10. a importância de ser honesto
1 MÊS DEPOIS
Érico olhou feio para o fervedor de leite da máquina de café. Já era a segunda vez, desde que começara a trabalhar, que a tal geringonça inventava de queimar seus dedos. No silêncio gostoso da cafeteria vazia, naquele final de novembro ensolarado, ele limpou a bancada e enfiou o dedo indicador queimado na boca.
Trabalhava há três semanas como barista aprendiz na cafeteria da Odonto, e há duas semanas vivia em pé de guerra com a maldita máquina. Durante a primeira semana, a Dona Paula, proprietária do lugar, fora uma professora excepcional com um aluno que mal beirava o mediano. Apesar de viver aos tapas e beijos com a máquina de café, em uma semana veria o resultado daquela relação tão conturbada: seu primeiro salário.
Por ser um trabalho de meio período, Érico não ganhava muito. As aulas pela manhã consumiam seu tempo, porém a Dona Paula aceitou que ele trabalhasse apenas à tarde, o que reduzia bastante o salário oferecido. Deixar o Laboratório de Gastronomia também fora necessário, entretanto, nada disso importava. A cada semana finalizada, Érico sentia-se mais próximo do objetivo inicial de poupar, todo mês um pouquinho, para comprar o tal colar da Dona Dai. Ele, como bom brasileiro, não desistia fácil.
Mesmo passado um mês do aniversário da mãe, que fora comemorado num mini jantar no quintal e com uma violeta que Érico e Cléber compraram para a Dona Dai, longe do clima de felicidade absoluta inicialmente planejado por conta de outros fatores, fatores que nem a alegria exuberante da mãe aplacou, a ideia do colar não o abandonara. Mesmo começando como uma aposta, o tal presente ainda era seu objetivo maior.
Pensar na aposta fez Érico suspirar enquanto abria uma caixa de chicletes que precisavam ser repostos na gôndola. Quem olhasse de longe poderia jurar que Érico estava apaixonado — o que, para dizer a verdade, não deixava de ser uma realidade —, porém o que o consumia era a situação com os amigos, e não assuntos do coração. Nando e Mosca não olhavam em sua cara há um mês. Contadinho no calendário, parecia ainda mais horrível. Érico suspirou novamente, empurrando a caixa de papelão para baixo do balcão. Quem dera seus problemas fossem fruto de paixão.
O final do semestre trouxera, além do acidente de Nando, uma alteração completa no comportamento dos amigos. Toda tentativa de aproximação era negada por Mosca durante a breve internação de Nando, e Érico teve de aprender a passar os intervalos e grande parte das aulas sozinho. Mal os períodos terminavam, Mosca corria para fora da sala feito um jato, ignorando Érico como se não o conhecesse. Sem o amigo, Érico sabia do estado de Nando através dos outros, por uma ou outra postagem no Facebook ou por fofocas de corredor.
(Érico até que gostaria de mandar mensagens perguntando sobre Nando, pedir perdão e dizer que devolveria cada centavo do dinheiro da aposta, mas o grupo, "3 GURI BOM", fora excluído. Aparentemente, as feridas eram mais profundas do que Érico havia imaginado.)
Ele franziu os lábios e ajeitou o aparelho auditivo. Tentava não pensar muito no assunto, mas era difícil. Quando a cafeteria ficava vazia daquele jeito, sem a Dona Paula no caixa, sem os clientes barulhentos nas mesas e sem os outros garçons, o pensamento de Érico dava voltas e sempre encontrava parada nos amigos e no dinheiro. Principalmente no dinheiro.
Na carteira surrada que ele trazia no bolso da frente havia a quantia exata que precisava devolver aos guris. Todas as manhãs, quando saía para a aula, Érico verificava se o dinheiro estava lá. Sabia dos riscos que corria ao andar por aí com 1400 paus na carteira, mas que outra opção havia? Se os guris, iluminados por um milagre, decidissem falar com ele, se inventassem de perdoá-lo, se... se... se...
Érico suspirou. Pelo menos agora, com o final das aulas, poderia se dar ao luxo de deixar o dinheiro em casa; os guris não iriam à universidade apenas para reatar laços. Se não eram vítimas das recuperações, Nando e Mosca eram os primeiros a sumir tão logo as férias começavam.
