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Capítulo 23 | [Como nos seus sonhos]-parte 6

🔶 2 de fevereiro de 2149
  🔸 Quarta-feira | 11:05

— Eu estou tão feliz que você está bem! — Miguel se aproxima radiante do seu amigo, parando assim que lembra da sua condição.

Cléber não aparentava estar feliz com a sua presença.

— O resto do pessoal está bem? — Prossegue com a conversa. — Você sabe da minha família? Da minha mãe ou do meu irmão?

O ruivo se coloca em uma postura mais ereta. Seu olhar sério e seu aperto forte na alça da mochila deixavam Miguel inquieto.

— Cléber? — Observa seu amigo no pequeno espaço dominado pelas sombras, com apenas a luz ambiente atrás dele iluminando a atmosfera pesada.

O ruivo não responde, apenas vigiava Miguel de forma desconfiada.

A expressão do loiro desaba, suas esperanças quase destruídas depois de tudo que tinha visto hoje. 

— Por favor, me diz que é você. — Suplica, entristecido, imaginando que aquela pudesse ser alguma brincadeira do metamorfo.

Os segundos passam, tão arrastados que pareciam horas.

— Isso eu posso confirmar com toda certeza. — Faz uma pausa. — Mas e você? Você ainda é o mesmo, Miguel?

— O quê...? — Pensa por alguns instantes, percebendo que era óbvio que o outro estava desconfiado. — Sim! Claro que sim! Eu tive alguns problemas até chegar aqui, mas ainda sou o mesmo. Eu prometo. — Diz com sinceridade.

Cléber parece ficar apenas entristecido com aquilo, continuando a analisar Miguel de ponta a ponta.

— A gente pode ficar distante um do outro, não tem problema, mas você não pode ficar aqui. Quase agora eu estava com a Eli, ela ainda deve estar por aqui.

— Miguel.

— Hm?

— Eu não estou falando de hoje. 

— Como assim?

Olha para baixo, encarando o piso branco repleto de sujeira e fios soltos. — Eu sempre soube que tinha alguma coisa de errado desde aquele dia, sempre percebi, mas só ontem eu tive a confirmação que eu precisava.

— Espera aí, Cléber. Do que você tá falando? — Miguel tenta se aproximar. — Que confirmação?  

Uma AL é mirada nele. O brilho prata ilumina a sala, refletindo a frieza e a dor na expressão do seu amigo.

— Cléber? — Sussurra, desacreditado.

— Eu sempre achei ele estranho, quando vocês chegaram na cidade, a forma como ele vigiava todos, quase de forma predatória, sempre me incomodou um pouco, mas, quando eu via você interagir com ele, isso me trazia um certo conforto... Vocês pareciam irmãos de verdade, sabe?

Miguel arregala os olhos, não acreditando no que estava ouvindo. — Como você...

— Os anos passaram e tudo parecia bem, a forma como ele agia naquela época era tão... Humana. Interessante como eles se adaptam tão bem quando assimilam completamente outros seres, né? — O ruivo ri de forma melancólica. — Você nem duvida que a pessoa está morta.

Ele faz careta, desconfortável com o assunto.— Então, as anotações eram realmente sobre ele?

Reconhecia que Trey nunca foi próximo dos seus amigos, ele sempre foi uma adição momentânea — algo que nunca foi um problema para ambas as partes —, mas pensar que essa falta de aproximação criou esse tipo de cenário o trazia uma tremenda culpa, pois sabia que, assim que Cléber começou a suspeitar, ele nunca mais viu Trey como uma pessoa, sempre como uma coisa com a pior das intenções.

Afirma com a cabeça. — Começou como algo bobo para o blog, para que eu pudesse escrever melhor sobre o que acontecia na cidade, até eu perceber o quão bizarro ele era... Mas quem acreditaria em um nerd esquisito gritando pelas ruas que "há um metamorfo entre nós"?

Suspira, pensando em como iria confessar a verdade. — Cléber, eu posso explicar. É difícil de acreditar, mas não é o que parece. — Tenta ganhar a confiança de seu amigo, enquanto dava alguns passos até ele. — Eu sei que você acha que todos os metamorfos são monstros desalmados, malignos por natureza, mas isso não é verdade. Quando pequeno, eu só ouvia as histórias que meu pai contava de quando trabalhava com outros metamorfos, ou até de quando resgatava filhotes de centros de experimentos. 

A surpresa era clara nas feições de Cléber, sua atenção estava presa a ele.

— Doido, né? Meu pai era um combatente meio fora da curva, mas eu só vi isso de verdade dos metamorfos quando eu conheci o... Trey.

— Trey? — Cléber pergunta, não confuso, mas como se quisesse confirmar.

— Sim... Esse é o nome dele, e ele não matou o meu verdadeiro irmão. — Confessa com pesar. — Eu conheci ele no dia da morte do Oliver. Trey veio até mim, com a aparência do meu irmão, após ter assimilado uma pequena parte do que tinha restado dele... Ele não fez isso para me enganar, mas para dizer o que tinha acontecido com o outro.

— E você acreditou nisso? — Questiona com ceticismo.

— Cléber, que metamorfo faria isso? Avisaria que um monstro matou o meu irmão e depois falaria que iria embora? E que choraria por não conseguir proteger um humano que ele nem ao menos conhecia?! Ele poderia ter facilmente me enganado ou me matado! 

Miguel relembra como estava devastado naquele momento, como que a última interação que teve com Oliver foi uma briga.

Tudo que importava para sua versão de oito anos era não perder o que tinha sobrado do seu irmão. Ele não queria que Trey fosse embora tão cedo, sabendo que nunca mais veria Oliver, mesmo que aquilo fosse só uma farsa.

— Eu o impedi de ir, ia ser algo temporário, só para ele não ser pego por algum combatente no meio do nada, mas acabou que ele ficou.

— Miguel, ele substituiu o seu irmão. Isso... Isso não está certo.

Nega com a cabeça, convicto. — Não, ele nunca poderia ou conseguiria substituir Oliver. Talvez para você, que nunca conheceu ele, mas, para mim, nada poderia substituir o meu irmãozinho. 

Mesmo que tentasse manter sua postura, as palavras saem pesadas de sua boca, como se dez anos não fizessem diferença alguma para a perda de uma das pessoas mais preciosas em sua vida.

Cléber aperta mais a alça da sua mochila, as palavras emotivas de Miguel pesando nele. Porém, de um instante para o outro, sua expressão séria retorna.

— Ele já te machucou alguma vez?

— Não, nada que não fosse uma brincadeira. — Responde rápido, cruzando os braços ao ver que o ruivo encarava suas mangas por debaixo da jaqueta.

— Isso também foi uma brincadeira?

— Cléber... — Miguel dá mais alguns passos à frente, determinado a pegar a arma.

— Não, NEM TENTA MENTIR! Eu sei que isso não foi a droga de um arame! — O brilho prata se intensifica pela sala.

— Isso não entra nessa questão agora! Foi um acidente que eu mesmo causei!

— Ah, é? Então me conta! — Ele abre os braços, uma expressão desesperada em seu rosto — Eu tenho todo tempo do mundo para escutar como você tá sendo controlado por isso!

— Cléber, eu te falei toda a verdade! Eu botei a minha vida e a da minha família em risco por isso! Eu sei que isso não é uma situação comum, mas por que você não acredita em mim?!

— Porque eu já fui avisado que isso aconteceria.

Miguel para, surpreso.— Por quem?

— E-eu não sei! Mas ainda assim, parecia saber muito mais que você, ele me contou detalhes que eu ainda não entendo muito bem e disse que eu não deveria confiar em você.

— Quem... Quem poderia ter feito isso? — Pensa alto, imaginando todas as possibilidades.

— A carta dizia que isso era para o seu bem, para o de sua família, para o de todos!

— Você não vai acreditar em uma carta de alguém que você nunca nem viu, né? Juan, a gente se conhece há anos! Me escuta, isso é uma armadilha! Trabalho de um desses metamorfos! Eles só querem as informações que você coletou! — Miguel argumenta, a voz cheia de urgência.

Cléber hesita, o peso da dúvida visível em sua expressão. — E se não for uma armadilha, Miguel? — Pergunta, a guarda abaixando por um instante.

