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Quatro: Notas de uma canção


Nicholas saiu frustrado de casa após mais um dia exaustivo de discussões com seu pai, que mais uma vez, havia começado a beber cedo demais, e esquecera a hora de parar até o anoitecer.

Como se não fosse o bastante, ele ainda tinha que escutar da mãe que se suas notas não aumentassem, o futuro dele provavelmente seria igual ao do irmão. Certamente entrar no mundo das drogas tinha tudo a ver com uma nota F.

Ele só queria desaparecer daquela casa. Sentir o que era possuir uma família de verdade, com toda a coisa clichê do pai que vai assistir aos campeonatos de futebol americano no colégio e a mãe o perturbar com apelidos infantis diante aos amigos apenas para mostrar que se importa.

As pessoas não sabiam o que tinham e desperdiçavam, ele pensava enquanto dirigia até a casa de Maya, que por acaso, era bem mais simples do que ele esperava.

Nicholas estacionou na rua repleta por folhas de árvores que não pareciam ter sido limpas a um certo tempo, e enfiou as mãos na jaqueta. A garota estaria o esperando? Ele não sabia, mas não se atreveu a ir atrás dos olhares raivosos que a menina o lançara no colégio.

Sem sombra de dúvidas a origem da raiva deve ter surgido pelo incidente da areia que os pneus de carro jogaram sobre ela. O garoto riu, pensando em ter sentido um pouco de pena depois. Afastando os próprios pensamentos, ele retirou uma das mãos do bolso do casaco e bateu na grossa porta de madeira.

— Quem é? — a voz de Maya sal abafada do outro lado da porta.

— O papai Noel. — ele respondeu revirando os olhos e a porta se abriu, revelando uma adolescente de cabelo bagunçado, calças largas e uma blusa velha escrita "20 falar de Jesus".

— Considerando que não é Natal, pode ir embora daqui.

— Considerando que você abriu a porta, teria a educação de me convidar para entrar?

— Você só pode estar de brincadeira, não é? — ela riu, cruzando os braços. — Nicholas, são 21:00. Se não percebeu, não é horário para aparecer na porta da minha casa.

— Você mesma não havia dito que mais cedo seu pai não estaria em casa? Então, agora imagino que ele esteja e meu horário disponível é agora. Eu disse que passaria aqui na sexta à noite.

— Isso não...

— Maya, quem está na porta? — uma voz grossa masculina faz o garoto dar um passo para trás, e mais três, quando um homem gigante e careca entra em seu campo de visão. — Quem é você, garoto? E o que veio fazer aqui?

— Campbell. Nicholas Campbell, senhor... — ele ergue a mão em comprimento e quase sente seus dedos esmagados pelo aperto. Certamente, ele já havia escutado sobre o pai de Maya, que era inclusive, o mecânico da maioria da cidade. Como era mesmo o nome dele? Daniel....

— Samuel Olsen. Ainda não respondeu o que está procurando em minha varanda.

— Vim estudar com sua filha. — ele responde coçando atrás da nuca. Já havia se arrependido de ir até lá. — Ela é a responsável por me dar monitoria nesse semestre.

— Bom, se quer que Maya o ajude, terá que ser mais cedo. Isso não é horário de bater na porta da casa dos outros. Passe bem. — Sam fecha a porta na cara de Nicholas, e faz o garoto sair a passos largos da varanda. Que estupidez! Ele estava mesmo tentando estudar?

— Campbell! — a voz de Maya o alcança quando ele havia acabado de abrir com raiva a porta do carro. A menina corre até ele abraçando o próprio corpo, e o encara com seus grandes olhos castanhos. — Olha... me desculpa por meu pai ter batido a porta na sua cara, amanhã pela manhã é um bom horário. Irei separar algumas provas anteriores e podemos começar alguma coisa.

— Eu não estudo nos sábados. — ele sorri de lado em ironia.

— Pelo que sei, você não estuda em dia nenhum.

— Acho bom eu permanecer com meus hábitos. — ele entra no carro e fecha a porta, colocando a chave na ignição. Maya se abaixa e o olha pela janela.

— Mesmo que você não mereça... — ela respira fundo fechando os olhos, e os abre soltando um sorriso fraco. — ... eu estarei esperando você. Boa noite.

Nicholas guardou as palavras da garota, e realmente torceu para conseguir uma boa noite, mas isso não se tornou realidade. Os gritos do pai no andar debaixo e o barulho de choro de sua mãe o fez socar a mesa de madeira.

Ele se sentia um covarde, um completo e grandioso covarde que não tinha coragem de enfrentar o próprio pai. O barulho da porta do quarto se abrindo o assustou, e ele viu o irmão entrar e começar a abrir as gavetas, respirando de forma rápida.

