Gelo e Fogo
Desde aquele dia, o azul nas orbes do garoto deixaram de ser uma simples cor de íris. A mescla entre o tom claro ornamentados em detalhes prateados eram quase como um cristal, mas tudo era uma questão de olhar. Para ela, aqueles olhos lhe remetiam as geleiras da Antártida, o ponto mais frio deste planeta, ou talvez, quem sabe, uma nuvem de gás expelida por uma estrela moribunda, que o expele nos seus últimos gritos de socorro seu sopro mortal, chegando a ser mais frio que o próprio zero absoluto.
Aquele olhar, aquele maldito olhar que a prendeu em seu momento mais desesperador. A lâmina afiada da adaga podia cortar sua pele em camadas, a marcando por alguns anos, mas seus olhos cortavam sua alma de maneira lenta e abrupta. Uma dor não podia se equiparar a outra. Jamais. A clara menção a hesitação, juntamente ao dever de se manter ali parado apenas a olhando de maneira fria. Ele era um iceberg e ela um barco frágil que foi de encontro a própria destruição.
As camadas de tecido que, hoje, cobriam seu corpo, não eram capaz de suprir seu desejo pelo que era quente. Seu corpo frio como uma estátua de mármore jogada em uma nevasca, não era capaz de absorver o calor necessário para se normalizar, a cada dia ficava mais letárgica pela má circulação sanguínea. Em sua sala a lareira sempre estava acesa, o chá sempre quente, e em sua casa seu aquecedor sempre estava ligado. Cobertores elétricos e feitiços para regular a temperatura eram indispensáveis.
Até hoje ela se perguntava como havia chegado ali. Como em algumas horas sua vida poderia ter mudado para todo o sempre. Todos os dias se perguntava se era obra do destino, ou simplesmente as consequências de seus atos que acarretou todo este transtorno. Mas a aquele ponto isso não importava mais. Queria apenas viver sua vida - ou o que restara dela - de maneira tranquila.
Como em um reflexo de um mundo paralelo, o homem passava pelo total oposto. As feridas formadas pelos graus absurdamente altos, mostravam o quão quente tem sido os locais por onde ele passava. Suas queimaduras de terceiro grau, mesmo constantemente tratadas, não desapareciam por completo, e o mais contraditório naquilo, era que havia anos que não via a luz do sol descentemente.
Tudo havia começado naquele dia em sua casa, o dia em que percebeu que merecia o inferno. Vê-la sendo torturada daquela maneira sem poder mexer um músculo, ouvir seus gritos que rasgavam o silêncio e ecoava pelo cômodo amplo; ver seu sangue rubro escorrer por seu braço após ser marcado com a lâmina de maneira dolorosa. Porém, o que mais lhe perturbava de tudo isso, foi o momento em que ela simplesmente desistiu demonstrar e apenas se fixou em seu olhar atônito.
O castanho enevoado oscilava enquanto sua mandíbula continuava travada, sem dizer uma palavra, apenas grunhindo de dor. As lágrimas que transbordavam de seus olhos desciam sobre seu rosto como uma cachoeira, desaguando no chão sujo, se fundindo a seu próprio sangue.
Tudo o que fez foi observar, e nunca se perdoou por isso.
A cada dia, a cada momento, cada vez que sonhava ou pensava naquilo, ele mentalizava as chamas o corroendo. As chamas fervorosas e intensas como os gritos ensurdecedores que ela soltava. Essas eram as chamas que o consumiriam lentamente, até que chegasse o dia que não sobrasse mais o que queimar.
Aquele olhar, aquele maldito olhar o consumiria em chamas, até suas cinzas serem levadas pelo vento e apagaria o fogo sem alimento. Esse era seu destino, sua sina. Suas escolhas – ou a falta delas – o levaram até esse incidente, e ele acataria até o final, ou era isso que ele pensava até mudar de departamento.
