Capítulo 16 - A morte inebria seus sentidos
Não me matem, sou apenas a mensageira, ademais comentem aqui as apostas de defunto de vocês.
Ps. Sim, provavelmente é quem estão pensando.
Sua mente se encontrava distante, uma costa que a branah demorou a alcançar.
Aquela era uma terra devastada, coberta por sangue e fogo, caminhar por ela era estalar em cinzas, quebradiças e ainda com o calor das brasas. Domínios densos e soturnos, onde ele procurava por algo. Sentia Elawan vagando em si mesmo, em busca de algo ou, alguém.
Me encontre, Sorel queria gritar, mas não podia sussurrar em outras mentes, apenas ouví-las. E tudo o que havia eram ecos distantes do que um dia poderiam ter sido gritos, o clamor quebradiço de árvores tendo o fogo sufocado por um frio denso.
Um frio de morte.
Venha Elawan, se agarre a mim.
Me encontre.
Mas ele ainda estava lá?
Tentou avançar pela densa floresta.
Faias, olmos e abetos, lariços e bordo, todos reduzidos a torcidos ossos negros. Na borda da mata vislumbrou a estátua de uma mulher ajoelhada, coberta de fuligem. Nas mãos em concha, o broto de uma flor resistia. Quando fez menção de alcançá-la, chamas se ergueram impedindo sua passagem e sua própria mente ardeu com uma dor súbita ao ser expulsa por Elawan.
Arfou, fazendo força para afastar a dor fantasma que a percorria.
Demorou para ajustar os olhos ao quarto. O tapete ao pé da cama e parte dela, estava empapado em sangue grosso e escuro.
Doce incenso impregnava o local. Mas o que serviria para aliviar o quarto daquele cheiro morto, unido a ele tornava-se intragável. Sorel sentiu a torta de mirtilo voltar a garganta. Dessa vez, a janela que dava para o rio estava fechada. O lorde feérico tinha suturas cobertas por argila e menta, o peito nu e um respirar custoso, dois ossos repousavam sobre ele, amarelados a ponto de parecerem metal ao toque do dia.
Não o último, rezou, para ninguém em especial.
O lanceiro estava largando no chão ao lado da cama, uma expressão perdida e sujo de sangue. Podia sentir a dor que o corroía até os ossos, sem que estendesse a mão para o frasco de papoula meio vazio na cabeceira. Prestes a cutucar a ferida do lanceiro por ter envenenado Elawan, Lohkar a fitou. As pupilas verticais estavam dilatadas.
— Não vai ser como há setenta anos. Eu prometo. — Sorel assentiu com desdém se derramando dos olhos. Cinquenta anos, seu tonto, embora parecesse-se uma vida, uma eternidade. — Falhei com você, Lirio d'ouro... Então, o que ainda faz aqui? — murmurou ele se pondo ao seu lado.
Seus olhos castanhos acompanharam o movimento dele com reprimenda e a branah recuou quando o feérico ruivo tentou afastar o tule afim de afagar os cabelos que lhe restavam. Lohkar ficou vermelho beterraba ante sua recusa. Era um macho alto, de maxila forte e maçãs proeminentes que ressaltavam os olhos verdes quase tanto quanto o cabelo crepuscular. Algumas feéricas o consideravam bonito, com cicatrizes, de batalha e algumas de pôr noites de bebida, na pele trigal. Mas não ela.
Desviou o rosto, a pele rosada sob o véu. Logo os pombos se tornaram mais interessantes, assim como as barcas no rio, levando flores para os túmulos naquela tarde.
O macho lambeu os lábios procurando as palavras.
— Me perdoe Lírio d'ouro, minha querida flor. — As sobrancelhas da feérica se torceram, não gostava do apelo daquelas palavras ébrias. Odiava pedidos como aquele. — Perdão, Elawan tinha razão. Não foi possível viver fiel aos meus votos, tive de quebrar minhas promessas. Eu queria...
— Você queria, mas só ele o fez. — interrompeu. Nem se deu ao trabalho de buscar em sua mente. Sabia aonde levaria aquela conversa. Só o rapaz dos canis subiu os degraus naquela tarde.
As sobrancelhas da feérica se torceram.
— Claro... — Lohkar piscou com súbita compreensão. Passou a língua nos lábios antes de acrescentar: — , minha senhora.
Um som úmido se desprendeu da garganta do nobre e mais uma vez o corpo do lorde se curvou a cuspir sangue. Sorel lhe segurou a cabeça, afastando os cabelos da face manchada. O feérico já estava azul de tão pálido.
Lohkar vacilava agora.
— Na guerra contra Vinhehiem, levei bronca do Cervo por não usar veneno nas armas — falou Lohkar sem que a feérica tivesse certeza de onde queria chegar. — Tinha ferido o rei deles que fugiu quando tomamos a capital. E eu disse a Cardiff: "Ele está quase morto". E o príncipe retrucou: "Isso ainda é meio vivo. Noventa e nove, não é cem". Estava certo, do contrário a profecia da Grã-duquesa teria feito dele o maior rei deste mundo.
Sorel virou o rosto, torcendo o nariz para o cheiro de sangue coagulado. Apertou a mão do feérico, demasiada fria.
— Cardifd está morto, a Ordem das Bestas se defez e a casa Dulac já não existe! — Sorel chiou como pedra — É uma Skavir que ocupa o trono. O que importa?
