Capítulo 19 | [Como nos seus sonhos]-parte 2
🔶 2 de fevereiro de 2149
🔸 Quarta-feira | 07:32
— Iremos daqui a um mês. Talvez em duas semanas se as coisas se acalmarem o suficiente.
Trey arregala os olhos, mas Miguel quase não reage.
O mais velho encosta no sofá e cruza os braços. — E para aonde vamos? — Ele questiona, enquanto assistia na janela alguns insetos passando.
Érica mexe nos seus anéis, ajeitando seu anel de casamento. — Ficaremos na casa de um amigo do seu pai, que mora aqui no Rio, por um tempo.
Que amigo do meu pai mora aqui no Brasil?
— E depois? — Miguel arqueia uma sobrancelha.
— Veremos lá na hora. — Alex responde.
Miguel percebe sua mãe olhando para seu pai de cima a baixo, discretamente, como se não estivesse de acordo por completo com o planejamento.
— A gente vai para a casa de um suposto amigo seu com o Trey? Ele sabe que ele é um metamorfo? — Toma a atenção de Érica e Trey com essa pergunta.
— Sim. — Alex responde sem tirar os olhos dele.
Ele tenta decifrar a expressão de seu pai, buscando algo que pudesse entregar o que tanto o incomodava sobre aquela situação, mas o claro suspiro de alívio de Trey com a resposta retira sua atenção da sua investigação.
Miguel continua, deixando uma leve irritação transparecer em sua expressão. — O que a gente vai falar para as pessoas? Que, do nada, decidimos nos mudar?
Alex estreita os olhos, a expressão endurecendo com o tom ácido do filho. — Você irá dizer que eu e sua mãe tivemos uma proposta de trabalho, algo que valeria a pena a ponto de se mudar.
Miguel dá uma risada curta e amarga, balançando a cabeça. — Ótimo. — Sua voz transborda sarcasmo. — É para sorrir também enquanto diz isso? Para dizer o quão felizes estamos por sair daqui e ir para sei lá onde?
— Miguel... — Sua mãe tenta intervir, mas o jovem continua.
— O quê? Você quer que eu esteja contente com isso? — O tom dele sobe, a frustração finalmente explodindo.
— Você teria uma solução melhor? — Seu pai questiona no mesmo instante, sem tirar o seu tom neutro.
Miguel sente todos os olhares da sala pesarem sobre ele.
— Ir falar com Max. — Responde no mesmo segundo.
Alex o encara, um misto de ceticismo e incredulidade atravessando sua expressão, como se Miguel fosse o maior idiota da cidade.
— Qual o problema? — Pergunta, ignorando os olhares julgadores. — Ele parecia bem animado quando me viu. Na verdade, ele parecia até te admirar.
Alex solta um suspiro pesado, passando a mão pelo rosto como se tentasse afastar uma dor de cabeça iminente. Sem responder, ele caminha em direção à mesa para pegar as chaves do carro.
— Qual é o problema em dizer a verdade? — Miguel insiste, acompanhando o pai com passos rápidos.
Alex segura as chaves por um momento antes de se virar levemente, o olhar frio. — Você realmente tem muito o que aprender...
— EU? — Miguel explode, a raiva fazendo sua voz ecoar pela sala. — Não sou eu que estou me escondendo!
Alex para abruptamente, o silêncio na sala tão tenso que até a respiração parece uma invasão. Ele se vira devagar. — Escondendo?
Miguel dá mais um passo para frente, ficando atrás do pai, a visão limitada às costas largas cobertas pelo uniforme preto. — Isso mesmo.
Depois de quase dois anos, Miguel ouve algo que o desarma completamente: a risada baixa e rouca de Alex. Não é uma risada de alegria, mas sim de algo amargo e sem humor. O som faz o estômago de Miguel revirar.
