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Sete: Tempo


Quando Nicholas foi embora, Maya observou o pai terminar o jantar e lavar os pratos, enquanto parecia estar com um olhar distante. Ela sabia o que era. Trazer o violão do fundo do sótão havia trazido lembranças que Samuel tentava esquecer.

Lembranças em que Maya também se prendia, mas tentava esquecer. Às vezes, a garota se pegava pensando se sua mãe também não se lembrava.

Aparentemente não.

Deixando o pai sozinho em seus próprios pensamentos, ela subiu para o quarto envolta nos seus, colocando o violão no canto da parede. Maya pegou o caderno e os livros e se sentou em sua mesinha, que ficava em frente à janela do quarto. Ela sempre gostava de estudar olhando para o céu, e sentindo ar fresco.

Depois de alguns minutos, a garota então se deu conta de que ainda não havia sequer feito uma oração verdadeira desde de que havia começado a dar aulas Nicholas, e a frequentar o curso de física avançada.

Ela se deitava cansada todas as noites, e se levantava atrasada todas as manhãs, tropeçando em seus próprios sapatos e repetindo as mesmas palavras rápidas para orações rápidas.

Seu coração estava incomodado, em uma sensação que não conseguia se desfazer dentro de si. Ela olhou pela janela, e observou as estrelas do lado de fora. A lua estava quase completamente coberta por algumas nuvens, e o ar estava úmido, com cheiro de grama recém cortada. Jogando os cadernos de lado, a garota percebeu o que precisava fazer.

Maya se ajoelhou ao lado da cama, e começou a chorar, ciente agora, da enorme falta que seu coração sentia de falar verdadeiramente com Deus. Ela percebeu que estava tão preocupada o tempo inteiro com todas as coisas passageiras da vida, que havia se esquecido de tirar tempo para quem havia dado o próprio tempo a ela.

Como ela havia se esquecido da dimensão do amor de Deus? Como ela estava servindo sobras a um Deus Santo? Como ela pôde ter colocado como prioridade qualquer outra coisa que não fosse ele?

Ela se lembrou da sua mãe. Pensou aonde ela estaria, e se estava bem. Diversos foram os anos em que Maya se sentiu, literalmente, abandonada pela pessoa que mais devia ter a amado, até ela entender que existia um amor ainda maior e mais sólido do que um sentimento humano, e que esse amor jamais a abandonaria.

As palavras da garota fluíram em uma confissão que pertencia somente a ela, e que só poderia ser entendida por ele. A certeza da presença do Espírito Santo ali com ela era tão real e vívida que ela conseguia sentir seu coração se preencher novamente, fortalecendo uma fé que ela, sem perceber, estava deixando esmorecer.

Ela sabia que Deus a aperfeiçoava em suas fraquezas, e ela se deu conta de que, na maioria das vezes, ela era fraca. Muito fraca. Cristo era a sua força, e a única coisa pelo qual ela podia se gloriar na vida, era por conhecê-lo.

Maya pegou a sua bíblia pequena, e passou um bom tempo ali, se dando conta do grande tesouro que tinha. "Deus colocou a eternidade no coração do homem" ela leu, em Eclesiastes 3:11.

O versículo estava grifado com marca texto e uma seta ao lado, que puxava para uma frase que ela havia anotado e nunca esquecido. "Tudo aquilo que não é eterno é eternamente inútil. – C.S Lewis."

Com um coração não mais aflito, ela sorriu, pois sabia que viveria para sempre segundo a promessa daquele que a havia criado, e não desperdiçaria mais seu tempo com coisas passageiras.

De alguma forma, antes de deitar a cabeça ao travesseiro, ela se lembrou de Nicholas. Decidiu orar por ele, sem ter certeza de exatamente o porquê. Logo depois, como em Salmos 3:5, em paz se deitou e logo pegou no sono, porque Deus a sustentava.

Como se também estivesse se sentindo incomodado em relação ao tempo, Nicholas encarou o Apple Watch no pulso, e tentou pela milésima vez naquela noite dormir. Ele não conseguiu.