Hoje, seu guarda roupas não continha nada além de roupas de verão, sua casa é mais gélida que um iglu e sua pele é constantemente marcada. A maestria em poções o ajuda a curar parcialmente as feridas acarretadas pelo calor que vinha de dentro para fora, mas nada tão eficaz a ponto de curá-lo. Há anos não sabia o que era tomar um bom café recém passado ou um bom ensopado, suas comidas e bebidas eram todas frias, nada poderia ser quente. Seu maior prazer era lhe proporcionado pela natureza furiosa, quando as grandes tempestades chagavam trazendo consigo os ventos congelantes e chuvas pesadas, assim como as nevascas que duravam dias. O inferno para uns era seu paraíso, neste ponto nada havia mudado.
Estava na metade do ano quando se mudou para o departamento de mistérios, onde poderia ficar nos locais mais gélidos e vazios do Ministério da Magia, trabalhando em suas quebras de maldições ou analisando objetos de certa periculosidade que ninguém além dele ousaria estudar. Ali, além de encontrar algo perto de uma paz interior, ele havia encontrado esperança de que um dia conseguisse arranjar algo que o ajudasse, que quebrasse aquela maldição. Mesmo após cinco anos, ele não pode se acostumar a conviver com as chamas. Parecia que desde que entrou naquele lugar, haviam picos mais forte que o normal em seu calor, aumentando notoriamente suas feridas.
E da mesma forma que acontecia com o homem, também acontecia com a mulher. Três anos trabalhando naquele departamento, seu ponto de tranquilidade, onde poderia resolver e analisar furos nas leis da magia e ajustar novas maneiras de lidar com certas situações; naquele local ela poderia se enfiar em livros e litros de chá fervendo que ninguém a incomodaria se não fosse extremamente necessário. Mas apesar de sua pequena satisfação, ainda não havia encontrado uma solução para sua maldição, nem mesmo nos livros mais antigos e medonhos disponíveis na biblioteca confidencial do Ministro da Magia. Era frustrante. Mais frustrante ainda era sentir seus sintomas ficando mais fortes em horários determinados do dia. Isso havia começado há duas semanas.
Meio-dia em ponto. Estava no seu horário de almoço, mas para sua infelicidade havia esquecido sua comida sobre a mesa da cozinha, isso significava que teria que sair do seu local quentinho e enfrentar o mundo real. Pegando sua bolsa e um casaco pesado de lã, ela sai evitando perceber os olhares que lhe eram lançados pelos demais funcionários de seu departamento. Era certo que havia limites para que uma pessoa normal sentisse frio, mas não era necessário a olhar daquela maneira – ela, melhor que ninguém, sabia que havia algo errado.
O elevador estava mais lento que o costume e sua inquietação apenas crescia. Tudo o que precisava era comprar seu almoço e voltar para seu escritório, nada tão difícil ou assustador. Quando por fim o elevador parou em sua frente, o frio aumentou significantemente, como se alguém ligasse o ar-condicionado inexistente no local. Seus olhos se fixaram nas portas bronze que abriam em câmera lenta, foi quando o ápice da sensação gélida chegou contra seu corpo.
Aquele olhar.
O homem precisava de um documento que estava no Departamento de Execução das Leis da Magia, um dos locais que mais evitava - apesar de sempre ter algo fervilhando dentro de si para ir em algum momento na intensão de vê-la e perguntar como ela estava após aqueles anos.
Ele sabia qual era seu departamento, sabia desde o dia que entrara naquele emprego, mas por quase dois anos optou por trabalhar as ruas, como um reles obliviador; contudo, a inquietação nele pedia para mudar seu posto – especialmente depois de tantos convites de seus superiores -, após muitos meses fugindo de algo que era certeiro, aceitou o cargo. E ali estava ele, em um elevador solitário pedindo ao universo para não trombar com aquela que enchia sua mente, mas o calor que o acompanhava crescia cada vez mais, o fazendo perder toda concentração.
As geleiras imponentes que ela visualizava ao ver a íris azul-claro em contraste com a pupila negra minúscula que a encarava, a faziam tremer a ponto de bater seus dentes de maneira frenética. As chamas que dançavam no castanho quase mel de suas orbes estáticas, o queimavam como nunca. Era como estar no centro de um incêndio de alto porte, onde não havia para onde escapar, tudo o que via e sentia era fogo e novas feridas surgindo.
O suor escorria sobre a pele de ambos. Um frio, outro quente.