— Isso é engraçado para você, né?! — Ele dá a volta, ficando cara a cara com Alex, o sangue fervendo. — Você se acha o melhor porque fez isso e aquilo, mas hoje você está aqui, nesse buraco, se escondendo de alguém que nunca seria uma ameaça para você! — Ele aponta um dedo acusador diretamente para o rosto do pai. — E isso tudo só por causa de uma INFECÇÃO ESTÚPIDA, né?!
Os dois se encaram, a indiferença no semblante de seu pai o fazendo parecer um tolo.
— Uma "infecção estúpida"? — Ele repete, a voz fria como gelo. — É isso que você acha?
Miguel hesita, suas mãos tremendo ao lado do corpo. — E tem como achar outra coisa quando você não diz NADA sobre isso?! —
Alex inclina levemente a cabeça, os olhos fixos nos de Miguel, como se avaliasse cada palavra, cada intenção. — E por que você acha que eu não digo?
O silêncio cai, denso como um cobertor sufocante. Miguel abre a boca para responder, mas hesita. O pai aproveita o momento.
— ME DIZ! — Alex avança em um movimento rápido, agarrando Miguel pela gola da camisa e o puxando com força para si, o ódio fervendo em cada palavra.
O adolescente fica sem reação, ficando quase colado com o rosto do seu pai. Tão perto a ponto de notar as diversas anomalias pela face pálida do homem.
Costuras circundavam os olhos, com destaque para o lado coberto pelo tapa-olho, e se estendiam até as extremidades da boca, restringindo qualquer movimento mínimo que pudesse transformar sua expressão em algo grotesco. Eram tão delicadas e transparentes que, à distância, tornavam-se invisíveis.
Essas peculiaridades ultrapassavam qualquer descrição encontrada em livros ou registros que ele já lera. Eram aberrações que nenhum metamorfo seria capaz de replicar com tamanha artificialidade.
Agora, diante dessa cena fora do comum, Miguel podia ver as costuras na boca do pai trabalhando arduamente para conter uma expressão de irritação, evitando que os cantos se alargassem até alcançarem as orelhas e o pescoço. Ainda assim, era impossível não perceber os dentes afiados e finos, como agulhas, escondidos atrás da arcada dentária humanamente normal.
Ele também notava como a pele do pai adquirira um tom hipocorado e antinatural, semelhante ao de um cadáver, com veias escuras marcando um rosto levemente cadavérico. O cabelo, quebradiço e opaco, parecia pertencer a alguém gravemente enfermo, mas, paradoxalmente, mostrava-se afiado e possuía um tom de preto singular, quase surreal.
Contrastando com tudo isso, o olho exposto tinha uma tonalidade azul-acinzentada tão pálida e desprovida de vitalidade que facilmente poderia ser confundida com branco.
O oposto completo do olho coberto pelo tapa-olho.
Miguel engole em seco com uma antiga memória tentando invadir seus pensamentos, mas isso não o faz desistir de falar o que tinha em mente.
Uma profunda tristeza domina o adolescente naqueles instantes ao lembrar como o homem à sua frente era sua exata imagem. Como a aparência e a personalidade, de ambos eram quase a mesma.
Um tempo onde Alex era a sua inspiração, o seu sol, um dos principais motivos para ele querer se tornar um combatente.
Porém, agora era como se olhar em um espelho quebrado e ver o que sobrou de seu herói depois daquela terrível missão.
— Certas vezes, eu fico feliz de que ele não esteja mais aqui... — Sussurra em um volume que apenas seu pai ouviria, uma mistura de raiva e melancolia em seu tom. — Feliz com a ideia de que ele imaginou que ia se encontrar com o mesmo pai de antes daquela missão.
O tom ameaçador de Alex se dispersa por completo.
— Ele estava tão alegre quando eu disse que você tinha voltado. — Olha para sua mãe e Trey, que trocavam olhares entre si, perdidos. — Pelo menos ele tinha uma boa imagem de você antes de morrer.