Miguel aproveita a brecha e avança.

Os dois travam uma luta feroz pelo controle da arma. Miguel parecia estar prestes a vencer, mas é empurrado com força contra uma das paredes. Nesse momento, Cléber aperta o gatilho. A bala acerta uma fiação específica no teto, desencadeando uma sequência de eventos que Miguel mal consegue acompanhar. Um incêndio se inicia rapidamente, e o fogo sobe pelas paredes com voracidade. No processo, as chamas alcançam a jaqueta do loiro, queimando parte do tecido e da manga de um dos braços.

Cléber apenas o encarava, amargurado com o que tinha feito, mas esperançoso que seu plano desse certo.

Desesperado, Miguel tira a sua jaqueta e a manga de um dos braços para impedir que o fogo se alastrasse pelo seu corpo. O ruivo sorri ao conseguir o que queria, mas logo sua alegria se desfaz ao ver a verdadeira natureza da ferida que Miguel escondeu desde então.

Era algo grotesco. Uma linha sinuosa formava um padrão de espiral em sua pele. Mas não era uma linha comum. Era como se uma lâmina profunda tivesse se incrustado na carne, formando cortes que pareciam tanto cicatrizados quanto necrosados, mesmo após dois anos. O tom vermelho-escuro da ferida contrastava de forma perturbadora com a pele bronzeada de Miguel, como se a ferida nunca tivesse realmente fechado.

— Espera, Cléber! — Miguel apaga o fogo de suas vestimentas às pressas, jogando a jaqueta no chão e recuperando o controle. Em seguida, recoloca as roupas chamuscadas, respirando com dificuldade. — Isso foi culpa minha! Ele não fez de propósito, estava fora de si! Aquela droga de Revealine deixou ele assim! — grita, enquanto tenta alcançar o amigo em meio às chamas e ao caos crescente.

Cléber, no entanto, não cede. Ele vira o rosto brevemente, a expressão carregada de culpa, enquanto começa a jogar tudo o que pode no caminho de Miguel: caixas, cadeiras, qualquer coisa que o desacelere.

— Desculpe, Miguel. — Suas palavras são firmes, mas carregadas de amargura. Ele balança a cabeça, como quem lamenta profundamente, antes de se virar e desaparecer no meio da fumaça e do calor crescente.

🌕🌑

🔶 2 de fevereiro de 2149
  🔸 Quarta-feira | 10:55

— Eu não sei. — Trey mente.

Os dois se encaram, sozinhos, naquele espaço enorme, consumido pelas sombras e pelo cheiro de morte.

— Você não sabe? — Lara pergunta sem emoção alguma.

Ele não responde.

— Se você não acha nenhum animal em uma cidade ENTUPIDA de HUMANOS, o que você procura?! — Ela esbraveja.

Trey pressiona sua mandíbula com força, da mesma forma que agarrava os seus braços, sentindo toda sua forma se desestabilizar.

Ela exclama. — Eu estou tentando te ajudar, Trey! Você não consegue ver iss-

ME AJUDAR COM O QUÊ?! — Grita, sua voz ecoando de maneira antinatural pelo salão, um coral falando ao mesmo tempo que ele.

Lara dá alguns passos para trás, o olhando como se tivesse visto um fantasma.

Trey continua, controlando seu tom de voz dessa vez. — O que realmente estive fazendo pra ser tão ruim assim? Pra ser comparado com aquelas coisas lá fora?! 

Lara fica em silêncio, seu medo empesteando o ar.

Me diz! Me diz o que tem de tão errado assim que você não consegue acreditar em mim! Não é porque eu sou só um metamorfo, não é? Se fosse isso, você não deixaria nem os filhotes ficarem na sua casa! 

Se aproxima cada vez mais dela, na mesma medida que ela se afastava, até que as costas dela batessem na parede. 

O que você vê que eu não vejo? — Sussurra de forma agressiva, ansiando pela resposta.

Ela o encara por mais alguns instantes, engolindo em seco o medo que parecia gritar em sua mente. Seus olhos permanecem fixos nos dele, ainda que sua respiração denuncie o nervosismo que tenta esconder.

— Você é um predador. Do pior tipo. — Sua voz sai firme, apesar do tom baixo.

A temperatura do ambiente parece despencar. A frieza daquele dia, repleta de tensão e crueldade, parecia ter se condensado ali, entre os dois. Do lado de fora, o céu perde sua luz e se transforma em um cinza opaco, como se o mundo tivesse perdido suas cores. Ao mesmo tempo, o brilho nos olhos de Trey também desaparece, substituído por algo sombrio e vazio.

Ele ri. Uma risada seca e sem humor, que reverbera no silêncio. — Um o quê? Um predador? Do pior tipo? — Repete, zombando. — Você tá falando sério?

Lara assente, sem hesitar, e desliza a mão lentamente para o bolso, como se ameaçasse alcançar sua arma.

— Agora vocês me surpreenderam! Daqui a pouco vão dizer que eu sou o quê? Um experimento da minha mãe, um monstro de laboratório? Ou então — ele avança de repente, agarrando o pulso dela com força, puxando-a para perto. Seus rostos ficam a centímetros de distância, e sua voz mergulha em um tom gélido — que eu matei o Oliver a sangue-frio, que eu estripei ele sem piedade e devorei seu corpo só para arruinar a vidinha perfeita de uma família humana?

O coração de Lara parece acelerar a cada palavra. A frieza do tom dele corrói qualquer resquício de segurança que ela ainda tentava manter.

O metamorfo a solta, deixando-a recuar, e se afasta por completo. — É isso que você acha que eu sou? Um monstro? — A pergunta soa quase casual, mas a apatia em sua voz não consegue esconder completamente a dor que ele disfarça.

Lara respira fundo, de forma trêmula. Abandona a ideia de pegar sua arma, deixando os braços relaxarem ao lado do corpo, mas sem baixar completamente a guarda.

— Não posso dizer isso da pessoa que já me salvou duas vezes. — Sua voz é controlada, sua expressão o mais imparcial possível, mesmo que o medo ainda consuma cada fibra de seu ser.

Trey fica em silêncio, encarando o chão, a tensão evidente em seus ombros.

— Mas também não posso fechar os olhos para o que vejo. — Ela acrescenta, com firmeza, enquanto olha para o pulso avermelhado que ele segurara com tanta força.

Lara começa a andar em direção à saída, seu passo hesitante, mas decidido.

O jovem a ignora, ou ao menos finge. Se vira para o outro lado, esperando que ela desapareça de sua vista. A raiva pulsava em suas veias, mas misturada com algo mais amargo: arrependimento. Ele desejava que ela tivesse sacado a arma, apontado diretamente para ele, dado um motivo para justificar sua covardia. Porque, no fundo, ele sabia. Ele sabia o que deveria dizer, mas não tinha coragem de enfrentar a verdade que o assombrava.

Eventualmente, ele fraqueja e olha para trás.

Lá estava ela, a mesma garota que poderia considerar sua primeira e única amiga desde que chegou na cidade, desde que revelou sua verdadeira identidade e desde que mostrou o verdadeiro tipo de monstro que era. 

Ela estava indo embora e não voltaria mais.

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A paisagem parecia ter parado no tempo enquanto via a figura ir embora.

 Tudo voltava ao que era antes, aquele vazio, aquele abismo doloroso do qual ele nunca conseguiu escapar. Seu corpo se mantinha como uma estátua presa ao chão, mas seus olhos estavam fixos na silhueta, desejando segui-la até o fim do mundo.

Em meio à ventania,
lágrimas de sangue escorrem pelo seu rosto.

Ele estava sozinho de novo.

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— Espera! — Trey segura o braço de Lara, a ação abrupta fazendo-a parar e encará-lo com surpresa. — Por favor, não vai. — Sua voz sai quase como um sussurro, tão baixa e frágil que ele próprio parecia não reconhecê-la. Por um momento, parecia apenas um garoto, perdido e desesperado.

Os olhos dela permanecem fixos nos dele, a mesma seriedade inabalável de antes. Havia algo implacável em seu olhar, como se ela exigisse que ele acabasse com aquela mentira, aquela farsa que ele insistia em manter.