Já havia cerca de duas horas que Dylan havia enviado uma mensagem dizendo que iria pagar o tal traficante e voltava para casa. Como se fosse uma espécie de sexto sentido, ele sentiu as mãos tremerem como um aviso que algo não estava certo. Estava tarde. Estava tarde, e o seu irmão mais velho não havia voltado.

Não era como das outras vezes. Dylan era capaz de desaparecer não por algumas horas mas dias, e em todas elas sempre avisava Nick. Nem que fosse por uma mensagem escrita totalmente errada pelo efeito da cocaína, ou por uma ligação falhada. Era a forma dele avisar que estava bem.

Sem aguentar mais esperar, Nicholas pegou o celular e discou o número do irmão, ouvindo apenas a secretária eletrônica. Ele tentou de novo, dessa vez ligando para Maycon, o melhor amigo de Dylan que andava no mesmo poço sem fundo que ele. Se seu irmão estivesse em apuros, Maycon saberia. No quarto toque, ele atendeu.

— Alôu!

— Maycon, você está com o Dylan? — Nicholas perguntou, com a voz quase desesperada.

— Quem? Ei gordo, cala a boca! — alguém gritou do outro lado da linha. Maycon sorriu, completamente chapado. — Quem é?

— É o Nicholas. Responde, droga! — ele soca a mesa, se sentindo um completo idiota por estar agindo como a babá do próprio irmão. — Dylan está com você?

— Nick! Hey cara, quanto tempo irmão! Espera aí que seu parceiro vai resolver. — um barulho surge do outro lado da linha junto com uma risada. Maycon havia deixado o celular cair. — Voltei! — ele grita gargalhando. — Ei galera, alguém viu o Dylan? — alguns segundos de gritos e palavrões se estenderam.

— Maycon?

— Não cara, foi mal, ninguém viu teu brother! Ele deve tá com o Escobar, mano. — o gordo solta uma respiração pesada, e um barulho de briga começa a surgir. — Nick, droga!

— O que foi? O que está acontecendo?

— Cara... corre aqui. — a voz de Maycon sai ofegante, e mais palavrões e gritos ocupam a audição de Nicholas. O celular apita uma nova mensagem, recebendo a localização. O garoto pegou a chave do carro e saiu correndo do quarto, ouvindo a frase que ele não tinha mais certeza se queria ouvir. 

— Encontramos o Dylan.


Medo. Aflição. Raiva. Esses eram os três sentimentos que sufocavam Nicholas enquanto ele dirigia a 120 km/h em direção ao bairro mais isolado e perigoso de Atlanta.

Seu medo era de não chegar a tempo ao o que quer que estivesse acontecendo, sua aflição era de não conseguir encontrar seu irmão vivo, e a sua raiva era de que tudo isso era culpa de Dylan. Era um vício, ele sabia, mas ainda sim todas as escolhas dele o levaram a essa situação.

Nick xingou o irmão mentalmente de todas as palavras possíveis. A bala de menta que ele havia colocado na boca antes de sair como único último alimento do dia após o almoço de hambúrguer já estava sendo substituída por um gosto amargo. Até a saliva parecia descer pesada, conforme a movimentação da cidade ia desaparecendo e o nó ia aumentando em sua garganta.

O localizador do GPS informava que faltavam apenas duas ruas. Nicholas olhou para a frente, e abaixou o farol entrando em um mato escuro. Vários casebres surgiram em meio a árvores secas e o cheiro de cigarro, mijo e sujeira invadiram o ambiente. Ele abaixou a janela do carro.

Vire à direita. — ressoa a voz da mulher do GPS. Um grupo de homens apareceu. — Você chegou ao seu destino.

As mãos de Nick suaram, e ele fechou os olhos por um último segundo apertando o volante. Naquele momento, ele desejou fielmente ser apenas um garoto de 18 anos que não precisava ir atrás de um bairro de traficantes buscar o próprio irmão mais velho.

Ele não era.

Alguém gritou, e ele desceu do carro.

— Dylan! — ele gritou, atraindo a atenção do grupo. A roda se abre, e ele vê a sombra do irmão do chão gemendo de dor enquanto era chutado. — Parem!

— Quem é você, moleque? — um homem pardo e alto com uma grande cicatriz no rosto se aproxima com uma arma na mão, apontando na direção do rosto dele.