O silêncio de seu pai responde tudo que ele queria ouvir.
— Vamos, Érica. — Alex chama sua esposa.
A mulher segue em silêncio, sem saber o que tinha ocorrido, apesar de perceber a tristeza e seriedade no semblante de seu marido.
🌕🌗🌑🌓🌕
A porta do carro se fecha e o motor ganha vida, indicando que seus pais já estavam iniciando o seu caminho até o evento. Sem eles.
— Você tá bem, Miguel? — Trey pergunta com um tom de preocupação raro, se sentindo seguro para sair do seu lugar apenas quando seu pai já estava longe.
Não responde, mas assente de leve com a cabeça.
Ele não podia confirmar se seu irmão entendia a gravidade daquela situação, na verdade, ele não sabia nem se Trey conseguia entender o que era ser um combatente, principalmente um como seu pai, e muito menos um que sobreviveu uma missão na lua. Imagina que a ficha ainda não tinha caído para o mais novo, isso se ele já não esqueceu desse fato.
Outro zumbido, de um inseto próximo ao seu ouvido, o desperta do seu estado catatônico. Miguel lentamente se desprende do seu lugar, indo direto para a cozinha.
Enquanto preparava um café, ele percebe Trey adentrar a cozinha logo atrás.
— Eu não pensei que a gente ia se mudar tão rápido, mas... Ao menos estaremos juntos! — Trey fala de forma positiva.
A mente de Miguel continuava presa ao líquido preto, até que outro zumbido em seu ouvido o incomodasse, fazendo-o abanar ao seu redor.
— Só... Tenta ver pelo lado positivo, como você sempre faz! — Trey sorri forçadamente, andando em sua direção.
O barulhinho irritante continua insistente, sua paciência se esgotando conforme o calor da bebida se esvaía.
— Além disso, você é ótimo em fazer amigos! Sei que você vai conseguir substituir os atuais!
Não sabia dizer se o ódio que surgiu em seu peito foi da raiva pela fala do seu irmão ou do inseto incansável. Mas, no momento em que a criatura investe até o seu ouvido, Miguel dá um tapa que a acerta precisamente, a fazendo ser zunida para dentro da sua xícara de café.
— Sério?!
— Eu não quis dizer desse jeito! — Trey se corrige com a agitação do seu irmão, se aproximando dele. — Falei no sentido de você ser capaz de fazer novos...
Trey para ao lado de Miguel, vendo o maior olhar a xícara de café com uma expressão enigmática.
— Miguel?
— Trey... Você tá ouvindo um zumbido? — Miguel olha lentamente para ele.
Seu irmão franze o cenho. — Agora que você disse... Sim, mas eu não vi nenhum inseto pela casa.
Miguel derrama todo o café na pia, ambos observam o líquido preto escorrer até revelar o inseto que havia caído no líquido quente. À primeira vista, era possível dizer que era uma mosca, mas quando os dois se aproximam, veem uma estranha estrutura afiada, como a de um mosquito, no meio da cabeça da criatura.
— Isso não é um inseto. — Miguel fala pelos dois.
Um barulho no porão os desperta, eles se viram, olhando reto, na direção da entrada para o porão.
Algumas "moscas" adentravam o local.
Trey é o primeiro a se mexer, parecendo saber exatamente com o que ia lidar, e Miguel o segue logo atrás.
— Lara avisou que os filhotes iam...
— Não, não que eu saiba, pelo menos.
— Tá, e teria alguma chance de serem eles?
— Acho qu-
O barulho de algo quebrando o interrompe, colocando os dois em máximo alerta. Eles se aproximam, a passos lentos, do porão.
— Tem um fragmento lá embaixo. — Trey começa a sussurrar. — Nossa mãe estava estudando um fragmento de um dos metamorfos, o do Larval.
Miguel exclama no mesmo nível de voz. — Eu lembro de você dizendo isso... Por que você não me disse antes? Pensei que ela tinha parado com esses serviços de pesquisa.
— Seu pai fez ela olhar.
— Por quê?
— E eu vou saber, Miguel?! Eu só sei que tem dois metamorfos que sabem do nosso segredo, estão infectando as pessoas e fazendo ataques do lado exterior, sendo que eles já poderiam ter atacado todo mundo aqui de dentro da barreira!
— Nossa. — Miguel olha impressionado para ele. — Parece que ter começado a andar com seus amigos realmente trouxe alguns benefícios no seu intelecto para algumas coisas. — Brinca, tentando descontrair a tensão do momento.
Entretanto, Trey para no seu lugar, parecendo se lembrar de algo, uma raiva consumindo sua expressão. Ele se vira para Miguel com olhos vermelhos e irritados, murmurando entre dentes afiados. — Eu não sou estúpido.
Quê? E quando eu chamei ele disso?!
Miguel deixa seus questionamentos para depois e corre atrás de Trey, que havia disparado na frente sem cuidado algum. Quando para na escada, se depara com seu irmão digitando a senha e entrando no laboratório, fechando a porta.
Nem se ele quisesse, ele poderia descer. Era certo dele ser infectado.
E o mesmo valia para Trey.
Dispensa todos os xingamentos que queria direcionar a Trey para fazer uma pergunta importante. — Trey! O que tá acontecendo aí dentro?
Ainda que sua fala estivesse abafada pelo zumbido ensurdecedor, ele consegue escutar a parte principal. "Mosca-gigante".
🌕🌑
Talvez Miguel estivesse certo sobre ele estar mais impulsivo nos últimos dias, pois entrar naquele lugar foi uma péssima ideia. Mais alguns dias e a memória do fragmento que sua mãe estava estudando poderia ter se tornado mais um item para seu nevoeiro do esquecimento, e o arrependimento de não ter dado foco nisso o destruía no momento.
Enquanto Trey ainda tentava entender como ele e seus pais não avistaram nenhum dos insetos nesta manhã, uma tempestade deles circulava pelo laboratório, com foco especial na figura no centro.
Antes, um fragmento relativamente pequeno preso em um compartimento apertado, agora tinha sido liberto pelos outros minúsculos fragmentos, que conseguiram arrombar o freezer na parede e destruir o compartimento.
O fragmento maior havia se tornado enorme, crescendo cada vez mais com os "insetos" que se fundiam com o seu corpo ainda consideravelmente congelado. Diferente do fragmento que havia encontrado na floresta com Miguel e o infectado que tinha atacado ele, aquilo ele poderia chamar de aberração.
A luz branca do ambiente revela que a silhueta magérrima, e robusta no peitoral, poderia, com muito esforço, ser confundida com um tipo humanoide do seu tamanho, entretanto, tudo que aquele ser cinzento emanava era o sentimento de algo profundamente quebrado tentando retornar à versão original. Diversos pares de apêndices de insetos, espinhosos, com posicionamentos assimétricos e olhos amarelos enormes, repletos de hexágonos, se espalhavam por partes variadas do seu corpo, enquanto as asas finas e esburacadas pareciam mais um acessório do que algo útil.
Mas uma coisa era fixa, propositalmente bem estruturada, o longo ferrão em seu rosto, que produzia uma substância esverdeada que ele não queria descobrir o que era de forma alguma.
Trey se prepara afiando suas garras, pronto para investir, pois, ao menos em força, ele sabia que ganhava de um desses.
O fragmento faz o mesmo, se prepara, seus membros se mexendo vez ou outra, quebrando os resquícios de gelo, tão rápido que quase não conseguia perceber o movimento.
Analisando rapidamente seu ambiente, percebe que ele não teria tanta liberdade de movimentação quanto gostaria, o laboratório de espaço retangular era grande, maior que o espaço em que se deparou com o infectado, mas não era o mesmo que lutar em uma grande floresta, como no dia do fragmento de carniçal. Além disso, prezava pelo mínimo de danos possíveis aos instrumentos para não enfrentar a fúria de sua mãe.
