divertido ter um pouco de sonho lúcido, igual você. - Lara brinca enquanto espreguiçava os braços.
- Isso até você ter um pesadelo.
Ela levanta uma sobrancelha.
- Depois eu te falo... - A garota se preparava para dizer algo, mas ele continua. - Lara, alguma vez você já correu para o estacionamento dos prédios das reuniões para chorar sobre alguma coisa ou alguém quando tinha sete anos?
- C-como assim?!
- Eu perguntei alguma coisa errada? - Fala consigo mesmo. - Pelo que eu lembro, foi isso...
Ela reflete sobre o tópico, sua expressão cada vez mais séria ao encontrar as respostas em suas memórias.- Não, não, é só que... Sim, isso aconteceu uma vez, há muito tempo.
- Parecia ser sério... O que era? - A pergunta sai sem ele pensar.
Os olhos da jovem parecem ganhar uma camada brilhante e seus dedos se entrelaçam, de maneira ansiosa, na sua trança. Lara estava visivelmente desconfortável.
- Desculpa, e-
- Não, tá tudo bem. - Força um leve sorriso. - Mas... Eu preciso ir agora, não quero deixar minha mãe sozinha no hospital. - Ela se afasta com rapidez, acenando um último adeus.
Assim que a perde de vista, ele passa a mão no rosto, se sentindo um idiota pela primeira vez.
🌑🌓🌕🌗🌑
Após alguns minutos refletindo sobre sua pergunta sem noção, ele avista Miguel saindo do local, no último horário, junto de Theo e outros três adolescentes. Ele não sabia se isso era um bom sinal, mas de Miguel ele já pode esperar no mínimo oitenta.
Assim que o mais velho termina de conversar com seus amigos, ele se junta a Trey.
- E aí, como foi? - O loiro puxa conversa, enquanto ambos aguardavam agora seu pai chegar.
- Bom...
O mais velho analisa sua expressão. - Tem certeza?
- Não, eu não sei. Tinha mais perguntas de interpretação de texto do que eu esperava, se tudo dependesse da minha memória fotográfica, eu já saberia que tinha gabaritado.
- Eu sei, mas... - Ele encosta uma mão no ombro do seu irmão mais novo. - Vai dar tudo certo, tá? Mesmo que a gente não passe, eu vou dar um jeito da gente continuar junto. Eu não vou deixar ninguém fazer nada de ruim com você. - Miguel promete com seriedade.
Por um momento, ele deixa aquele momento de paz se desenrolar, e mesmo que houvesse metamorfos e combatentes à espreita, ele confiava fielmente em seu irmão, sabia que ele nunca o abandonaria quando mais precisasse, mesmo que isso custasse sua vida.
Então, ele toma coragem para contar a verdade.
Trey respira fundo, checa se tudo continuava deserto e começa a falar. - Se lembra quando nós éramos pequenos?
- Hm? Você falando sobre lembranças? - O loiro brinca.
Trey lança um olhar aborrecido, mas prossegue. - E como tudo da cidade era muito "novo" pra mim? Eu ficava sempre perdido, e era como se eu fosse de outro planeta!
- Sim, você não sabe o que eu passei até nossos pais descobrirem o que aconteceu!
Trey fica em silêncio por alguns instantes, não imaginando que o outro falaria algo do tipo. Afinal, Miguel sempre foi o que buscou por problemas.
- Foi?
- Disso você não se lembra, né? - Ele ri. - Só faltava colocar uma coleira em você.
A expressão de Trey cai. - Sério...? - Mas logo pensa positivo, esperando que aquilo fosse um drama de Miguel. - E o que eu fazia? - Pergunta com um sorriso sarcástico. - Roubava comida do seu prato?
- Sim! Isso e outras coisas. - Começa a contar com os dedos. - Você roubava minha comida e comia várias vezes as coisas cruas, você corria atrás dos animais na floresta ou dos animais de estimação das pessoas, sem piedade alguma, você mordia as pessoas, com motivo ou não, e não era fraco, e... Ah! Esse era o pior! Você ficava encarando na alma das pessoas, eu me arrepiava todo quando você fazia isso! Parecia que você ia comer a minha cara! - Miguel finaliza com uma risada, relembrando a loucura daquela época como se fosse o comportamento padrão de um filhote.
No meio dessa listagem, Trey havia ficado paralisado, preso em seus próprios pensamentos.
O sonho do cachorro, do dia do aniversário de Iago e Theo, retorna a sua mente. Por todas aquelas semanas, confiou apenas nas teorias de Lara, que sugeriam que os medicamentos estavam deixando ele assim, agravando aqueles instintos de predador de alguma forma. Então ele acreditou que aquilo era algo recente e que a lembrança de que devorou um cachorro foi apenas uma alucinação, ou qualquer outra coisa do gênero.
Sendo irmão ou não da metamorfo, isso não o tornava um predador devorador de humanos, não era algo passado pelo sangue, talvez trouxesse uma pré disposição, porém nunca que o tornaria um monstro definitivo.
Mas não, ele sempre foi dessa forma.
Sempre foi um monstro.
E parece que Miguel só não juntou os pontos ainda. Entretanto, a sua mãe e, com certeza, seu pai já haviam juntado. Tinha certeza disso.
- Pode continuar o que você tava falando. - Miguel diz após terminar seu discurso.
Trey olha com uma expressão distante o horizonte, vendo um carro se aproximando. Seu pai havia chegado e a oportunidade de fugir daquela conversa, de mentir mais uma vez, se apresentou.
- Deixa pra lá, eu já esqueci.
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