— Se o destino fosse escrito em pedra, isso jamais teria acontecido — murmurou o lanceiro, como se cometesse blasfêmia. Contudo, a pontada de dor que sentiu foi surpresa. — Sorel!
O peito ignescente de Elawan inflou, tomando o ar com dificuldade.
Sorel se voltou para o lorde e mais uma vez tentou alcançá-lo em seus domínios temendo que desvanecessem para sempre.
Dessa vez foi expulsa com ainda mais violência.
Dedos fortes e cobertos de cicatrizes de queimadura apertaram os seus. Não etéreos, mas ossos, carne e vida. Frios como o sol da primavera.
Lohkar soltou um exagerado suspiro.
— Seu sangue é tão ruim que estava lhe matando, bastardo — falou o lanceiro.
Sorel deixou o alívio transparecer na visão do sombrio azul. Tempestades habitavam em seus olhos, confusos e pesados a princípio, mas logo se apropriou de quem era.
Indicou para que a aia limpasse aquela bagunça e a feérica saiu, contrariada, a pedido Lohkar.
Pombos se colocavam vigilantes nos telhados quando o meio-dia chegou. Sorel já batia os calcanhares inquietos, com o mindinho enfiado entre os dentes. Odiava esperar. Mas ouvia vozes semi-alteradas além da parede.
O bater pesaroso dos pombos fez mais barulho que a aproximação de Lohkar. Marbla voltou carregando balde e tiras novas de linho. Ela se deteve com uma reverência à passagem do capitão. Uma mocinha loira e rosada, com grandes olhos azuis demasiado juntos, que não conseguia evitar parecer boba perto do ruivo. Sorel emitiu um estalo com língua em reprovação antes de voltar ao quarto. O véu pálido dançou em sua face, um arrepio soturno lhe percorreu a espinha, trazido pela rajada fria acompanhado de um odor pustulento.
Após uma olhadela hesitante para eles, Lohkar saiu em passos duros.
Mudando de face como as chamas, Elawan trocou a ira por uma face serena. Sorel trancou a porta.
— Vai viver? — questionou régia.
Recebeu um maneio cansado em resposta.
O haviam banhado, vestido com uma camisa de linho negra e limpado o sangue que impregnava o quarto e os lençóis. Ainda assim, parecia ter dormido pouco após uma noite muito, muito, longa. A barba de uma semana contornava sua face. O Senhor de Liffey apertou os lábios lembrando o que havia se passado e Sorel sentiu a raiva crescer em ambos. Ela não conseguiu esquecer. Nem por um instante.
Cortou a distância entre eles. O feérico ergueu os ombros das almofadas. Mas não teve tempo de reagir:
A mão dela estalou na cara do Mestre da Guerra. um estampido agudo que logo mostrou seus efeitos. Vermelho. Elawan mordeu os lábios.
— Como pode deixar isso acontecer — brandiu a feérica.
O macho inflou, respirando com dificuldade.
— Não pensei que fossem capazes...
Deixou que Kervan criasse um burburinho com suas afirmações, ele garantiu que o alarido chegasse à corte por meio do Manifesto. Lidney contou que Elawan traria seus apoiadores para o júri, então... Metade do complexo ruiu. 202 mortos. Dez dos nossos aliados. Tenno pode se juntar a eles sem demora. Inari grasnindo ordens por toda Liffey e essa é sua resposta?!
A mão da feérica disparou. Dessa vez, um aperto férreo a deteve.
Sei que não vivo sem você me censurando com seu humor azedo, mas faça de novo", rosnou em pensamento. Sorel teria levado mais a sério se fosse Lohkar dizendo isso. Elawan não fazia ameaças.
— Não me trate como fazia a seus cães, Sorel — avisou ele.
— Depois do que fizeram no Maybh, mataria a todos.
As narinas dele se dilataram deliberadamente.
— Mandou Inari atrás deles — acusou. — Perdeu o juízo junto com os cabelos!
Os dedos arderam para bater nele novamente, mas não foi preciso. O lorde jogou as pernas para fora da cama, mas quando tocou o tapete úmido caiu de volta as cobertas. Sorel deixou a raiva debochada carregar suas palavras:
— Use sua raiva para matar Kervan e Lidney nos sonhos, é o melhor que vai conseguir agora. E quando acordar, quero ver você. Parece que somos animais assustados novamente.
Ela já estava a porta quando Elawan atirou a garrafa de vinho dourado contra a tapeçaria da jusante no ocaso. A mancha se fez um rasgo bordo contra o azul. Isso, sangre os céus se preciso for.
A feérica esboçou o mais discreto dos sorrisos quando fechou a porta de ébano.
Nem tinha trocado o vestido quando foi abordada por dois guardas.
A fêmea dos rios retesou o corpo e Justino se deixou ficar ao seu lado. Meio hesitante.
As sobrancelhas de Sorel se torceram. Qualquer diversão na face da feérica desvaneceu como fumaça, voltando à natural indiferença pétrea.
— S-senhora Intendente. – Justino não tinha gagueira, e Sorel, pouca paciência. — Devo informar que dois barris de Inferno gris foram roubados pouco antes da alvorada — concluiu quase engolindo as palavras. — E lady Inari matou seis cães do Senhor... mas foi atacada na caçada.
Sorel praguejou em pensamento.
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