No primeiro passo que dá para fincar suas garras na criatura, ela some. Ele arregala os olhos vermelhos, tentando usar todos os seus sentidos à sua procura. Um deles funciona.
Olha para trás e escapa por pouco de ter sua cabeça empalada pela coisa, que estava no teto; ele tenta fazer seu ataque de baixo para cima com suas lâminas para causar um ferimento drástico na região central do corpo, mas a criatura avança novamente com o seu ferrão em uma velocidade que o forçava apenas desviar.
Por que isso é tão rápido?!
Se questiona, lembrando da lerdeza, da dramatização, que era o infectado da reunião. Desvia de mais cinco investidas, se abaixando ou desviando para qualquer lado que fosse evitar ser atingido, e deixa que alguns dos ataques acertassem frascos de vidro vazios.
O fragmento percebe a sua insistência e para no lugar.
A criatura se agacha e seu próprio corpo se contorce, o nítido som visceral de carne sendo rasgada e estruturas sólidas se reposicionando preenchem o espaço.
A partir disso, são liberadas algumas centenas das moscas que se fundiram anteriormente ao fragmento maior, retirando assim uma porção da massa total. As minúsculas criaturas começam a infernizar Trey, seja atrapalhando sua visão com uma "neblina preta" ou o desorientando com seu zumbido incessante.
Porém, o pior de tudo: elas estavam tentando tocá-lo para entrar em sua pele. Um frio sobe pela sua espinha quando sente que algumas estavam conseguindo.
Sem opções, e desesperado para se livrar do enxame, ele pega o isqueiro que seu pai o deu.
Por favor, que isso funcione!
Ele acende e começa a botar fogo gradualmente em algumas. Balançava seu braço incessantemente, enquanto endurecia ao máximo possível sua pele para impedir a entrada dos "insetos".
Em meio ao seu desespero, um clique diferente se destaca nos zumbidos e a chama, antes minúscula, ganha mais de um metro de comprimento, sua cor alaranjada se torna vermelha e o fogo inicia a queima instantânea de todos os fragmentos pequenos.
— HA! Por essa eu não esperava! — Um sorriso digno de um piromaníaco estampava seu rosto.
O fragmento responde apenas com um zumbido longo, avançando novamente.
Ele desvia e ousa atacar com sua "espada de fogo". Três braços da criatura caem no chão.
Seu sorriso aumenta em níveis humanamente impossíveis quando a criatura recua.
Agora era a vez dele.
Ele avança sem piedade, um, três, cinco braços da criatura são queimados em algumas investidas, mesmo que a criatura fosse rápida, a perda daquela porção de fragmentos diminuiu drasticamente a velocidade dela.
— Qual o problema agora?! — Fala em uma voz ríspida, diferente da sua usual, cortando mais alguns braços.
— Não tá conseguindo seguir?! — Continua a zombar da criatura com um sorriso no rosto.
Se preparava para falar mais alguma coisa, mas uma das "moscas" sobreviventes entra na sua boca.
No mesmo instante ele tosse para tirá-las, dando tempo para a criatura avançar.
Trey desvia, mas dessa vez sente uma ardência na sua bochecha.
Ele dá um pulo para trás para se distanciar de vez do ser a sua frente. Toca com garras trêmulas o corte, sentindo uma ardência consumir aos poucos a sua pele e envenenar o seu interior.
Ao checar o resto do seu corpo, percebe que aquele não era o único corte, em vista de que diversos arranhões, praticamente indolores, preenchiam seus braços e torso.
Ele grunhe e cerra os dentes afiados com o veneno fazendo efeito em seu sistema. O fragmento faz mais investidas e o adolescente sente seu movimento ficar mais lento.