Enquanto o coração de um corria para bombear o sangue que fervia dentro de si, o outro pulsava com lentidão – quase parando -, fazendo os atos mais simples como dar um passo, falhar. Contudo, nenhum dos dois ousava se mexer, olhavam-se fixamente sem reação concreta. Por sorte não havia ninguém ali para presenciar tal coisa – o que seria mais bizarro do que dois opostos extremos se encarando como um reflexo?
Tentando recuperar a ciência de seus atos, ela faz menção a entrar no elevador, mas sua pressão havia despencado, o que significava que qualquer movimento, mesmo planejado, seria súbito para seu corpo. Ela vacila, mas apoiando-se na parede recupera o equilíbrio. Ele a olha preocupado, sua pele que um dia teve um tom bronzeado, estava pálida - quase cinzenta -, assim como seus olhos foscos, sem o brilho que outrora estava ali presente.
- Está bem? – diz, tentando não se aproximar mais, com a respiração descompassada.
- Estou, claro. Obrigada. – disse cordialmente.
A conexão em seu olhar foi do início ao fim daquela estranha interação após anos. A porta do elevador havia se fechado, e cada um demorou alguns segundos para realmente voltar a si. Nenhum dos dois estava bem de fato, ambos suavam e respiravam irregularmente tentando achar o ritmo certo para levar o ar a seus pulmões e oxigênio para seus cérebros, mas era como se após a troca intensa de olhares, eles haviam desaprendido como era fazer algo tão natural quanto respirar. Eles fecham os olhos tentando se conectar com seu interior, buscando a calma necessária para seguir com suas rotinas - isso aconteceu no momento que a música do elevador soou, indicando que havia chegado ao nível térreo.
Em sua caminhada ao restaurante mais próximo, seus pensamentos fervilhavam com dezenas de tópicos relacionados ao encontro repentino com a última pessoa que gostaria de ver. Ela preferia enfrentar novamente todo o período conturbado da segunda guerra bruxa, enfrentar cada um daqueles das trevas, mas vê-lo daquela maneira era inadmissível. Apesar dos pesares, ela estava indo bem, estava conseguindo seguir com sua vida de uma maneira “normal” e corriqueira, mas aquele encontro estilhaçou todos seus dias de luta para conseguir isso.
Era injusto.
Realmente era algo além de sua compreensão ele estar ali; não precisava daquele dinheiro, ela sabia disso, o cofre de sua família tinha o suficiente para comprar um palácio e mais algumas ilhas particulares, talvez até um pequeno país. Qual era a dificuldade de continuar em sua mansão sem a perturbar? Desde sua entrada no Ministério ela têm o evitado, esgueirando-se entre seus horários para poder ficar longe dele; isso antes e depois de mudar de departamento. Mas não havia problema, ela conseguiria seus horários novamente e os decoraria, assim não haveria problema em encontra-lo por ai novamente.
O coração dele ainda estava acelerado. Já fazia alguns minutos desde o reencontro e as poucas palavras trocadas, mas seu sangue ainda fervia. Sentado em sua cadeira, isolado de qualquer contato humano, ele pensava em como as sensações produzidas pela maldição se intensificaram perto dela, isso o deixou intrigado. Os pensamentos rolavam em looping em sua mente, o suficiente para tomar parte de seu expediente, deixando seu dia totalmente improdutivo. Quando olhou para o relógio, já eram seis horas em ponto, isso indicava que teria que fazer hora extra naquela noite.
A partir daquele ponto, os sonhos não eram apenas fruto de sua imaginação, ou reflexos do que seus subconscientes levavam para seus conscientes; seus sonhos eram a lembrança vivida do dia que tudo havia começado.
Era uma tarde no mês de março, no ano de 1998. O clima agradável da primavera trazia consigo uma brisa refrescante e a mescla do cheiro de terra úmida, folhas e flores que desabrochavam aos poucos na floresta. O perigo eminente era como uma sombra para o trio que fugia constantemente daqueles que o perseguiam, cujo o objetivo não era matar, mas, leva-los para a morte. E assim foi feito. Quando perceberam, estavam no meio do covil de cobras, no epicentro do pandemônio que era aquela mansão; tão ampla e mórbida quanto os rostos daqueles que os encaravam com ódio.