Mas tu precisa dar um jeito nisso, cara, pensou ele, preocupado. Isabel relutara bastante em devolver sua parte da aposta, o que era até compreensível de certo ponto. Depois de muita persuasão — e de uma quase crise de choro diante de Isabel — ela voltara atrás na decisão. De qualquer maneira, havia funcionado.
Érico guardou as xícaras no balcão ao lado da cafeteira e esfregou as mãos no pano de prato. Apesar do gelo dos amigos, nem tudo era tristeza. Isabel, por exemplo, era uma das partes que...
Mas os pensamentos de Érico foram esmagados pela visão de Mosca e Nando passando pelas portas de vidro da cafeteria. Do outro lado do balcão, ele piscou quando os amigos sentaram numa das mesas da janela, uma com assentos que imitavam sofás de couro marrom. Nando ainda trazia o braço direito numa tipóia azul, e Mosca, sempre relaxado, apoiou um dos braços no encosto do sofá e olhou em volta como se estivesse numa festa. O olhar de Érico encontrou o do amigo durante uma fração de segundo, mas Mosca foi rápido em desviar. No silêncio esquisito, ele demorou a entender que, na ausência da Dona Paula e dos outros garçons — medida que a proprietária adotava quando o semestre terminava e o movimento caía — quem deveria atender e servir os amigos era ele. Ainda aéreo por ver os dois ali, Érico pegou a bandeja, estourou o volume do aparelho auditivo e foi à única mesa ocupada da cafeteria.
De perto, Nando ainda trazia uma aura que evocava os corredores brancos do hospital, o cheiro de antisséptico e o som dos sapatos dos enfermeiros no piso de linóleo de cor clara. Além disso, havia uma sombra escura em sua careca de Vin Diesel. Em silêncio, Érico decidiu que nunca se acostumaria a ver Nando com cabelos, mesmo que rentes à cabeça. Era como colocar o arroz por cima do feijão: não fazia sentido.
Os três ficaram em silêncio. Érico apoiou na bandeja o bloco de papel que todo garçom trazia no bolso do avental e, na voz profissional de quem tenta não vacilar, perguntou:
— O que vai ser pra vocês?
— Não sei — respondeu Nando, azedo. — Quem sabe um espresso e uma dose de vergonha na cara. Ou será que isso ainda tá falta?
Mosca permaneceu em silêncio, distraindo-se com o saleiro da mesa. Érico fechou a cara, apertando o bloquinho de papel com força.
— Bom ver que tu arranjou um emprego, Surdinho — continuou Nando, ainda naquela voz falsa e irritante. — Pelo visto tramar pra arrancar dinheiro dos outros não deu muito certo, né?
Érico trincou a mandíbula. Queria, mais do que tudo no mundo, o perdão dos amigos, mas não imploraria. Até para isso havia limites.
— Quer saber? Eu mereço — disse Érico, largando a bandeja na mesa. — Mereço cada piadinha idiota e comentário sarcástico, mas não vou ficar plantado aqui pra ouvir desaforos depois de um mês tentando fazer as coisas darem certo.
— Tentando fazer as coisas darem certo?! — repetiu Nando, como se as palavras fossem asquerosas. — Tu chama isso de tentar?
— Não sou eu quem vira a cara nas aulas — retrucou ele, encarando Mosca. O amigo apertou o saleiro, a cabeça baixa. Érico encarou Nando e deu o golpe final: — E nem fui eu quem proibiu minhas visitas no hospital.
Depois daquela noite horrível na festa, nos corredores do hospital, depois de ter quase deixado o aniversário da mãe cair no esquecimento e de carregar a culpa pelo acidente, Érico foi proibido de visitar Nando. E não foram os pais dele que inventaram a tal proibição. Longe disso. O próprio acidentado, tão logo abriu os olhos, pediu o impedimento das visitas de Érico. Foi medonho voltar ao hospital na tarde seguinte e ver o Seu Henrique e a Dona Agatha, ainda com as roupas da noite anterior e olheiras profundas, sem saber como dizer que Nando havia acordado e que as visitas estavam permitidas, exceto as visitas de Érico.