Até o instante que o seu corpo apenas paralisa e ele cai no chão, deixando o isqueiro cair e se desativar.
O QUÊ?! Desde quando essa coisa podia fazer isso?!
O fragmento fica parado com uma postura vitoriosa, quase sem membros em seu corpo, falando com uma voz próxima de grossa. — Convencido demais. — A voz sai quase perfeita, como o áudio chiado de uma televisão de tubo.
Ele se atenta com aquele tom, uma voz muito diferente da do infectado, quase como se essa fosse a voz verdadeira do metamorfo.
Trey continuava a lutar para tirar o veneno do seu sangue e os "insetos" que rastejavam por debaixo da sua pele. Ao mesmo tempo que a criatura caminhava até sua figura no chão, ficando acima dele, mirando o ferrão na exata direção onde estava o seu ponto de queda, na sua testa.
Como ele sabe como me mat- Não, não importa isso agora! Eu só preciso sobreviver!
O fragmento fala por último, com superioridade e desgosto em seu tom. — Os humanos deveriam ter ensinado o seu cachorrinho a morder mais do que latir.
A criatura recolhe todas as suas forças e investe com potência total.
Ao mesmo tempo que o cômodo branco, antes coberto pela camada preta amarelada das moscas, ganha uma nova tonalidade alaranjada, dando vida às cores doentias que estavam assombrando o local.
O foco de Trey permanece apenas no ferrão e no que ele faria para sobreviver, ainda tentando eliminar o veneno no seu sistema. Assim não percebendo a criatura ser coberta por chamas.
Com um pouco mais de movimento, Trey se arrasta para longe da criatura que se debatia. Seus olhos procuram pelo causador disso e se deparam com algo que o faz quase gargalhar de felicidade. Uma figura com o rosto todo tampado por um pano, usando óculos escuros, segurando uma "tocha" improvisada em uma mão e um spray de inseto na outra.
O fragmento olha para o causador da sua lenta morte, seus instintos gritando para assimilar o humano, mas ele retorna a sua missão. A criatura desvia de mais uma rajada de fogo com suas últimas forças e corre em zigue-zague até Trey.
O fragmento disforme pula no metamorfo, o prendendo ao chão e fazendo sua última investida.
— TREY! — Miguel grita.
Sobre o som do fogo, o barulho de carne sendo rasgada se torna nítido.
A cabeça do fragmento cai no chão.
Lentamente, Trey se arrasta para longe do corpo da criatura, que esporadicamente tinha espasmos aleatórios.
Miguel se aproxima da cena, queimando os "insetos" restantes e lançando uma última rajada para matar de vez a criatura. O corpo do fragmento é consumido pelas chamas, se tornando uma espécie de casca oca, e a fumaça que se alastrava pela sala aciona o sistema de incêndio, liberando água para apagar o fogo restante.
Ele joga no chão sua tocha apagada e o restante de spray de inseto, retira a sua proteção improvisada e se agacha próximo a Trey.
— Trey...
— Eu não sabia que ele ia ser tão rápido. — O mais novo se explica de imediato, um arrependimento em seu tom.
— Trey.
— E ter um veneno paralisador! Aquela coisa que prendeu eu e a Lara era nada comparado a isso!
— Trey!
Finalmente, ele olha para seu irmão, não querendo admitir que foi o idiota da situação.
— Você tá bem?
Ele fica em silêncio, dando tempo o suficiente para a impaciência tomar Miguel e fazer ele olhar o seu braço.
— Ei! Cuidado! — Trey se ajeita, ainda sentindo o seu braço direito como se estivesse pegando fogo.
Seu braço, ou melhor, seu antebraço, havia se desfigurado por completo. Sua pele, seus tendões, suas artérias e veias foram completamente rasgadas, deixando com que uma boa porção do seu sangue, com a presença de alguns insetos, caísse no chão, assim dando espaço para a enorme lâmina que havia se formado.