— Preciso de uma força, irmão. — Dylan diz, andando de um lado para o outro. — Sabe como é, me ajuda só dessa vez.

— Cai fora. Agora. — Nicholas se levanta e encara o irmão, que estava em um estado deplorável.

Ele fedia, como se não houvesse tomado banho a pelo menos três dias. Seu cabelo havia sido raspado, e seu rosto ainda carregava a cicatriz de um corte de rua. A roupa suja e rasgada mostrava um pedaço da tatuagem no abdômen que a tanto tempo Dylan tentava esconder dos pais.

Naquele momento, o irmão mais velho não se importava com aquilo mais. Ele só precisava do dinheiro. Naquele exato momento.

— Você precisa me ajudar. — ele se aproxima e segura o rosto do irmão, em um ato de completo desespero e abstinência. — Os caras... eu estou devendo os caras...

— Não. — Nicholas tenta se manter firme, não sabendo se sentia raiva ou pena do irmão. Os dois sempre foram unidos, desde a infância, em praticamente tudo. Nick já havia perdido as contas de quantas surras do pai Dylan já havia levado em seu lugar quando ele aprontava alguma coisa, e por anos, ele tentou acobertar o irmão e ajuda-lo, até perceber que não havia como ajudar mais. Não se essa ajuda estivesse o matando aos poucos. — Chega de dinheiro, Dylan. A fonte secou.

— Mentira. Você está mentindo. Porquê você mentiria pra mim? — ele o encara incrédulo, sentindo sua testa suar.

Dylan não conseguia pensar. Seu corpo inteiro suava, e a sensação de formigamento na mão não ia embora. Porque seu irmão não estava o ajudando? Ele precisava sair. Aquela casa estava quente demais. Ele precisava... se sentir bem. Eufórico, animado. O mundo parecia estar se fechando ao seu redor, e a sua garganta estava seca.

Nicholas iria o ajudar. Ele sempre ajudava.

— Não estou mentindo. — Nick ergue a cabeça e tranca o maxilar, dobrando os braços. — Acabou.

A reação do irmão não foi como ele esperava. Dylan se virou, e quando Nicholas pensou que ele ia sair, o mesmo pegou o violão do irmão e bateu contra a parede, várias e várias vezes, até não sobrar quase nada além do braço do instrumento.

Um homem tropeçando nos próprios pés entrou dentro do quarto segundos depois, e gritou quase engasgando:

— Que barulho é esse aqui?

— Oi pai. — Dylan sorri, sentindo um aperto no peito ao olhar para o homem que nunca havia percebido o próprio filho.

Por um segundo, ele quis rumar o pedaço que restava do violão no bêbado que estava a sua frente, mas desistiu, se lembrando de que não valeria a pena. Ele só precisava de dinheiro para ir embora daquela casa e encontrar seus verdadeiros amigos no beco.

Um dia, ele sonhara que iria embora junto com Nick, e os dois montariam uma banda juntos. Hoje, ele percebera que aquele sonho não possuía mais sentido, e quis profundamente que aquele beco sem saída em que ele havia entrado não fosse o mesmo destino do seu irmão. O violão quebrado o faria sentir raiva dele e se afastar, e era isso que ele precisava. Que Nicholas saísse daquele lugar.

— Dylan? Dylan meu filho você está bem? — sua mãe o encarou preocupada.

— Estou. Só preciso de uma grana.

— Claro. — ela colocou as mãos na bolsa, e rapidamente deu uns bons dólares na mão do filho. Nicholas bufou, sentindo o ódio o atingir ao ver aquela cena.

Ele não entendia o motivo da mãe continuar o dando dinheiro para ele se afundar ainda mais, mas não sabia que, na cabeça da senhora, enquanto o filho tivesse dinheiro na mão, nenhum traficante o mataria, e ele continuaria voltando para casa.

— Eu vou embora daqui. — Nicholas sai, esbarrando no ombro do pai parado a porta, que quase caiu no impacto e soltou vários palavrões.

Ele se lembrou do violão preferido quebrado, que havia sido presente do próprio Dylan no seu aniversário de 7 anos, e fechou a porta da frente com força atrás de si. Ligou a ignição do carro, e dirigiu colocando um som alto de Pink Floyd.

Um papel em seu bolso o incomodou e ele pegou, observando as notas de uma canção que ele estava tentando começar. Ele o amassou e jogou para fora da janela, concluindo que não havia mais sentido compor se não havia como tocar.

Sem lugar para onde ir, ele fez o que fazia a vários meses sem ninguém saber. Estacionou debaixo de uma árvore perto do colégio, e dormiu no carro.

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