Nando fechou a cara, desviando o rosto. Mosca uniu as mãos sobre a mesa. Ninguém falou. Ninguém tinha a mínima vontade de dizer coisa alguma. Érico ajeitou os ombros. Era hora de ser adulto.
— Olha, já entendi que vocês não vão me perdoar, e beleza — disse ele. — Só vamos resolver isso de uma vez e seguir com as nossas vidas.
— Terminar logo com o quê? — perguntou Nando, a cara emburrada. — Se esqueceu que tu ainda tá nos devendo?
— Nando — começou Mosca.
— O que foi, meu? — resmungou o amigo, ajeitando a tipoia com um gesto raivoso. — Ele tem que nos devolver a grana, ué!
— Não seja por isso. — Érico abriu a carteira e atirou o dinheiro em cima da mesa. As orelhas dele palpitaram. — Se era só isso, podem ir embora. Só contem o dinheiro antes.
Os três ficaram em silêncio. As cédulas, juntas num bolinho, oscilaram na mesa, porém nenhum dos amigos tocou no dinheiro. Mosca disse:
— A gente não veio só por isso.
Uma pequena fagulha de esperança cresceu no peito de Érico, mas depois de um mês de silêncio era difícil cultivar o sentimento. Era um misto de querer ouvir o que Mosca tinha dizer e uma vontade enlouquecedora de mandar os dois embora. Érico esperou, apertando a bandeja de metal com força. Enquanto Nando mantinha a cara amarrada, Mosca suspirou.
— Olha, isso tá ridículo já — disse o amigo orelhudo. — A história toda foi errada, do início ao fim, mas a gente não pode ficar nessas pra sempre.
Nando grunhiu.
— Ele que pensasse nisso antes de nos trair!
— Quem encheu a cara e contou pra todo mundo na festa foi tu — reclamou Érico.
O amigo ia revidar, mas Mosca apertou os olhos. Silêncio outra vez.
— Todo mundo errou, porra — disse ele. — A gente nunca deveria ter apostado essa merda, e o Érico não deveria ter se juntado com a guria. Foi tudo errado, ok? Todo mundo tem culpa nessa merda. — Mosca fez uma pausa. — Bah, eu não acredito que vocês tão me forçando a ser a fada sensata do grupo. Pelo amor de Deus.
Nando e Érico ficaram de cara amarrada, crianças que são obrigadas a ir para a escola num dia de sol. Mosca suspirou exatamente como o pai que não sabe como explicar ao filho que enfiar o dedo nas tomadas é errado.
— Agora fica tudo bem, né? Eu quase morri nesse acidente, meu! — disse Nando, a voz esganiçada. — E pra quê? Porque ele queria dinheiro pra foder a guria!
— Quê?! Tu enche a cara e a culpa é minha, né? Vai se foder. Eu só queria comprar um presente pra minha mãe!
— Se era só isso, eu teria te emprestado, porra! — explodiu Nando. E se acalmou aos poucos, como se a tarefa por si só fosse homérica. Cansado, arrematou: — Era só ter me pedido que eu teria te emprestado o dinheiro.
Érico abriu a boca, mas não soube o que dizer. De repente tudo pareceu idiota e óbvio; a aposta, Nando, Mosca, o colar. Se Érico tivesse pedido, era óbvio que Nando emprestaria, ainda mais se soubesse que era um presente para a Dona Dai, que segundo o amigo fazia o melhor bolinho de arroz de Porto Alegre. Era só ter pedido.
Ficaram em silêncio. Mosca observou os dois, ainda brincando com o saleiro. A vergonha fechou a garganta de Érico. Nando olhava para o tampo da mesa como se visse ali milhões de galáxias, nenhuma delas interessantes o suficiente para despertar sua atenção.
— Me desculpa — disse Érico, sem graça. Nando ergueu a cabeça. — A verdade é que a Isabel ouviu tudo antes, ainda no bar, e eu fiquei desesperado. Não queria perder o dinheiro. E quando tu te acidentou...
Érico se calou. Ainda era ruim voltar à noite da festa, ao som da batida do carro, aos gritos de Flávio por uma ambulância. Era ruim ter de buscar consolo na mãe no dia seguinte, no dia que deveria ser o dia mais feliz da vida dela. Ele baixou os olhos. Não sabia o que dizer, como exprimir a culpa que havia sentido naquela noite tão medonha.