Os brutamontes que os seguravam, os lançaram ao chão, caindo sobre os pés dos donos da mansão, aqueles que sempre tiveram repulsa contra eles, que os desejavam fora de seus caminho – por bem ou por mal.
Ver seu amigo a um passo da morte era desesperador, principalmente sabendo que sua vida dependia de uma resposta do garoto que sempre o considerou como um inimigo. Quando a resposta veio de maneira negativa, mesmo com a hesitação inicial, seu coração e corpo se aliviaram, mas isso não durou mais que alguns minutos; no momento em que a espada fora mostrada para a bruxa, seus olhos ônix brilharam num tom vermelho revelando sua fúria. Foi quando se viu no chão.
Seus nervos e músculos queimavam em dor, após o conjuro de maldição que a mulher de sorriso sádico lançara sobre si. As risadas agudas ecoavam no hall, de maneira que qualquer um que estivesse na casa escutasse, tão assustadora e doentia quanto sua dona. Seus olhos enchiam de lágrimas ao ver os dois sendo levados a força para um cômodo separado; a dor e desespero expressada no olhar de ambos a deixava cada vez mais aflita e vulnerável, a mercê do sadismo da louca que se colocou sobre ela.
Agora eram seus gritos que ecoavam no cômodo vazio, ocupado apenas pela pequena plateia que assistia seu sofrimento de camarote – e a julgar pelos seus rostos, era um espetáculo e tanto -. Ao negar com todas as forças que tinha que não foram eles a pegar a espada de seu cofre, a varinha e conjuros foram substituídos por um método mais usual por aqueles que eram desprovidos de sangue mágico; uma adaga talhada em arabescos, tão linda quanto mortal. Sua lâmina rasgava sua pele a medida que a satisfação era mostrada em seu olhar, seu sorriso crescia ainda mais a cada letra formada pelo sangue que escorria sobre a pele bronzeada de sua vítima.
Sangue-Ruim
Era possível sentir o sangue quente escorrendo de seu braço, que seguia o ritmo lento da pulsação e ardência que vinha dos cortes. Cada vez que a ponta da lâmina penetrava sua pele, ela sentia as camadas se abrindo. Não havia como relutar sem forças, muito menos a alguém a que podia pedir ajuda, só lhe restava aceitar calada as investidas que lhe eram dadas; foi então que ela encontrou no que se concentrar.
A agitação no hall era agoniante, sempre que algo acontecia, era levado a sua casa. Ele não suportava mais todos aqueles gritos após interrogatórios, ou o cheiro de sangue que impregnava suas narinas sempre que era levado a uma missão - ele não havia escolhido aquela vida, aquilo não era algo que deveria lhe pertencer -. Era seu pensamento corriqueiro, mas sua indiferença crescia cada vez mais ao ver tantos corpos desconhecidos, tantas vidas serem ceifadas na sua frente. Mas aquele dia era diferente.
Ao ser chamado com urgência ao local onde a balburdia acontecia, seu corpo tremeu ao ver o trio que conhecia tão bem presente no último lugar que deveriam estar. Foi lhe dado a função simples de identificar o garoto cujo os olhos expressavam desespero; entre o turbilhão de coisas que se passavam em sua mente, a que gritava era negar sua verdadeira identidade, pois era o certo a se fazer. Não o queria morto, não de verdade.
Os olhos impetuoso de sua tia ao ver o objeto que deveria estar em seu cofre fez seu corpo entrar em estado de alerta, sabia que nada daquilo poderia acabar bem. Um simples movimento com a varinha, e a garota em sua frente estava no chão se contorcendo de dor enquanto seus amigos eram levados para um porão recluso. A maneira que negava as afirmações raivosas da bruxa o comoviam de certa maneira, mas ainda se perguntava o motivo de não admitir – talvez estivesse falando a verdade, mas ainda assim seria melhor admitir a culpa do que passar pelo que estava passando -. A dor que ela expressava era quase sentida pelo garoto que olhava a cena com desespero, sem poder mover um músculo em pró da vítima.