O comprimento ia do seu pulso até o seu cotovelo e se estendia por quase dois metros para fora do seu corpo, possuindo uma aparência pálida, devida a utilização dos seus ossos para criá-la; algumas porções de músculos se prendiam a lâmina curvada e certas artérias eram notáveis na superfície, ambos dando a chance para a lâmina ser flexível.
Ainda não sabia dizer se aquilo foi um ato consciente ou não, mas pela dor insuportável que estava sentindo, tudo indica que não.
— Hm, já vi você fazendo algumas vezes isso para imitar aquele personagem do quadrinho. Blade Force, né? — Comenta com um leve sorriso nostálgico. — Mas nunca vi você conseguir fazer desse jeito.
— Sério?! Eu não lembrava disso! — Fala maravilhado.
Por que eu nunca pensei nisso antes?! Eu preciso aprender a fazer isso nos dois braços agora.
Miguel tenta tocar na lâmina para ajudar Trey a se levantar e corta imediatamente seus dedos. — Ai! Isso daqui tá mais afiado do que suas garras!
— Não é à toa, foi um ótimo corte, né? — Trey fala com um sorriso, orgulhoso do corte perfeito que havia feito na criatura.
Miguel dá um sorriso forçado, tentando manter a calma após quase ver o seu irmão morrer, pensando no que faria dali em diante.
🌑🌓🌕🌗🌑
Trey olha decepcionado o seu braço enfaixado, com o desejo de aprender a usar a nova habilidade. Seus pensamentos são interrompidos quando a vontade de vomitar volta.
Ele vomita novamente mais sangue no pequeno balde preto, expelindo mais "insetos" e mais da sua energia vital. Ao menos estava agradecido de que os fragmentos pequenos não tiveram oportunidade de se fundir com seu corpo para infectá-lo.
Passos à frente voltam a sua atenção a Miguel, que andava de um lado para o outro, pensativo, segurando seu celular sem área. Diferente de Trey, que continuava do mesmo jeito, seu irmão parecia estar pronto para uma briga com um metamorfo, vestido com as roupas corretas por debaixo das normais e equipado com alguns itens que ainda não tinha desvendado o que eram.
O metamorfo estava até surpreso que Miguel tinha conseguido se arrumar tão rápido no tempo em que ele pegou o balde e foi para o lado de fora.
Miguel para, olhando para a imensidão do centro da cidade, parecendo ter tomado sua decisão quando o vento forte balança seus cabelos. — Eu vou até o centro e alertar meus pais sobre isso.
Trey arregala os olhos, ainda processando a informação.
— E não, você não vai comigo.
Ele vomita de novo.
— Miguel! — Limpa a boca de sangue, se recuperando do desgaste. — Pensa bem nisso!
— Trey, por favor! Aquela coisa acabou de tentar te matar! — Ele gesticula com os braços, exasperado. — Você não percebeu que ela me ignorou?! Ela focou em você! Você acha mesmo que vou te levar para o meio disso?!
— E o que garante que ela não vai me atacar aqui em casa de novo igual ela fez agora?!
— Se ela for, você não vai fazer a mesma burrice que fez hoje! Você é bem capaz de sobreviver aquilo se não for impulsivo.
Trey se levanta, irritado. — É sério isso?! Você tá sendo estúpido. Não tem como você ir sem mim!
Alguns segundos se passam e Miguel ri, sem humor algum.
— Você não é muito diferente do nosso pai, não é? — Ele olha para a floresta ao redor. — Você não confia um pingo em mim. — Uma mistura de raiva e decepção circulava em sua expressão.
— Você sabe que não é sobre isso...
Se vira, irritado. — E é sobre O QUE então, Trey?!
Você é só um humano...
Sem resposta, o mais velho apenas balança a cabeça, desacreditado. — Essa é a coisa que eu mais odeio em vocês dois, vocês nunca falam nada, e quando falam... Já é tarde demais... — Ele começa a andar em direção ao centro com sua bicicleta.
Sussurra por fim em um tom melancólico. — Ao menos Oliver era mais sincero...
Miguel continuava seu caminho até o centro e, antes que Trey pudesse continuar a se irritar ainda mais, tentando passar pela teimosia de Miguel, o adolescente decide tomar outro rumo, sua cartada mais especial para convencer seu irmão.
Ainda que não fosse a ideal, a situação pedia por isso, pois ele nunca deixaria Miguel ir lá sozinho.
O metamorfo respira fundo, sentindo o peso das suas roupas molhadas e do cansaço do seu estado anêmico.
— Imagina só... — Ele fala em um tom muito mais suave e calmo que o normal, juntando as mãos e as esfregando.
Miguel para, uma desconfiança e crescente irritação irradiando-o.
Trey fica de lado, encarando a barreira no horizonte e levantando uma das mãos um pouco acima do cotovelo. — Você, indo até eles, se deparando com um metamorfo. Você tem uma arma, uma AL, e tem as roupas de proteção. Tudo de acordo.
— Mas — levanta o indicador —, obviamente, você é só um humano. — Se vira e olha para Miguel, que o observava estupefato. — E o que acontece quando um humano quase sem experiência e idiota se depara com um metamorfo forte? — Miguel se preparava para falar algo, mas Trey o corta. — Ele morre, apenas.
Trey continua, se aproximando do seu irmão. — Já eu, preso aqui em casa, estaria livre para ser atacado por qualquer outro metamorfo e impedido de ser útil. Em outras palavras, "two birds killed with one stone". — Para a centímetros de Miguel. — Ninguém ia saber o que aconteceu, o nosso aviso nunca seria entregue e os predadores estariam livres para fazerem o que quiserem. — Força sua expressão a suavizar e toca no ombro de Miguel. — Causando, talvez, a morte de centenas e a de nossos pais...
Os dois se encaram por fim, o silêncio percorrendo o ambiente e a adrenalina ainda correndo em suas veias. — Tudo isso porque você quis ser teimoso.
Miguel endurece tanto sua expressão que quase imagina ter visto Alex, enquanto uma camada brilhosa cobria seus olhos.
Alguns instantes se passam naquela paisagem nublada, com o início do evento no centro se destacando na atípica quietude.
— Tá...
ISSO! CONSEGUI!
Apesar da sua euforia, ele obriga sua expressão a se manter neutra.
O mais velho se afasta, parecendo repudiar ver o rosto de Trey por mais um segundo. — Mas eu preciso que você siga algumas condições.
Trey assente com a cabeça e assiste seu irmão dar meia volta, entrando de casa.
Finalmente, deixa um sorriso de alívio surgir em seu rosto. Havia sentido pela primeira vez que tinha feito algo útil e de valor.
Por algum motivo, Miguel odiava quando ele agia desse jeito, não sabia ao certo o que ele fazia de diferente do seu normal, só reconhecia que ele sempre conseguia convencer Miguel. Porém, não podia usufruir tanto dessa manipulação, senão...
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— Por que você tá fazendo isso?! O que tem de errado com você?! — Miguel balança ele pelo colarinho da blusa.
Trey não sabia o que dizer.
O mais velho o empurra para longe, com ódio estampado em suas feições e lágrimas ameaçando transbordar de seus olhos.
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Trey corre até o balde, vomitando o que parecia ser o último resquício de fragmentos em seu corpo, quase deixando o balde transbordar.
Ele segura o objeto um pouco zonzo. Levanta lentamente sua cabeça e vê o seu reflexo usual, distorcido pelas ondas do sangue vinho, o distraindo da tremedeira quase imperceptível em seu corpo.
Uma forte pontada em seu estômago o atinge, parecendo que não se alimentava há dias.
Será que dá tempo de comer alguma coisa antes de sair?
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