— Tudo bem, meu — disse Nando, sem graça. — Eu também caguei, sabe? Falando da guria na frente de todo mundo, dizendo que tu só queria comer ela. Me desculpa por isso. E por todo o resto. Tu sabe que eu sou um pedaço de bosta, mas tô tentando melhorar.
Nando fez uma pausa constrangida.
— Se... se tu puder, e se ela quiser, né, sei lá, posso... posso pedir desculpa também — disse ele, evitando o olhar de Érico. — Pedir desculpas pra ela. Sei lá. Foi uma merda o que eu fiz lá na festa.
Érico sorriu sem graça e assentiu. Tinha certeza, mas não coragem de verbalizar, que Isabel possivelmente encararia Nando com aqueles olhos castanhos profundos e que não diria nada para o perdão, nenhum "tudo bem" ou "vai se foder". Além do mais, Érico podia apostar que Nando apenas sairia se sentindo mais culpado do que antes. Mas chega de apostas por enquanto.
— Tudo bem, meu — respondeu Érico. — Posso falar com ela, se tu quiser.
Nando agradeceu com um gesto curto de cabeça. Mosca tinha um sorriso oblíquo nos lábios finos.
— Bem, pelo menos esse acidente não trouxe só coisa ruim, né? — disse ele. Érico franziu o cenho. — Conta pra ele, Nando.
Corado feito uma matrona italiana, Nando deu um sorrisinho e disse:
— Ah, eu e a Tici voltamos. Ela tem me ajudado bastante desde o acidente e tal. Me ajudando a ser menos... cuzão.
— Fico feliz por vocês, meu — disse Érico, alegre de verdade. Os dois combinavam pra caralho. Ele riu. — Só a Tici pra aguentar um idiota feito tu, né?
Nando sorriu e disse:
— É, acho que a Tici vai pro céu. — Ele fez uma pausa, olhando para Mosca. — Não só ela, né?
Érico franziu as sobrancelhas quando a cabeça do amigo orelhudo ameaçou explodir. Mosca ajeitou os óculos, sem graça.
— Para com isso, Nando — resmungou ele.
— O que rolou? — perguntou Érico, confuso.
— Pergunta pro querido aí por que ele sumiu na festa do Flávio. — Nando sorriu, indicando Mosca com um gesto de cabeça e tamborilando os dedos na mesa. — Isso se tu já não sabe, né.
Érico esperou, entretanto Mosca ficou em silêncio. Seu rosto sardento, que parecia o de um rato muito magro, corou ainda mais.
— Eu tava com a Nádia — murmurou ele.
A frase bateu e voltou na cabeça de Érico feito um bumerangue. "Eu tava com a Nádia" era tão perigoso ao ouvido bom de Érico quanto "vamos roubar um banco".
— E passou a noite onde? — insistiu Nando, rindo. Mosca ajeitou os óculos. — No Chevette dela. Dormindo bem agarradinho com a guria no banco de trás. Eu não vi a cena, mas me disseram que foi um amor.
O silêncio chocado de Érico fez o rosto de Mosca corar ainda mais. A imagem dos dois juntos dentro do Chevette que cheirava a talco de bebê e cigarros mentolados era tão bizarra que Érico preferia não imaginar.
— Ela comentou que tava saindo com um Bruno, mas não... — começou Érico. Mosca apertou os olhos. — Puta merda, é claro! Tinha esquecido que teu nome é Bruno. Bah. Tu é bem corajoso, hein?
— Olha quem falando, né, Surdinho? — respondeu Mosca.
— Gostar de mulher difícil parece ser bem comum nesse grupo — disse Nando. — Como tão as coisas lá?
Era óbvio que o amigo falava de Isabel. Foi a vez de Érico corar.
— Não tão. Tipo, a gente conversa bastante. Ficou uma... uma amizade bacana.
Os dois apertaram os olhos. Nando riu e disse:
— "Amizade bacana" depois daquele puta beijão e de ir pro motel. Ok.
— Era tudo arranjado, meu — disse Érico, corado. — Inclusive as fotos e a calcinha, que ela comprou pra te enganar. Era tudo... combinado antes.