Ele hesita, o aperto em sua mão enfraquecendo enquanto tenta encontrar as palavras. Lara não se move, apenas espera, o silêncio entre eles tornando o ar mais pesado.

Finalmente, Trey respira fundo, como se estivesse se preparando para mergulhar em águas profundas e desconhecidas. — Era como qualquer outro dia daquele verão... Ao menos pra mim. — Começa, desviando o olhar para um canto vazio da sala, como se buscasse refúgio na memória. — Miguel... Ele tava estranho. Não queria falar muito, não queria que eu fosse pras reuniões com ele, nem que eu visse os ataques com ele... — Sua voz treme levemente, mas ele se força a continuar. — Eu nunca entendi direito o porquê, mas o problema foi quando ele usou um medicamento diferente em mim.

Lara cruza os braços, inclinando levemente a cabeça para frente, indicando que estava ouvindo com atenção.

— Eu controlava o meu corpo, mas era como se algo estivesse... Diferente. — Trey continua, sua voz quebrada pelo seu medo. — Como se eu estivesse mais... Livre? — Ele soltou uma risada amarga. — Na minha visão, era a melhor coisa do mundo! Como se eu pudesse fazer o que eu quisesse! — Sua expressão se contorce em dor. — Até Miguel conseguir reverter o efeito e me fazer enxergar a realidade novamente.

Um arrepio percorre sua espinha. Ele fecha os olhos por um instante, as cenas rebobinando em sua mente como um filme em câmera lenta. A cada detalhe que retornava, sua visão ficava mais embaçada e sua mente, mais dispersa. Era o mesmo sintoma dos apagões que vinha enfrentando nos últimos dias, mas Trey se obrigou a manter o foco.

— E quando voltei ao normal, quando vi o que tinha feito... — Engole em seco, os dedos apertando os próprios braços. — Eu sabia que precisava ajudar o Miguel. Ele estava perdendo muito sangue, ia morrer... mas... — Uma risada trêmula escapa de seus lábios, revelando o fio tênue entre sanidade e desespero. — V-você consegue imaginar o que é olhar para a pessoa que mais ama e vê-la como só mais uma r-refeição?

A gagueira e o tom embargado tornavam suas palavras quase insuportáveis de ouvir. Lara arregalou os olhos, surpresa pela brutalidade da confissão.

— Você está certa. — Trey abaixa o olhar, seus ombros caindo como se carregassem todo o peso do mundo. — Mesmo que eu consiga saciar a "fome" com animais, ela... ela não é direcionada a eles. — Hesita, mas força a verdade a sair. — É aos humanos.

Um silêncio sepulcral se instalou entre os dois, como se o ar tivesse sido sugado do ambiente. Trey exalou lentamente, sentindo um alívio momentâneo por finalmente confessar o que mantivera guardado. Mas esse alívio logo foi substituído por uma certeza amarga: aquele era o seu fim.

Ele sabia que Lara não era tola. Se sobrevivesse ao confronto inevitável, ela certamente o denunciaria. E quanto a seu pai... bem, ele já tinha motivos suficientes para querer se livrar dele de uma vez por todas.

No fundo, a raiva que Trey sentia por ela acreditar que ele era um monstro não vinha da injustiça da acusação. Era porque, em seu âmago, ele também acreditava nisso.

Afinal, ele é um monstro.

— Trey! — Lara agarrou seus braços com força, sua voz carregada de urgência. — Tem alguma coisa vindo!

Ele pisca, a mente retornando ao presente. Inspira fundo, forçando-se a recuperar o controle enquanto seu olhar endurecia. Com um movimento rápido, colocou-se à frente de Lara, posicionando-se como um escudo entre ela e a ameaça que se aproximava.

Ao erguer os olhos, deparou-se com uma figura parcialmente visível sob a fraca iluminação da entrada. Um fragmento de algo maior parecia atravessar a enorme abertura, sua silhueta desproporcional e instável como se estivesse fora de lugar no ambiente.

Uma longa sombra se estendeu até eles, serpenteando no chão e envolvendo o espaço com uma atmosfera sufocante. As íris da criatura, um vermelho profundo que reluzia como brasas, fixaram-se nos dois, escurecidas pelas sombras que a ocultavam. 

Havia algo de diferente naquele fragmento.

Trey rosna de maneira animalesca, seus olhos queimando com a mesma intensidade da criatura à sua frente.

— Mais um de vocês?! — grita, sua voz ecoando pelo local. — Ainda não notou que isso não dá em nada?! Já chega, eu tô cansado disso!

Ele avança a passos rápidos em direção ao monstro, que reage imediatamente, movendo-se na direção dele. Trey libera mais de seus fios orgânicos, que se estendem em um movimento sincronizado, agarrando cada lado da criatura. Com um gesto abrupto, ele abre os braços, os fios puxando com força para partir o monstro ao meio.

Mas o que deveria ser um golpe fatal se mostra inútil.

A criatura se divide ao meio por um breve instante, apenas para sua forma se fundir novamente, como se nada tivesse acontecido. Em seguida, o monstro agarra os fios com a boca e os puxa com força. Trey tropeça para frente, mas rapidamente se estabiliza ao desconectar os fios de seus pulsos, recuando alguns passos.

O fragmento o encara, seus olhos brilhando com uma intensidade maligna, refletindo algo quase humano. Um sorriso grotesco se forma em suas feições distorcidas, como se estivesse saudando Trey, desafiando-o.

— Mas que droga é essa... — murmura Trey entre os dentes, se preparando novamente para o confronto.

Ele estende mais fios, suas garras afiadas reluzindo à medida que se move. O fragmento de três metros solta um rosnado profundo e avança, mas Trey é mais rápido, tentando dilacerá-lo com um golpe direto. A criatura esquiva-se agilmente, girando no ar em um movimento fluido e inumano, pousando com graça na outra extremidade do salão.

Quando os pés da criatura tocam o chão novamente, sua forma muda diante dos olhos de Trey e Lara.

No lugar da monstruosidade, uma jovem mulher se ergue. Sua pele clara reluz sob a luz tênue, e seus cabelos avermelhados, tão longos que vão além da cintura, moldam sua figura como uma juba flamejante. O vestido vermelho de gola alta que usa delineia seu corpo musculoso, repleto de curvas, emanando uma presença ao mesmo tempo elegante e intimidadora.

Ela levanta o rosto, fitando Trey com olhos afiados e calculistas. Seus lábios tingidos de cereja se curvam em um sorriso medonho, expondo dentes tão afiados quanto garras.

— Parece que finalmente conheci pessoalmente o exótico Três. — Sua voz é melodiosa, mas carrega um tom firme e ameaçador, como uma melodia prestes a se tornar um grito de guerra.

— É Trey, não Tr-

Antes que pudesse corrigi-la, ela contra-ataca com um chute giratório, acertando Trey no peito com o salto afiado do seu sapato e o fazendo recuar.

— E quem se importa?! — Pergunta, dramaticamente.

— Já, já, você vai se tornar mais um número em meio aos outros! Já cheguei nos trezentos, bebê! — Sorri com uma coleção de dentes afiados. — Essa aposta tá no papo!

— Trezentos? Como assim? — Questiona, confuso, ganhando tempo para curar o corte em seu peito.

Ela revira os olhos. — Vítimas! Você é bem lerdo pra quem conseguiu se esconder por tanto tempo em meio a essas coisas, hein!

Sua íris vermelha preenche toda a sua esclera e a sua pupila quebrada se dilata em raiva. Ele lança furioso seus fios, tentando imobilizá-la, mas ela salta para trás, desviando com um movimento elegante. 

Ela avança, desvia de dois ataques cortantes das garras de Trey e aplica um chute direto em seu abdômen. O garoto segura a barriga e tosse sangue, sendo pego desprevenido por um golpe de rasteira, que derruba o adolescente ao chão. Trey lutava para se levantar, mas tanto a força quanto a técnica dela superavam as suas habilidades atuais.

Testa rolar para o lado, tentando recuperar o fôlego, mas a mulher já segurava o seu pescoço, o levantando no ar.

Ela se inclina sobre o adolescente, seus olhos brilhando com intensidade. Trey tenta usar sua recém-descoberta habilidade, a "foice" do seu antebraço, mas a mulher segura seus pulsos, imobilizando-o por completo com um par de braços criados a partir da sua cintura.

— Se eu me lembro bem... — Ela expõe uma de suas gigantes garras vermelhas. — É bem aqui que você morre, não é? — Pressiona a ponta da garra contra a sua testa, o estremecendo por completo ao toque.

Trey tenta sair novamente dali, mas qualquer esforço que fazia era inútil, sentindo que a força dela parecia ir muito além de um metamorfo comum. A pressão da lâmina aumentava cada vez mais, assim como ele se tornava mais desesperado, tentando sair dali de todas as formas.

Até o momento em que a metamorfo se retrai quando uma bala de fogo atinge ela. Olha para a responsável, vendo Lara segurando sua AL com determinação e medo.

— Lara! Sai daq- — A boca dele é calada por um dos fios do cabelo dela, que se enrosca em sua cabeça.

— Sara! — Fala com um sorriso surpreso no rosto. — Você não é a coisinha que está cuidando dos filhotes? Já conseguiu descobrir quem é o traidor entre as pestes como você? Essa é uma cidadela grandinha e cheia de traidores... Não que eu já não tenha pegado missões em cidades maiores. — Se gaba, rindo sozinha.

Ela se aproxima da adolescente, ainda aprisionando Trey em seu aperto, e anda elegantemente até Lara, com seu salto ecoando pela área.

— Você é um monstro. — Lara fala por impulso, dando passos para trás.

— Claro que sim, coisinha linda! — Responde com orgulho. — Ainda tinha dúvidas? 

A adolescente atira até o calor da arma se tornar insuportável, acertando alguns e errando muitos por conta da rapidez com que a criatura desviava. Em um piscar de olhos, a metamorfo estava à sua frente, prestes a fincar suas garras nela, mas o seu sorriso é substituído por uma careta de dor, ao mesmo tempo que uma sensação infernal queimava os membros que seguravam Trey.

— Eu não acredito! Que coisa asquerosa!

Ela o larga com desgosto, verificando que suas mãos tinham tomado um tom escurecido, como se tivessem entrado em contato com algo corrosivo.

— Odeio metamorfos cheios de surpresinhas, sempre se mostram péssimos lutadores!

O adolescente se levanta com dificuldade e puxa Lara para longe, se transformando na sua versão original, esperando que tivesse mais sucesso dessa forma.

Após cortar seus membros necrosados, ela se transforma em um meio-termo entre a versão animalesca e a versão humana, assim como ele, sendo as únicas diferenças os tons vibrantes de vermelho e laranja pelo seu corpo, com os cabelos cobrindo quase toda sua silhueta de ampulheta, tão coloridos que fazia Trey parecer doente ao lado dela.

A claridade voltava a iluminar o campo de batalha, onde Trey e a metamorfo, ambos em suas formas originais, se encaravam. Trey avançou novamente primeiro, seu rosnado profundo ecoando pelo salão. Já a outra respondeu com um rugido feroz, seus olhos queimando com uma voracidade animalesca.

O adolescente ataca com suas garras e ela esquiva com facilidade, girando no ar e pousando a suas costas, onde ela contra-ataca com uma mordida em seu ombro. A dor se espalha como um choque pelo seu corpo, ele a agarra e a taca para sua frente, onde poderia prendê-la contra o chão.

A partir disso, a batalha havia se tornado uma dança brutal de força e velocidade, cada movimento uma tentativa de dominar o outro.  Ele tentou usar seus fios orgânicos para prendê-la, mas ela sempre era mais rápida, mesmo que não fosse no mesmo nível do fragmento de larval.

Em uma das suas tentativas, ela se esquiva e ataca com um chute que o faz cair no chão gelado. Rolando no espaço, Trey se levanta rapidamente, seus olhos fixos nela. Avança de novo, suas garras, que pareciam foices, cruzando com as dela, que se assemelhavam a adagas, em um choque de força. A metamorfo aproveita a oportunidade, girando e aplicando um golpe que o derruba. Antes que Trey pudesse reagir, ela estava sobre ele novamente, suas garras pressionando-o contra o chão. 

Trey se contorce para se libertar, mas não consegue, pela primeira sentindo as consequências do seu estilo de luta bruto.

— Acho que já tá bom disso, não é, queridinho? Já perdi tempo demais aqui!

— TREY! — Lara grita por ele, no mesmo tom preocupado de sempre, o fazendo se sentir um pouco melhor e dando forças para ele continuar a tentar escapar.

Mesmo quando ela prende sua cabeça ao chão, criando uma cratera no piso, e mesmo quando uma longa adaga vermelha paira sobre a sua testa.

A metamorfo desfere o golpe final e Trey sente a dor, que se igualava a uma leve pontada.

A metamorfo havia hesitado.

Seus olhos se encontram, e, por um momento, a fúria no semblante dela deu lugar a um reconhecimento doloroso. Vendo a similaridade entre eles, os traços familiares que haviam sido obscurecidos pela brutalidade da batalha.

— Não pode ser... — Murmurou, recuando ligeiramente a garra. — Como eu não percebi isso antes?

Trey, ainda ofegante, a observava com cautela, sem entender completamente a mudança. Ela, agora visivelmente abalada, soltou-o e recuou, a verdade finalmente caindo sobre ela. 

— Irmão? — As palavras ecoaram, surpreendendo os metamorfo e a humana que estavam ali.

O adolescente fica em silêncio, não sentindo ou se lembrando de uma conexão, mas percebendo todas as semelhanças: a aparência, a forma de agir e o fato de ambos serem "monstros".

Diversas perguntas surgem em seu interior, a necessidade de se lembrar do seu passado, da sua verdadeira família, se revelando aos poucos, o fazendo almejar como nunca antes o que aconteceu anos atrás, o que motivou ele a se juntar a sua família atual, algo que nunca havia se importado até agora.

 — É você, Kodae? — A voz dela fraqueja, perdendo toda a monstruosidade de antes.

Trey fica sem palavras, não sabendo conduzir a conversa. Apenas continuava a encarar, esperando que aquilo fosse uma encenação.

— O que eles fizeram com você, pequeno? — Olha com dor para ele, vendo todas as irregularidades na sua forma.

Porém, as orelhas no topo da cabeça dela se movem, como se estivessem detectando um sinal específico, e a expressão comovida em seu rosto se torna séria. 

— Eu preciso ir, mas voltarei em breve... Dessa vez eu não te deixarei, eu prometo.

Ela encara com ternura por mais alguns instantes o outro metamorfo, até se transformar na sua forma de "fragmento" e correr dali sem dizer mais nada.

Trey se senta no chão quando percebe que o perigo havia ido embora, voltando lentamente para a aparência de "Oliver". 

Kodae?

Ela realmente acha que é a minha... Irmã?

E se ela é... Por que ela me deixou?

Passos se aproximam dele e uma figura familiar se agacha ao seu lado. — Trey... Você tá bem?

Balança a cabeça em negação. Ele abraça suas pernas e olha com uma expressão um tanto perdida para Lara, a apreciando por ficar até o final com ele. 

A garota assente e começa a procurar algo em sua mochila. — Você não trouxe nenhum curativo? 

A pergunta o deixa confuso, pois sabia que todos os ferimentos já deviam estar em processo de cura, mas, quando olha para o seu corpo, vê diversos cortes espalhados pela sua pele pálida, uma dor que notava apenas agora.

Por que eu não tô me curando?

A sua dúvida é respondida quando a leve tremedeira, a mesma que o assombrava, retorna. Ele havia passado dos limites e seu corpo não estava processando bem isso.

O desespero cresce em seu peito, assim como a dor aguda em seu estômago, e as palavras de Lara se tornam barulho, ao contrário das batidas do coração dela, que se tornam nítidas, quase como uma canção hipnotizante o chamando.

Suas lembranças daquele dia retornam e seus sentidos se perdem em meio às memórias tão semelhantes.

Depois da euforia alucinógena do medicamento passar, a angústia e a dor de ver seu irmão machucado daquele jeito o devoraram por dentro, quando voltou para a realidade. Feridas que ele causou com os seus fios, com as suas garras e com as suas foices.

Enquanto o mesmo viu tudo aquilo como uma brincadeira, um simples jogo de esconde-esconde, até o efeito do remédio passar.

Seus dedos se entrelaçam no seu cabelo e suas garras se fincam em sua cabeça, uma tentativa de direcionar seu foco para qualquer outro lugar que não fosse a sua "fome", mas, assim como aquele amaldiçoado dia, não funciona.

Não entendia naquele dia porque Miguel se desculpava tanto, mesmo sem ter forças para falar ou se levantar pela quantidade de lacerações em seu corpo. Como se ele fosse o culpado de tudo, e não o metamorfo que estava o fazendo morrer lentamente por perda de sangue. Porém, a pior parte foi ser incapaz de ajudar. O sangue, o cheiro, como se fosse a melhor coisa do mundo, tudo trazia aquela fome à tona.

E se ele tivesse tentado ajudar, Miguel não teria sobrevivido.

Então, ele fez a escolha que aprendeu desde muito novo. Fugiu. Assim como ele faria nesse instante, se não fosse por aquelas sensações rapidamente se amenizando.

Seus olhos se abrem, esperando que o pior tivesse acontecido com Lara, mas tudo que ele vê é a garota aplicando uma injeção nele. A adolescente parecia tão tensa quanto o metamorfo, mas, mesmo que suas mãos tremessem, ela aplicava as injeções com o máximo de profissionalismo e cuidado possível.

— Como você está se sentindo? — Ela pergunta séria, ainda que o seu medo estivesse estampado, enquanto aplicava uma terceira dose.

— Melhor. — Sente o leve enjoo inicial do seu medicamento usual, percebendo que dessa vez tinha funcionado. Agora, sua forma estará muito bem contida por longos dois meses.

Ela suspira, aliviada, guardando rapidamente as coisas e se levantando. Analisa para ver se a melhora era real e estende a mão para ele.

— Vem, a gente precisa ir logo para a minha casa.

Surpresa é o primeiro sentimento que o preenche, mesmo depois de tudo ela ainda escolheu confiar nele, o segundo é a sua preocupação, pois não sabia onde estava Miguel e nem conseguiria mais achá-lo desse jeito.

— Eu te machuquei? — Pergunta, olhando para o pulso dela.

— Só ficou um pouco vermelho.

Ele faz cara feia com a meia verdade dela, mas se levanta com o apoio dela, sentindo seu corpo completamente dormente, quase caindo novamente se não fosse por ela o agarrando.

— Eu preciso achar o meu irmão. — Fala, quase como se sua vida dependesse disso.

— Trey...

— Eu ainda tenho a AL. — Se solta dela, se esforçando para conseguir andar sozinho para provar estar bem o suficiente. — Ele deve tá perto, eu só preciso tomar cuidado.

Lara estava prestes a insistir, mas desiste, entregando-lhe a muda de roupa que encontrara em sua mochila.

— Se arruma, então. Eu vou com você. — Ela fala com firmeza, mesmo que o que acontecera segundos atrás a abalasse tanto quanto a ele.

Ele pressiona o tecido macio em seus dedos, sabendo que tinha o clássico cheiro do amaciante que sua mãe usa, e a olha, vendo o olhar cansado de sua amiga.

— Por que... Você confia tanto em mim? — Ele já fizera essa pergunta várias vezes antes, mas, com tudo o que acontecera, aquele questionamento ganha um peso maior.

Ela dá de ombros, uma resposta pronta na mente, mas opta por uma versão mais simples.

— Nós damos aquilo que desejamos.

Sua cabeça se inclina para o lado, como se ponderasse suas palavras.

Ela quer confiança?

Lara mentiu sobre os filhotes, mas isso não chega nem perto do que eu fiz.

Por que eu não deveria confiar nela?

Ameaça dar alguns passos à frente, e quando vê que ela não se afasta, se aproxima até ficar centímetros dela.

— Eu confio em você. — Ele diz, oferecendo um sorriso sincero, embora leve.

Lara sorri de volta, mais suavemente. — Isso é bom. Vamos precisar disso nos próximos di-

Ela é surpreendida por algo a agarrando, como se ela fosse um bichinho de pelúcia. Ele pressiona a cabeça contra seu pescoço, a abraçando com um gesto de agradecimento. Lentamente, Lara o abraça também, encostando o rosto em seus cabelos.

Um simples consolo para aquele dia difícil.

— Desculpa e... Obrigado, Lara. Por tudo.

🌑🌕

🔶 2 de fevereiro de 2149
  🔸 Quarta-feira | 11:15

Miguel corre até onde viu os fragmentos irem, sua preocupação quanto a Cléber permanecia, mas o único que tinha uma ideia de onde poderia estar era Trey.

Por que eu não percebi isso antes?

Eu nunca deveria ter ignorado as desconfianças do Cléber!

Quando chega a uma das entradas das inscrições, se depara com Trey e Lara, mas não da forma que esperava.

Os dois estavam se abraçando. Nem nos dias mais bem humorados de Trey ele deixava Miguel o abraçá-lo, principalmente depois do acidente.

O que eu perdi?!

O momento é interrompido quando Lara o avista e Trey percebe sua presença.

A felicidade borbulha no peito de ambos quando seus olhos se encontram, um enorme sorriso se estendendo pelos seus rostos. Trey corre até ele, quase caindo por conta dos efeitos do medicamento, mas Miguel o segura em um aperto firme. Os dois se abraçam fortemente, como se não tivessem se visto há anos e, por alguns instantes, em meio àquele cenário caótico, tudo parecia estar bem.

— Você ainda vai me matar de preocupação, Trey. — Diz com os olhos cheios d'água.

O mais novo ri, apenas o abraçando com mais força.

Eles se separam, escaneando o estado de cada um.

— O que aconteceu com você?! Por que você tá todo machucado? — Miguel é o primeiro a falar, preocupado com as feridas que não estavam sarando no corpo do mais novo.

Trey fica sério, olhando para Lara buscando pelo seu apoio.

Lara se aproxima. — Nós nos encontramos com a metamorfo responsável pelo ataque. A carniçal. — Começa, contando com cuidado os acontecimentos.

A garota explica rapidamente a situação e tudo que tinha acontecido desde que ele tinha se separado de Trey. Miguel engole a sua raiva diante de tudo, desde o fato de alguém estar tirando fotos do Trey até a quase morte dele no seu encontro com a metamorfo.

Mas algo o incomodava, tanto pelo fato de Lara ser a que conta tudo, quanto de Trey estar em um canto trocando sua roupa, sem contar um trecho sequer do que havia acontecido.

Ele respira fundo, sabendo que tinha uma parte de culpa nisso por afastar Trey.  Assim que esse ataque acabasse, faria questão de consertar isso.

— Que droga de missão é essa? — Pensa alto, enquanto olhava indignado para o local. — Eu preciso ser protegido, mas Trey deve ser morto? 

— Como assim protegido? — Eles questionam juntos.

Miguel suspira. — Muita coisa aconteceu desde que você se separou de mim. — Fala com pesar, vendo um semblante de culpa se formar na expressão de Trey.

— E que essa seja A ÚLTIMA VEZ! Você fez todo aquele discurso tosco só pra sumir no primeiro segundo que a gente chegou no centro! — Reclama, dando um soco leve no ombro do mais novo.

— Eu fui atrás da Lara! — Aponta para a morena no canto, assistindo sem graça Trey levar esporro.

— Isso não justifica! Se a gente combinou pra ficar junto, a gente fica junto!

— Mas e-

— Sem "mas", Trey!  Você esquece que a gente tá lidando agora com metamorfos, não dá pra enganar eles. 

Seu irmão cruza os braços, resmungando. — Tá bom, mãe.

Miguel arqueia uma sobrancelha. — Ah, é? Você vai ver só o que eu vou falar pra ela, nem espere eu passar pano pra você dessa vez.

A partir disso, Trey começa a choramingar, o balançando de um lado para o outro, tentando se desculpar de todas as formas possíveis com uma cara de cachorro sem dono, enquanto Miguel apenas finge ignorá-lo.

Pensando bem... Acho que foi válida dessa vez, não sei o que aconteceria se aquele metamorfo tivesse encontrado nós dois.

Provavelmente iria me usar para matar Trey...

Algo explode próximo a eles. A fumaça e o cheiro de carne queimada se espalham pelo local, da mesma forma que a poeira dos escombros é levantada para o ar. Os três checam o espaço de fora, vendo que os combatentes estavam exterminando com sucesso os infectados e os fragmentos.

O fim do ataque parecia cada vez mais próximo, fazendo Miguel lembrar da questão anterior a esse acontecimento.

Sua família ia embora da cidade.

Por que meu pai sempre torna as coisas mais difíceis do que deveriam ser? 

Pensa, toda sua raiva daquele momento retornando.

Por que não contar com Max? Eles sobreviveram juntos à pior experiência que qualquer ser vivo poderia ter vivido! O combatente não seria empático mesmo com a situação da infecção? E, pelo o que eu lembro, Max nunca teve como especialidade o estudo de metamorfos, ele não descobriria tão rápido que Trey é um.

Além do mais, por que ele quer levar Trey para longe?

Primeiro a ameaça no dia da aposta e depois a mudança de última hora para a casa de algum "amigo". Ele tá certo sobre a verdade colocar a nossa família em perigo, e que a gente deveria tomar o máximo de cuidado possível, mas ainda assim... 

Se ele não estivesse tratando Trey tão mal nesses últimos dois anos, eu ficaria quieto, mas é desumano a frieza que ele tem lidado com meu irmão ultimamente, mesmo que ele ainda se preocupe. Nem se eu quisesse, eu conseguiria ficar calado sobre isso.

E falando dele...

Miguel sai dos seus pensamentos ao avistar seu pai encarando o trio. Um alívio e uma felicidade genuína no rosto do homem, fazendo Miguel sentir um leve remorso quanto ao seu desdém ao se reencontrar com ele.

— Vocês estão bem? — Parecia querer muito abraçar os garotos, mas não se aproxima devido ao seu uniforme sujo com o sangue infeccioso de metamorfo. — Por onde vocês estavam?

Os três pareciam igualmente perdidos por onde começar, a história era longa.

— Tá, não importa agora. Vamos para o abrigo e depois falamos sobre isso. 

Outra explosão ocorre, chamando a atenção dos quatro para o espaço próximo ao palco. Bem no meio, havia uma enorme criatura, medindo por volta de dezesseis metros de altura, era um dos fragmentos da carniçal, tendo como forma base a canídea, mas repleta de elementos que se assemelhavam à anatomia humana, algo que explicaria a falta de corpos no chão.

A criatura brame com ferocidade para os diversos combatentes acumulados no local, seus movimentos eram mais lentos, mas cada golpe era fatal, causando uma destruição devastadora ao ambiente.

Em meio à batalha para derrubar a criatura, diversos combatentes estavam morrendo, seja pelas patadas do monstro ou pelos infectados aleatórios que agarravam os combatentes. Talvez não pudesse se igualar ao o início do ataque, mas ainda era um acontecimento doloroso de se assistir. De todos os outros combatentes, um se destaca para Miguel, o com luzes roxas no uniforme.

Todos os seus amigos de equipe estavam ao seu lado, com exceção de Rodrigo, mas, mesmo assim, Eli parecia sozinha. Ainda que criasse aquela máscara de durona, ele conseguia ver em um momento como esse o quanto aquilo era uma fachada.

O fragmento gigante desfere outro golpe contra os humanos. Eli desvia, mas é atingida por um dos ferros das construções ao redor, a barra afiada formando um enorme corte em sua coxa. Ela cambaleia, mas continua de pé. Atirando com maestria nos infectados que tentavam se aproximar dos combatentes com as AL's explosivas, aproveitando a longa distância para explodi-los sem colocar em perigo os humanos.

Mais disparos atravessam o ar, e, em meio à cacofonia, um infectado passa despercebido, ousando agarrá-la pelas costas. Um frio passa pela sua espinha quando a criatura a "abraça", sabendo que qualquer movimento brusco que fizesse poderia explodir a criatura, e matá-la no processo.

Cada segundo passava como uma forca em seu pescoço, ficando cada vez mais apertada, assim como os braços necrosados abraçando sua cintura. Os murmúrios incompreensíveis do infectado ressoam em seu ouvido, deixando nítida a deterioração que todos os infectados ainda "vivos" estavam sofrendo.

Ela empurra o ser nos destroços e o deixa preso por lá, conseguindo escapar. Cambaleia para trás, vendo que logo acima garras gigantescas estavam prontas para atingi-la. Sabia que ela não iria morrer, mas aquilo iria certamente doer.

Fecha os olhos e se prepara para o impacto. Entretanto, o momento nunca chega, pois a enorme garra hesita, dando tempo suficiente para um adolescente alto tirá-la dali.

Miguel agarra a mão dela e foge ao seu lado. Vários questionamentos rondavam pela mente da garota, mas a adrenalina do momento a impede de focar em outra coisa.

— Você tá bem? — Miguel pergunta com o típico sorriso no rosto, como se não tivesse se metido na frente de um fragmento daquela magnitude.

— Você é maluco. — Afirma, desacreditada.

Miguel ri, satisfeito por escolher sair do lado do seu pai ao ver que ela poderia não sair viva dali.

Só espero que os outros combatentes não tenham visto o fragmento hesitando com a minha presença...

A criatura continua a ser atingida por diversos tiros, sua forma se desfazia aos poucos, mas não o suficiente para impedi-la de continuar seus ataques.

Ao mesmo tempo, no palco, ao lado de Alice, estava Max, usando como vantagem para combater o monstro o local alto.

— Cadê o cara dos mísseis?! Daquelas AL's explosivas? — Max grita, procurando em meio aos combatentes. — Por que ele parou de atirar? — Pergunta para Alice, enquanto se afastava de alguns infectados.

— Senhor — Alice se esquiva de alguns infectados e defende Max de outros, os imobilizando —, ele foi abatido.

— Ah... — Pausa, observando os combatentes ao redor. — E ninguém ainda pegou a arma dele? 

Alice não responde, estando muito ocupada, tentando incapacitar os dez infectados de uma vez só.

Ele bufa. — Parece que sobrou pra mim então... — Resmunga, pegando com dó a sua AL de última geração e fazendo uma modificação irreparável nela com as ferramentas que tinha em seu terno. 

Saca sua arma novamente, a luz amarela se movendo de maneira eletrizante pelo cano, como se muita energia estivesse acumulada.  Dispara três tiros concentrados, que acertam precisamente a criatura. A arma apaga logo em seguida.

Bolas de energia se formam nas aberturas dos machucados, criando grandes raios que se distribuem pelo exterior da aberração, tornando o corpo dela a própria tempestade.

Lentamente, o monstro é eletrocutado e, em meio aos ataques epiléticos da besta, seus movimentos erráticos destroem os prédios ao redor, ferindo diversos combatentes com os destroços que eram arremessados.

Eli puxa Miguel para baixo, tirando-o do alcance de alguns destroços que passavam de raspão pela sua cabeça, e o guiando até uma área segura.

Ambos se escondem em uma das alas de inscrições próxima ao palco, o local era escuro e com um ambiente pesado, mesmo que a claridade iluminasse os destroços. Miguel checa a adolescente ao seu lado, tentando se manter calma, mesmo com a respiração ofegante. Pensa em falar algo, mas desiste, preferindo que o silêncio entre eles os acalmasse diante do aparente fim do ataque.

Eles assistem à criatura cair nas ferragens do palco, que, milagrosamente, sustentam o seu peso.

Eli se encosta na parede, passando a mão pelo seu rosto. — O que eu estou fazendo com a minha vida... — Sussurra para si mesma, desolada.

— Eli? Tá tudo bem? — Miguel se aproxima, checando ela de cima a baixo. — Você foi infectada?

— Sinceramente? Espero que sim. — Diz com uma mórbida esperança. — Eu só quero que isso acabe. — Se senta no chão.

— O-o quê?! — Se desespera, abaixando-se ao lado dela. — Eu sei que tá tudo horrível, mas as coisas não precisam ser assim também.

Ela olha para ele com um semblante amargurado, como se já tivesse ouvido esse discurso de uma pessoa que foi muito querida para ela.

— Você é forte, eu vi isso a manhã inteira. — Ele retira um curativo de sua mochila e trata a ferida na perna dela. — Não deixe aqueles monstros te abalarem. — Oferece um sorriso reconfortante para ela.

Ela encara suas botas sujas de sangue. — Você não sabe de nada, Miguel.

O adolescente ri levemente. — Acredito que nada seja muito coisa... Mas, do pouco que eu sei, já consigo ver bastante. — Se levanta, oferecendo sua mão para ela.

Levanta a cabeça, observando a mão dele, como se fosse a pior coisa que ela pudesse aceitar, como se estivesse cometendo uma transgressão e selando seu destino com aquele simples ato.

Ela não aceita, se levantando com suas próprias forças.

Miguel recolhe sua mão, encarando entristecido a cicatriz bem no meio. Ao menos aquele machucado tinha sarado.

— Já sei, vai falar agora que eu confio demais em pessoas, né? — Brinca para descontrair o clima.

Eli ri de leve. — Que bom que você já sabe disso.

Ele sorri, contente por, ao menos, ter conseguido arrancar uma risada dela em meio ao caos. Estava prestes a continuar a conversa, quando uma mão gelada toca seu ombro, interrompendo o momento. Seu reflexo é imediato, e ele aponta sua AL para a origem do toque, mas antes que pudesse agir, seu pulso é segurado com firmeza, e a arma fica imóvel.

— Você perdeu a cabeça, Miguel?! — A voz de seu pai, misturada com raiva e preocupação, corta o ar. — Por que você veio pra cá?

Miguel tenta retirar o braço da agarrada de ferro, mas o aperto é forte demais. Seus dedos se contraem, frustrado, enquanto lança um olhar de desafio para o pai.

— Eu vim ajudar ela. — Ele sinaliza para a adolescente, que ainda os observa com desconfiança.

— Ela é quase uma combatente, Miguel. E você... — Ele dá um passo à frente, olhando fixamente para o filho, sua voz se tornando gelada. — Você é só um cidadão comum, não tem permissão para se envolver nesse tipo de serviço. Você não deveria nem estar aqui em primeiro lugar!

Miguel pisca, incrédulo com a resposta.

— É sério isso?! — Esbraveja, desacreditado. — Aquele monstro ia machucar ela e você tá falando de uma droga de permissão?

— Você vai começar com isso de novo? — Retruca no mesmo tom, puxando seu pulso e fazendo o laranja da arma ganhar cada vez mais intensidade. — Não acha que já passou dos limites por hoje?!

Miguel tenta se libertar, seu corpo tensionando com a força da frustração e raiva.

— Eu tô cansado disso! — Ele se debate, tentando arrancar o braço do aperto. — Qual é o seu problema comigo? E com o meu irmão?!

A última pergunta parece atingir algo profundo dentro de Alex. O olhar de ódio no rosto de seu pai é imediato. Ele sussurra, com um tom que gela a espinha de Miguel.

Isso não é o seu irmão. — Ele murmura entre dentes, seus olhos afundando em um olhar sombrio. — E nós vamos embora agora. Vou fazer valer aquilo que eu te disse. Você não vai ver Trey tão cedo depois que esse ataque terminar. — Alex começa a puxá-lo, a força fazendo o chão parecer ceder sob os pés de Miguel. — Se é que vai ver ele de novo... — Ele sussurra essas palavras para si, como se estivesse selando um destino sombrio.

Miguel, com os olhos arregalados, não consegue acreditar no que acabara de ouvir. Aquelas palavras atravessam seu coração, e o terror se instala em sua mente.

— O-o quê...? — Sua voz sai fraca, trêmula, enquanto ele se vê preso na força impiedosa de seu pai.

Com o ódio queimando em seu interior, Miguel luta contra o aperto do homem, seu braço tremendo enquanto tenta se soltar. A força de Eli é inumana, mas a raiva de Miguel o faz persistir, desafiando qualquer limite físico. Ele balança a cabeça, incrédulo.

— Como você pode dizer isso?! — Esbraveja, sem entender a cruel realidade. — Você adotou ele! Deixou ele fazer parte da nossa família!

— Miguel! — O pai alerta, seu tom se tornando ainda mais frio. Eli, Trey e Lara observam, absorvendo cada palavra com um misto de confusão e medo, incapazes de compreender a verdadeira extensão dessa ruptura.

— VOCÊ CUIDOU DELE COMO SEU FILHO!

— JÁ BASTA, MIGUEL!

Os dois ficam em silêncio, seus olhos fixos um no outro com uma intensidade desconcertante, mas por razões completamente diferentes.

Os três observam a cena à distância, sem saber como intervir, seus olhares fixos em Miguel, que ainda está de frente para eles, sem saber o que fazer. O adolescente continua a analisar as características anormais de Alex, visíveis pela luz que entra do lado de fora, tentando compreender o que está acontecendo.

Miguel tenta controlar a respiração, agora ofegante, a tensão em seu corpo visível. — Acho que já sei qual é o problema. Não é o acidente de dois anos atrás, nem o meu irmão...

— Não ouse continuar. — A voz de Alex é baixa, mas carregada de raiva. Ele aperta o pulso de Miguel com tanta força que, a qualquer momento, poderia quebrá-lo.

— É você, só você. — Miguel explode, o ódio transbordando de suas palavras. — Eu me pergunto até hoje se o meu pai realmente voltou da lua.

Alex fica em silêncio por um momento, a raiva consumindo-o. Seus olhos brilham com algo sombrio, mas ele mantém a compostura. — Para. — Ele sussurra, e Miguel percebe um medo antigo nas palavras de seu pai, um medo que nunca tinha visto antes.

— E não a droga de uma marionete... — Miguel continua, ignorando a dor intensa no pulso, sua voz carregada de frustração.

Alex aperta ainda mais o pulso de Miguel, seus dedos quase esmagando os ossos. — Para com isso.

— Daqueles LUNARES! 

De repente, Alex puxa Miguel para ele com uma força descomunal. O estalo do impacto quebra o silêncio como um trovão, e a dor intensa explode no pulso de Miguel. Sem querer, seu dedo escorrega para o gatilho da arma, e um disparo ecoa pelo ambiente. Uma bala de luz alaranjada corta o ar com precisão, silenciando todos os presentes.

Lara e Eli ficam paralisados, horrorizados com a cena, os olhos arregalados. Trey, completamente espantado, olha para os dois — seu irmão e seu pai — incapaz de entender o que acabaram de fazer.

Miguel, cambaleando, dá dois passos para trás. Sua expressão é uma mistura de arrependimento e assombro, ainda tentando processar o que acabara de acontecer. A dor no pulso é intensa, mas ele ignora, focando apenas no peso do que acabara de fazer.

Alex, com a cabeça baixa, fica imóvel por um momento. Seu corpo parece encolher, mas então, ele levanta a cabeça, revelando uma linha de sangue escuro escorrendo pelo rosto. Ele toca com a mão trêmula o lado do tapa-olho, revelando o raspão da bala. O sangue escorre lentamente, enquanto o silêncio toma conta do ambiente.

Os olhos de Miguel se arregalam, aterrorizado com o que ele causou, mas a visão de seu pai, agora vulnerável, também o choca profundamente.

— Pai, eu... Eu não queria fazer isso, foi um...

Miguel para de respirar, seus olhos se fixando no tapa-olho, que cai lentamente no chão, revelando o que nenhum humano deveria ver. A visão do vazio onde deveria estar o olho de Alex é como um abismo, uma escuridão absoluta que engole tudo ao seu redor. Ele já havia visto fragmentos daquela escuridão na infância, quando tentava entender o que a infecção havia deixado em seu pai. Mas nunca antes havia encarado aquilo de forma tão direta, tão crua.

Ele tenta puxar o ar para os pulmões, mas falha. Sua respiração fica presa, sufocada por um terror que toma conta de seu corpo. O medo, visceral e grotesco, se espalha por seu peito e por cada fibra de seu ser. Seu corpo treme, e ele sente como se estivesse à beira de desmaiar, ou talvez de desintegrar, tamanha a sensação de que algo tão profundo e irreparável se instaurou dentro de si.

Aquela visão, o vazio onde deveria estar o olho de seu pai, se torna o único ponto de foco de sua mente. O mundo ao seu redor desaparece, e ele é consumido por aquela escuridão. Todo o resto perde significado, até o ar parece se tornar mais denso, quase impossível de respirar.

Aquele era o mais puro terror que um humano poderia presenciar, o verdadeiro medo.

O sentimento é tão forte, tão absoluto, que, por um instante, Miguel pensa em dar um fim àquilo, à sua vida, para escapar daquela visão que dilacera sua mente. Mas, antes que ele possa se render àquela ideia, Alex cobre rapidamente o olho novamente com a mão. O vazio é oculto, e a realidade volta a entrar em foco, como se um véu tivesse sido puxado de sua visão.

— Miguel? — Eli sussurra, não entendendo a reação exagerada do adolescente de, literalmente, um segundo para o outro.

Lara busca uma resposta ao olhar Trey, mas o garoto parecia tão perdido quanto ela.

Trey ousa se aproximar. — Pai, o Miguel não está bem...— Fala, recebendo no mesmo instante um olhar de Alex que dizia para ele calar a boca, como se ele fosse o problema.

O homem se aproxima de seu filho mais velho a pequenos passos. — Miguel, solta essa arma.

O adolescente se afasta, seus olhos se mantêm arregalados, encarando nada em específico, como se ainda estivesse vendo a imagem da "escuridão" de forma infinita.

— Filho... — Seu pai o chama, o medo em sua voz era nítido, mas não para o adolescente que se encontrava fora da realidade. — Olha para mim.

O homem dá mais um passo e Miguel foge.

Ele não sabia para onde estava indo, só queria fugir daquilo, fugir do "nada". Quando acorda, ele havia esbarrado em alguém, um homem pardo que conhecia muito bem.

— Garoto? O que você tá fazendo aqui?! — Max pergunta, preocupado, vendo o estado dele. — Você tá infectado? — Verifica os pontos vitais do jovem.

Miguel olha ao redor, percebendo que estava no palco sendo interrogado por Max, enquanto a sua pupila estava logo à frente, ditando os próximos passos para aqueles que estavam na "plateia". Um céu azul, ainda um pouco acinzentado, se revela por detrás das nuvens ao mesmo tempo que alguns raios de sol iluminam os destroços e corpos dos restos de metamorfos.

Max continua a tentar falar com ele, mas sua cabeça doía. Ele passa os dedos trêmulos nos fios lisos do seu cabelo, molhados de suor. Seus olhos se fecham e ele respira, abrindo logo em seguida, quando vê uma imitação daquela escuridão. 

Ele não sabe se conseguirá dormir à noite após aquilo.

Olha para o lado e vê seu pai subindo no palco, com um tapa olho improvisado e uma atípica preocupação em seu rosto. Outra onda de dor passa pelo seu pulso, percebendo agora que poderia estar quebrado.

Hoje ele tinha passado de todos os seus limites, e não duvida que seu pai separaria Trey dele, principalmente depois daquilo.

Um som se destaca em meio a todos, o de algo grande e pesado de ferro, se desestabilizando. Olha na direção do ruído e toda sua adrenalina retorna. 

Mesmo com seu corpo dolorido, gritando para parar, ele toma a atitude. Max é puxado para fora de sua posição, vendo uma enorme barra de metal danificar o lugar onde estava.

O combatente encara a cena boquiaberto.

— Nossa, isso ia ser... Decepcionante. — Comenta, sem palavras, sobre a sua quase morte.

Todo o palco começa a tremer, o impacto do corpo do fragmento gigante se faz presente naquele momento. Estruturas metálicas de suporte, vigas e barras de ferro começaram a ceder, caindo de forma desordenada. Destroços começam a cercá-los e Miguel se levanta com certa dificuldade, tendo apoio do homem.

Uma estrutura metálica de iluminação começa a desabar, suas longas hastes girando perigosamente no ar, fazendo Miguel agarrar Max com sua mão boa e puxá-lo para fora do caminho, enquanto a estrutura desaba com um estrondo ensurdecedor.

— Vamos, senhor Max! — Miguel grita, tentando manter o equilíbrio ao mesmo tempo que os destroços caíam ao seu redor.

Trey, observando a cena de uma posição segura ao lado de Lara e Eli, vê que Miguel e Max estavam prestes a ser atingidos por outra barra de ferro que se desprendia do teto e, com precisão calculada, dispara um tiro vermelho com sua AL, atingindo o ferro e desviando seu curso o suficiente para que os dois escapassem.

Miguel e Max se movem rapidamente para uma área mais segura, ao lado de Alice e outros combatentes, que tinham conseguido escapar. Max, respirando com dificuldade, olha para Miguel, impressionado.

— Nossa, isso foi... — Ele começa a frase, mas não a termina.

Miguel concorda com a cabeça, sabendo do que ele estava falando.

— Tem certeza que não quer virar combatente? — Pergunta com sinceridade, sinalizando que estava bem para os combatentes que se aproximavam. — Não é todo dia que se encontra alguém como você.  Hunter ou não.

O loiro levanta seu olhar até o combatente, uma esperança juvenil crescendo em seu peito.

— Aliás, foi mal por aquele dia, sabe como é, a idade vai chegando e a gente vai querendo se agarrar aos velhos tempos, mesmo que não fossem os mais agradáveis. — Ri, falando de maneira descontraída.

Ele olha para o seu pai, que corria até ele para verificar como o garoto estava, passando com esforço pela multidão de combatentes que os cercavam. Confirma também que seu irmão e as outras duas estavam bem.

— Não, você estava certo. — Confessa em um sussurro.

Max pisca, parando de observar as pessoas que Miguel olhava. — O quê?

— E sim, eu quero ser um combatente. — Responde convicto, apesar do cansaço.

Max ainda parecia processar tudo, mas estava contente com a escolha do garoto.

— Mas receio que não ficarei nessa cidade por muito tempo.

O sorriso do homem se desfaz, uma seriedade que Miguel nunca tinha visto antes consumindo suas feições. Ele olha para Miguel e depois para Alex, que estava a alguns metros deles. O combatente auxilia o adolescente ao se levantar, tendo cuidado com os machucados do garoto.

Alex para no caminho, vendo Miguel de costas para ele e Max o encarando com certa decepção.

— Será um prazer te auxiliar nessa jornada. — Diz com um sorriso genuíno. — Farei de tudo para você completar a Academia esse ano. — Promete, surpreendendo Miguel e Alex.

Ouvir aquela frase o fazia imaginar que tudo aquilo era um sonho. Não só havia passado por uma terrível em sua cidade, como também enfrentou da melhor forma que conseguiu os desafios, tudo o direcionando no final para aquele momento. Onde todos os seus sonhos seriam realizados por uma das pessoas que mais admirava.

Apesar disso, mesmo que duvidasse se ele merecia aquilo, um gosto amargo permanecia em sua boca. Aquele sonho não foi construído por uma pessoa só, e talvez essa fosse a desculpa perfeita para negar aquela oferta.

— Eu poderia te "auxiliar" com mais alguma coisa? — Max encara Trey ao longe extremamente preocupado. — Ou então... Outra pessoa?

Miguel respira fundo, sabendo que ele tinha a oportunidade de tomar a pior decisão da sua vida naquele momento. Ele olha para seu pai uma última vez, que o avisava com o olhar para não fazer aquela escolha, e então para Trey, que não tinha nada a ver com aquilo e que não merecia o que quer que seu pai desejasse fazer com o mais novo.

— Aquele garoto tem uma mira de se invejar. — Max comenta, dando a esperança que Miguel precisava. — Espera... Vocês são parentes? — Questiona, após perceber as semelhanças.

O adolescente toma a sua decisão.

Um sorriso fraco se abre em seu rosto, forçando com que seu semblante parecesse o mais sincero possível, e ele olha nos olhos de Max.

— Então... Meu irmão sempre quis ser um combatente também!

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