— É o irmão do Dylan. Deixa ele ir, Escobar. Ele já pagou você. — Nicholas reconhece a voz trêmula de Maycon, que estava ajoelhado na frente de outro homem coberto de tatuagens.

— Cala a droga da boca! — Escobar responde, voltando a apontar a arma para o garoto. Depois de olhar Campbell de cima a baixo, ele sorriu. — Então esse é o seu irmão, Dylan. Pelas roupas e pelo belo carro lá atrás, parece que você mentiu para mim quando disse que estava sem grana. Sabe, eu não gosto de mentiras.

— Vai embora, Nicholas! Desaparece daqui. — Dylan cuspiu sangue, sentindo seu corpo inteiro doer de uma forma imensurável. Outro homem da gangue o chutou novamente, fazendo-o gritar mais alto dessa vez.

— Eu só vou embora com o Dylan. É dinheiro que vocês querem? — o garoto retirou a carteira do bolso, e tirou um bolo de cinco mil dólares. — Aqui está. Tenho certeza que paga a dívida dele e sobra.

— Olha, seu mano é corajoso! — Escobar solta outra risada ácida, passando o braço ao redor do ombro de Nicholas, que tentava não transparecer o quanto tremia por dentro. — A questão aqui não é dinheiro, meu caro... como é seu nome mesmo, amigo? — ele leva a arma ao próprio queixo, pensando. — Ah sim, Nicholas. — ele volta a apontar novamente. — Eu trabalho com confiança. Costumo dizer que nada vale mais do que a palavra de um homem.

— Acredito em você. Cuidarei para que Dylan não traia mais a sua confiança.

— Ora ora, como pode me prometer uma coisa dessa? — ele sorri, retirando o braço do ombro do garoto. — Não pense que eu perco o tempo da minha vida me preocupando com o nada do seu irmão, amigo. — ele aponta a arma para Dylan. — Ele que sempre vem atrás de mim. Faço apenas meu trabalho.

— Ele não virá. — Nicholas dá um passo a frente e para, ao ouvir o clique da arma. O garoto engole uma saliva, e joga a carteira no chão. — Aceite o dinheiro.

— Oscar, confere quanto tem aí. — Escobar dá o comando, e um garoto aparentemente mais novo que Nick se abaixa, pegando a carteira. Ele era tão magro, que seus ossos ficavam visíveis através da pele sob a camisa folgada.

— Tem muito dinheiro aqui, chefe. — o garoto responde, cheirando as notas.

— O carro. — Escobar diz por fim, encarando o garoto com os olhos vermelhos. — Quero o carro.

— Fique com ele. — Nicholas respondeu sem hesitar, tentando não olhar para a poça de sangue em que o irmão se encontrava.

— Isso foi fácil. — Escobar sorri e se agacha ao lado de Dylan, puxando o corpo dele pela camisa. — Um irmão desse não se encontra todo dia, agradeça a ele por estar vivo. Aparentemente, você vale alguma coisa pra alguém. — ele respira fundo e se levanta, apontando a arma e puxando o gatinho. — Pena que não vale nada para mim.

O tiro ressoou. Nicholas gritou, e Dylan fechou os olhos esperando a dor da bala atingir sua cabeça, mas ela não chegou. Um terceiro grito ressurgiu, e Maycon caiu ao chão com o peito sangrando. A cena de horror de se sucedeu pareceu correr em câmera lenta.

— Não precisa agradecer. — Escobar soprou a fumaça da arma, e jogou para o capanga do lado, levantando Dylan que mal conseguiu se erguer em pé enquanto olhava em choque para o corpo morto do melhor amigo. Uma lágrima desceu. — A vida de Maycon pela sua. Pega seu irmão e dê o fora daqui, ou ele será o próximo. Se aparecer procurando minhas mercadorias mais uma vez, saiba que não vai sobrar um membro seu para contar história.

O corpo de Dylan foi empurrado para a frente, e Nicholas o segurou, com o corpo petrificado. Escobar e os seus homens foram embora com o carro, como se o corpo de Maycon ali não valesse nada. Nick passou o braço do irmão quase inconsciente pelo ombro e o carregou para fora ali.

Sem saber como ainda possuía forças para continuar, ele deu um passo depois do outro, sem olhar para trás.

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