— Tem coisas que não podem ser combinadas antes, cara — disse Mosca.
Érico corou outra vez, pensando que, mais do que nunca, os amigos estavam cobertos de razão. Feito tiro de pistola, as lembranças de Érico voltaram à noite de sexta-feira, ao aconchego da suíte master luxo do Motel Imperial. Ah, que saudade daqueles malditos espelhos que tudo deixavam ver, do colchão que mais parecia um pedacinho de nuvem e da companhia de uma certa pianista de jazz.
— Tá, mas vamos voltar ao assunto — disse Érico, pigarreando. — Tá tudo... tudo ok entre nós?
— Ainda não. — Mosca puxou o celular do bolso, sorrindo com o canto dos lábios. Seus dedos voaram na telinha. — Agora tá tudo certo.
Ele virou o celular para Érico. O falecido grupo "3 GURI BOM" estava de volta à ativa. Érico sorriu, apertando a bandeja contra o peito. Só havia uma coisa que faria aquele dia melhorar.
— E pra selar a volta do "3 GURI BOM", o que acham de um café? — perguntou ele. Os amigos sorriram, puxando as carteiras. Érico estendeu uma das mãos, interrompendo-os. — Ei, sem essa. Deixa que eu pago dessa vez.
— Com que dinheiro, Surdinho? — perguntou Nando, rindo.
— Ah, os funcionários podem pendurar uns cafezinhos — respondeu ele, incapaz de desfazer o sorriso. — No final do mês acerto tudo com a Dona Paula.
— Eu que não sou doido de recusar café de graça — disse Mosca, ajeitando os óculos. — Traz tudo lá e senta aqui, Surdinho, que a gente ainda tem uma porrada de coisa pra conversar. Em um mês muita coisa acontece.
Érico sorriu, assentiu e voltou à máquina de café. Realmente, um mês mudava muita coisa.
---
A primeira frase que ela disse quando ele se aproximou foi:
— Tu tá 11 minutos atrasado.
Érico riu, largando a mochila na grama e sentando-se ao lado de Isabel. Ela sempre pontuava o atraso, mas daquela vez não importava; tinha o coração leve feito pluma, e nem os comentários de Isabel acabariam com o bom humor dele. Tudo naquele dia estava perfeito demais para ser verdade.
— Eu sei — respondeu Érico, ainda sorridente. — Eu tava com os guris.
Ela franziu o cenho. Sem esperar o pedido e tendo o pôr do sol e as árvores do campus como testemunha, Érico contou tudo. Contou que os amigos estavam na cafeteria, que pediram perdão, que refizeram o grupo e que o Bruno da Nádia, o famoso, era Mosca. Como fazia há um mês, falou para Isabel sobre os amigos, entretanto o final, pelo menos desta vez, seria diferente.
Quando terminou, ele sorriu e se jogou de costas na grama, os braços atrás da cabeça.
— Bah, um mês pode mudar tudo, né? — refletiu ele, admirando o sol de final da tarde entre as folhas das árvores. Érico riu, fechando os olhos. — A vida é muito louca.
— Não precisa exagerar.
— Ah tá — resmungou ele, abrindo os olhos. Por que Isabel sempre precisava estragar tudo? — Vai dizer que tu imaginava tudo isso? A aposta, nossos encontros aqui, a gente...
Então ele se calou. Não queria se trair tanto, deixar tão na cara que estava de quatro por Isabel, mas a situação pedia. Em um mês havia apostado com os amigos que conseguiria sair com uma guria esquisita e não só havia estabelecido uma aliança com o objeto da aposta, como também ensaiava, desde então, um princípio de amizade. Assim que a farsa toda fora descoberta, Érico se encontrava todos os dias com Isabel para jogar conversa fora e ver o pôr do sol antes de pegarem o ônibus.
Dizer que a companhia silenciosa e constante de Isabel fora um bálsamo para a solidão de Érico era muito pouco. Sem os amigos, sem ninguém para conversar além de Nádia, que mais falava do que ouvia, Isabel fora um porto seguro; um porto seguro que, ao contrário da amiga, mais ouvia do que falava, mas não importava. Ninguém era perfeito.