A cada resposta que contradizia o que a mulher queria ouvir, o ódio em seu olhar aumentava de maneira significativa, fazendo os gritos de ambas ecoarem cada vez mais alto no hall de sua casa. A medida que os conjuros não faziam efeito produtivo, uma adaga foi tirada em meio as camadas de seus vestido negro. Um sorriso lascivo se formou nos lábios da bruxa, enquanto seus olhos refletiam o sadismo de sua alma. Novamente os gritos ecoavam pelo local e ninguém se mexia. O sangue escuro escorria do braço da garota que não conseguia mais lutar contra a tortura, tinha chegado a seu limite, com pele e almas marcadas por toda sua existência. O insulto escrito sobre sua pele era algo que deixava um nó na garganta do garoto, pois era o mesmo insulto que usara durante anos a fio. Um erro. Sua imaturidade e o modo que foi criado lhe deram uma ignorância sem igual.
Quando seus gritos cessaram restando apenas os grunhidos, sua cabeça tombou para o lado onde ele estava, seus olhos não conseguiam desviar da visão da garota impotente a sua frente. Ele estava bem ali, a poucos metros de uma vítima de tortura - que sequer fizera algo ruim contra alguém que não houvesse merecido – e não podia fazer nada. Suas pernas vacilavam alguns momentos fazendo menção a ir na direção dela, mas não podia. Foi então que ele focou em apenas um ponto, fazendo sentir tudo aquilo mais intensamente.
Seus olhares se encontraram e algo os prendeu ali; não poderia desviar mesmo se quisessem. Suas mandíbulas estavam travadas assim como sus respirações, o ar passava com dificuldade em suas vias respiratórias. Então o tempo começou a passar em câmera lenta. Uma onda intensa de eletricidade passou pelo corpo dos dois. Seus punhos fecharam, suas respirações cessaram e seus batimentos pararam naquele segundo.
De um lado o fogo ardente e de outro o um iceberg imponente.
Gelo. Seu olhar era frio como gelo. Era tudo o que se passava na cabeça da garota e mais nada. Mirando aqueles olhos vazios, tudo o que encontrava era a frieza de sua alma, a maneira indiferente que tinha com todos durante todos aqueles anos, se intensificaram naquele momento, a ponto de sentir como se um vento polar congelante se colocasse contra ela. Podia visualizar de maneira clara as cavernas profundas esculpidas pelo gelo no ponto mais profundo do oceano, onde a luz solar não poderia ser vistas, onde as trevas reinavam nas temperaturas negativas, impossibilitando que houvesse vida no recinto.
Aos poucos seu corpo reagia da maneira que seu consciente se sentia, congelando. As extremidades se tornaram dormentes e arroxeadas, a letargia e pressão baixa a atingiram com força, a deixando ainda mais esvaída do que já estava. Seu corpo tremia pela baixa temperatura, seus olhos começaram a secar, fazendo seu corpo produzir lubrificante natural em forma de lágrimas pesadas que invadiam seus olhos.
Chamas. Seu pensamento rodava ao pensar em como merecia queimar nelas; queimar no inferno por assistir aquilo e não poder fazer nada. O reflexo que conseguia ver no olhar da garota era exatamente aquilo, o fogo que o consumiria por não ajudar aquela que não tinha motivos para estar ali, aquela que não merecia o sofrimento e humilhação que estava passando. Seu punho se fechou com ainda mais força e um calor veio de encontro a ele de súbito. Suas mãos e pernas queimavam conforme a intensidade no olhar dos dois ia aumentando, era possível sentir a pele queimar em alguns pontos onde sentia o calor mais forte, como se colocasse sua pele contra a brasa quente.
O suor começava a escorrer pelo seu rosto, caindo em gostas quentes no chão e em sua roupa, assim como as lagrimas escorriam nos olhos da garota com o semblante abatido. Sua boca estava seca, sentia seu corpo inchando e a pele craquelar nas extremidades; sua única reação foi afrouxar a gravata que o sufocava e abafava ainda mais seu corpo, como numa sauna. Seu peito subia e descia rapidamente na tentativa de achar a maneira certa de oxigenas seu cérebro, mas tudo o que conseguiu foi uma queda brusca de pressão; foi uma questão de segundo para seu corpo desabar.
Agora, se olhando no mesmo nível, tão perto um do outro, as reações apenas aumentavam. Os pensamentos de ambos sumiram, não havia o que pensar, apenas sentir; sentir a dor que cada um passava de maneira lenta e agoniante. Seus lábios se abriam para gemer expressando a dor dilacerante que passava por seus corpos. Ambos queimavam, um no frio, outro no calor, mas era certo que se sentiam no inferno. Suas almas sofriam juntas em total sintonia. Grunhiam e gritavam juntos, os picos de dor chegavam ao mesmo tempo, a busca pelo ar vinha no mesmo ritmo conforme os segundo iam se passando. Ali, vivenciando aquele momento, eram apenas os dois, pois o mundo ao seu redor havia sumido, talvez nunca tivesse existido para chegar naquele ponto.
A conexão entre eles chegava cada vez mais a seu ápice, onde os sentidos já não eram mais perceptíveis, mostrando que a inconsciência estava mais perto do que imaginavam. Em momento algum seus olhos se fecharam ou o foco foi mudado, continuaram se olhando profundamente durante todo o tempo em que sofreram. Tudo estava começando a ficar turvo, seus ouvidos estavam tampados, como se tivesse submergido no mar, afundando gradualmente, conforme a pressão sobre seus corpos ficava mais intensa.
Quando por fim seus olhos se fecharam, se viram num vazio, onde tudo ao seu redor era negro. As sensações de cada um, estar em meio ao gelo e estar em meio ao fogo, continuavam presentes, mas de uma maneira mais suave. Olhando ao redor, percebiam que não tinham como sair, estavam sozinhos no meio da imensidão vazia.
Uma grande pressão pulsou no local, os afastando um do outro e formando o inferno de cada um no que outrora era apenas um cenário repleto de trevas. Ele olhava ao redor e via as chamas consumindo tudo o que havia vida, não havia nada naquele lugar que não era queimado pelas grandes chamas famintas pelo o que lhe era combustível. Elas queriam queimar de maneira avida. O calor produzido pelo local o deixava agoniado, então ele correu o máximo que pode em busca de uma saída, até parar em uma linha que não conseguia travessar.
Onde ela estava.
O cenário branco azulado era mórbido. Tudo tão quieto, tão morto, tão gélido. Estava de pé sobre uma grossa cada de neve e havia geleiras enormes ao seu redor, uma imensidão tão vazia quanto a interior. Seu corpo tremia incessantemente com o frio absurdo que fazia ali; e não importava para onde ela olhava, não havia nada que a pudesse ajudar naquele lugar, então ela fez a única coisa que conseguia, gritar por ajuda. Sua voz mesmo falhando ecoava pela imensidão branca sem resposta – ou, pelo menos, não a que desejava -, as notas agudas acarretaram na quebra de algumas placas mais finas das paredes de gelo, desmoronando tudo a poucos metros de onde estava. Ela correu o máximo que pode tentando fugir daquela catástrofe, buscando por uma saída, até pisar em gelo. Pode escutar o rachar leve ao pisar com força – estava no meio de um lago congelado -. Ao olhar para frente viu o vermelho vivo das chamas que devastavam tudo que viam e no meio delas havia alguém.
Ele estava ali.
Houve outra conexão ao se olharem. O mundo de cada um estava sendo consumido pelo que os traziam dor, pelo que um buscava do outro. O calor e o frio que tanto desejava. Um não podia ver a destruição do próprio mundo, pois estavam de costas para ele, mas era certo que eles queriam um pouco do que o outro tinha; mesmo sabendo do final daquilo, eles precisavam sentir.
Como em um espelho, o reflexo de um era a imagem do outro. Suas mãos ergueram ao mesmo tempo e estenderam na direção uma a outra, e quando tocaram a barreira que os dividiam, tudo voltou a imensidão negra anterior. A neutralidade equilibro voltara por alguns minutos. No momento em que suas mão vacilaram, o toque e conexão foi rompido, consumindo tudo em gelo e fogo.
Tudo começou quando seus olhos se encontraram. Aquele olhar, aquele maldito olhar condenou suas vidas para um dois caminhos, escolhendo um, não havia como voltar atrás e revogar suas escolhas. Tudo dependia deles.
A chave da vida ou da morte estavam à mercê do caminho que tomariam.
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