Como ela tinha coragem de dizer que um mês não mudava nada, se para ele havia transformado tudo?
— Enfim, e a tua avó? — perguntou ele, mudando de assunto. — Aceitou bem a ideia de tu ser pianista de jazz?
Numa das conversas transcorridas naquele mesmo gramado, Isabel decidira contar à avó que juntaria dinheiro para ir à Nova Orleans beber da fonte do jazz e voltar ao Brasil para, quem sabe, abrir um clube de jazz em Porto Alegre. Érico havia apoiado de corpo e alma a revelação, mas como ela não havia tocado novamente no assunto, imaginou que algo pudesse ter saído errado.
— "Aceitar" é uma palavra forte — disse ela, observando o movimento do campus com aqueles olhos castanhos profundos. Isabel sorriu com o canto dos lábios. — Minha avó quase teve um ataque cardíaco, disse que eu era uma desmiolada, que tava jogando fora meu talento pra... fazer barulho com músicos de fundo de quintal e que eu morreria de fome, sozinha e pobre na sarjeta. Mas acho que ela aceitou bem.
Ele ficou em silêncio. Aquilo não era bem o que ele entendia por "aceitar bem", mas enfim. Isabel tinha sua própria maneira de ver as coisas.
— Bah, que merda — disse ele, sem graça. — Mas não te preocupa. Se tu precisar, se a coisa ficar feia mesmo, tu pode passar uns tempos lá em casa. Minha mãe faz um bolinho de arroz tri bom, e eu tenho certeza que ela ia adorar te con...
Isabel riu, e o som era musical, perfeito. Lá estava ele, falando da mãe de novo. Incomodado pela alegria súbita dela, Érico mirou sua parceira de apostas com o canto dos olhos. Não era difícil prever que lá vinha bomba.
— O que foi? — perguntou ele.
— Nada, ué.
Mas ela ainda sorria como se cada parte da grama soubesse um segredo que Érico nem desconfiava. Ele corou, as orelhas palpitando.
— Do que tu tá rindo, então, tchê?
— De ti.
E ela não ficava nem envergonhada. Que espécie de feitiçaria era aquela?
— Bah, tu é muito cara de pau — disse ele.
— Mas tô rindo de ti, ué. Quer que eu minta?
— E posso saber qual é a razão da graça? — perguntou Érico, desconfortável apesar do dia idílico que caía sobre o campus. Sentada na grama, Isabel sorriu com o canto dos lábios. — Justo hoje que esqueci meu nariz de palhaço em casa...
— Tu é uma pessoa muito transparente.
— Tu que é toda... toda...
Ele mal conseguia formular uma palavra para descrevê-la. Maldito calor. Isabel sorriu.
— Fechadona? — perguntou ela.
— Muito engraçado — resmungou ele. Isabel baixou a cabeça, o sorriso ainda preso aos lábios. Curioso como sempre, Érico mirou-a, tentando aparentar desinteresse. — E por que tu acha que eu sou tão transparente assim?
— Porque tá na cara que tu quer transar comigo de novo. Tô errada?
Por que ele não conseguia ser misterioso, distante e fechadão como ela? Érico corou, ciente de que tudo o que fazia, os gestos que desempenhava e até as próprias palavras que escolhia o entregavam a cada segundo para Isabel. Seria, num pensamento profundo porém engraçado, um péssimo espião. Mas a reflexão apurada, naquele final de tarde de primavera que anunciava um verão insuportavelmente quente, fê-lo perceber que Isabel estava errada. Parcialmente errada.
Érico ergueu o torso, apoiando os braços nos joelhos. Observou os food trucks que se avolumavam no pátio do campus e, com o cenho franzido, riu. Isabel estava errada. Talvez ele não fosse tão transparente assim.
— Bah, tu errou feio. — Érico riu. Sentia o olhar de Isabel fixo no seu, mas era incapaz de desviar a atenção dos atendentes dos diversos food trucks, que carregavam caixas para dentro e fora dos furgões, iniciando mais um expediente. Parecia mais fácil dizer o que pretendia sem encarar Isabel. Ele riu outra vez. — Quero ficar contigo, sair contigo e fazer tudo contigo. Cinema, restaurante, praça, motel, tanto faz. Mas como tu é burra e não percebe o quanto tu é importante pra mim, não vou ficar enchendo o saco. Também tenho meu orgulho, né?
Ele encarou Isabel, o coração aos pulos. Depois de toda declaração, o tempo parecia andar para trás. A espera da resposta, mortal, era tão angustiante quanto a ideia de falar sobre os próprios sentimentos. Ainda mais para alguém tão... impassível feito Isabel.
— Sair custa caro. — Ela fez uma pausa. — Quanto tu vai me pagar? Não vou ficar saindo contigo de graça, né? Tenho mais o que fazer.
Érico ficou vermelho, confuso pela expressão dela. Isabel sorriu daquele jeito.
— Foi uma piada — arrematou ela.
— Bah, tu é muito cuzona. Sério — disse ele, passado o choque do silêncio. Isabel sorriu com o canto dos lábios. — Tô aqui, abrindo meu coração e me voluntariando pra ser o teu namorado de número quatro, e tu me trata assim. Que maldade.
Ela ficou em silêncio, mirando o horizonte. Érico sabia que jogava alto, que Isabel não era exatamente a criatura mais carinhosa do planeta e que, mais do que tudo, ele poderia ter interpretado errado os sinais, os beijos e os pequenos momentos de silêncio e até de conversa entre eles. A margem de erro era imensa, mas não arriscar seria pior ainda. Ele não queria dizer em voz alta que aquele mês, apesar da ausência dos amigos, havia sido incrível ao lado dela.
Devagar, com os olhos vagando pelas luzes do campus, Isabel encarou-o.
— Na festa do mês passado tu disse que tinha... cagado nas únicas duas pessoas que se importavam contigo — disse ela. Érico franziu o cenho. Ainda com a habitual ausência de expressão, Isabel arrematou: — Eu me importo contigo também. Do meu jeito... fechadão. Só pra tu que saiba.
Ele abriu a boca, mas não soube o que dizer. Então, sem alternativas naquele final de tarde abafado, sorriu. Érico sabia, sentia aquilo, e não mudaria o jeito esquisito e fechadão dela por nada. Nem por todos os muffins ou colares do mundo.
Novamente, ela sorriu com o canto dos lábios e disse:
— E parece que quatro é o nosso número da sorte.
Érico piscou e sorriu. Ali estava sua resposta. Incapaz de desfazer o sorriso, concordou:
— É o que parece.
Trocaram um olhar repleto de significados que apenas os dois entenderiam. Sentado de frente para ela, ele não queria mais perder tempo; Érico se inclinou e puxou Isabel para um beijo. Estava cansado de deixar que ela tomasse a iniciativa, de ser o surpreendido toda vez. Era justo querer causar nela os mesmos sentimentos que ele experimentava quando Isabel se aproximava, quando o beijava com aquela vontade enlouquecedora. E mesmo depois de um mês sonhando em repetir aquilo, o beijo dela era tão bom, ou até melhor, do que a própria imaginação.
Ele se afastou e riu baixinho, mantendo-a por perto. Isabel tinha o sorriso de jazz no rosto. Só havia um jeito de melhorar o dia. Érico deu mais um selinho em Isabel, levantou-se e estendeu a mão.
— Bora — disse ele.
— Pra onde? — perguntou ela, erguendo-se com a ajuda de Érico.
Ele ficou em silêncio, de mãos dadas com ela. No meio das árvores, no final de tarde quente e perfeito daquele dia igualmente perfeito, só havia uma coisa, de todas as coisas no mundo, que ele gostaria de fazer com ela. Érico deu outro selinho em Isabel e sussurrou contra os lábios dela:
— Bora pegar um hambúrguer em algum desses food trucks que possivelmente já foram fechados pela Vigilância Sanitária e comer na grama, estilo piquenique?
Isabel sorriu com o canto dos lábios.
— Por mim parece ótimo.
Sem soltar a mão dela, ele pegou a mochila do chão. Isabel sorriu outro de seus sorrisos de jazz e apertou de leve a mão de Érico. Seguiram, pela noite que já caía, em direção ao parque improvisado de food trucks.
Entre muffins e apostas, salvaram-se todos.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro