Quatorze: Frequência de um sorriso
Na metafísica, Newton já dizia em um dos conceitos de impenetrabilidade que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Isso foi o que Maya pensou quando se viu dentro de um carro com cheiro de bancos novos ao lado de Campbell. Certamente, aquele era um dia atípico.
— Qual o último destino? — Nicholas perguntou, assim que virou a esquina da casa da amiga da garota. Maya respirou fundo.
— Hospital Heights.
— O que você vai fazer lá? — ele pergunta curioso. Finalmente ele iria descobrir porque ela estava no hospital no dia do acidente do irmão. Será que ela possuía algum parente doente?
— Você não precisa saber. Só vai me levar, não é?
— É. — ele respondeu a contragosto. Ah, mas ele iria entrar! — A propósito Olsen, porque você não pega a picape do seu pai? Você já tem 17 anos, sabia que a fase de andar a pé já passou?
— Eu... — Maya respirou fundo envergonhada, olhando para a janela. — Eu não sei dirigir.
— Como assim não sabe? — ele a olhou em estado de choque, parando em uma faixa de pedestres. — Seu pai não te ensinou?
— O problema não é meu pai, Campbell. Sou eu.
— Você tem medo de dirigir?
— Não é isso. — Maya colocou o cabelo para trás, tentando descobrir como se explicar. — Eu só... não sou boa. Bati o carro do meu pai três vezes.
— Você jura que está me dizendo que é capaz de responder as contas mais difíceis já criadas na terra, mas não sabe dirigir? Isso é inadmissível, Olsen!
— O que você está fazendo? — ela se assusta ao ver ele estacionar. Nick desliga o carro, e abre a porta do carro. — Nicholas, o que raios você está fazendo?
— Desce. — ele abriu a porta do carro dela. — Vou te ensinar a dirigir.
— Você está maluco? — ela o olhou desesperada. — Não!
— Vamos Olsen, passe para o lado do motorista. É um carro automático, você não pode ser tão ruim assim.
— Eu sou, acredite em mim! — ela o encara sentindo as mãos suarem.
— Crie coragem. Só faltam três quarteirões daqui até o hospital, e a estrada está tranquila.
— Eu posso matar alguém atropelado! Você só pode estar maluco.
— Eu não vou deixar. — ele a olhou, sorrindo de lado. — Agora eu que te peço para acreditar em mim.
Maya olhou para Nicholas e para a rua, vendo que realmente tinha poucos veículos passando. Ela ponderou enfrentar o próprio medo ou ir embora dali a pé, já que estava mesmo perto do hospital.
No entanto, se ela fizesse isso, ela estaria agindo como uma covarde. Campbell estava certo. Como ela era capaz de fazer tantas coisas menos dirigir?
— Tudo bem. — ela passou para o lado do motorista, e respirou fundo colocando o cinto.
— Certo, seu pai já deve ter te ensinado o básico, não é?
— Sim. — ela apertou firme o volante, já começando a se desesperar. Ela odiava não ter a noção de espaço necessário do carro ao tentar medi-lo contra a rua.
— Pronto, então ligue a ignição. — ele a olhou. — Como eu disse, ele é automático. Você só precisa colocar no câmbio no D aqui e acelerar. Você sabe qual é o freio, aqui estão as letras. Esse P é para estacionar, o R para ré, e o N neutro. As marchas se passam sozinhas. Pronta?
— Não. — ela sorri de nervoso. — Mas vamos lá.
Maya seguiu as instruções de Nicholas, e começou a dirigir. Ela sorriu quando conseguiu passar da primeira rua. Mesmo que estivesse abaixo da velocidade mínima, aos poucos, ela conseguiu perceber que na verdade, dirigir não era tão difícil assim.
Tudo estava perfeito, até um caminhão passar. Maya se desesperou virando o volante com medo de bater e entrou com tudo com o carro no meio fio, batendo em uma árvore.
— É... ok. Precisamos treinar mais. — Nicholas tenta voltar a respirar, segurando no volante junto com ela. — Você está bem?
— Estou. Ai meu Deus Nicholas, eu falei que não queria dirigir! — Maya abre a porta do carro e desce desesperada. — Seu carro novo! Eu amassei seu carro novo! — ela enfia o rosto entre as mãos segurando a vontade de chorar. Nick sorri e a abraça, dando um susto na garota.
— Eu não estou nem aí para o carro, Olsen. — ele tira uma mecha do cabelo dela e a olha, percebendo que cruzou o limite de distância dos dois. — Vamos, vou te levar até o hospital. Pega a sua mochila.
— Nicholas, e o carro? — ela olhou desesperada.
— É, ele já está meio que... estacionado.
— Você vai ganhar uma multa!
— Eu só vou te levar até a porta e voltar, esqueceu? — ele sorriu. — Só irá levar dois minutos.
Não levou apenas dois minutos. Nicholas fingiu que se despediu de Maya com um aceno ao vê-la passar pela porta do hospital, e esperou o momento estratégico até segui-la. Quando ela passou pela recepcionista loira e recebeu um crachá, ele andou até a recepção.
— Oi, bom dia. — ele deu o seu melhor sorriso. A moça loira colocou a franja por trás da orelha, e o encarou com os olhos escuros.
— Bom dia, em que posso ajudar?
— Eu vim com a garota que acabou de entrar, somos colegas e ela esqueceu uma coisa super importante comigo. Preciso entrega-la. Pode me informar em que ala do hospital ela está?
— Sinto muito, terá que esperar. A ala que Maya entra é só para os voluntários.
— Senhorita... — ele olhou o nome dela no crachá, e se apoiou mais no balcão. — ... Samantha. Por favor, eu não estaria implorando se não fosse importante.
Samantha respirou fundo. Que desculpa ruim era aquela? Depois de dois anos trabalhando no hospital, ela já havia escutado de tudo. Dizer que alguém esqueceu um objeto era o argumento mais amador.
Ela olhou para o garoto de cima a baixo, e confiou em seus instintos de que ele parecia um bom rapaz. Se era mesmo colega de Maya, ainda devia estar no Ensino Médio. Ele não seria capaz de colocar fogo no hospital, não é?
— Olha, o que eu posso fazer por você é fingir que não passou por aqui. — ela olhou para o computador, e clicou umas duas vezes para liberar a catraca. — Ela está na Ala 6. Se você for pego, eu direi que nunca te vi.
— Quem é você mesmo? — ele arqueou as sobrancelhas e saiu, vendo a loira sorrindo.
Nicholas andou pelos corredores o mais rápido que podia, tentando encontrar a tal Ala.
Se lembrando que Maya havia passado perto do quarto que Dylan ficou pela última vez, ele seguiu o mesmo caminho e logo viu a placa de indicação. A voz de Maya ressoou por trás da porta, e ele sorriu ao vê-la vestida de princesa dentro do quarto.
— ... e então, eu corri pelos túneis escondidos do castelo fugindo do bruxo do mal.
— Tia May, e quem foi te salvar? — era a voz de uma garotinha. Nicholas toma coragem e abre a porta, vendo os olhos castanhos de Maya se arregalarem em sua direção junto ao de cinco crianças que estavam com soros presos aos braços.
— O príncipe! — uma das meninas gritou olhando e apontando para Nick. O coração dele se apertou ao perceber que, assim como as outras crianças, ela não possuía cabelo ou sobrancelhas.
— Sou eu. — Nicholas respondeu, levantando as mãos em rendição. Maya, completamente desesperada sem saber como reagir à aparição repentina dele, resolveu apenas continuar a história.
— Mas não foi o príncipe que me salvou. — ela completou, olhando para as crianças que, agora, tinham a boca aberta.
— Então quem foi, tia? — um garotinho perguntou.
— Foi o unicórnio mágico.
— Óóóóó... — as crianças disseram em uníssono.
— Mas foi o príncipe que levou o unicórnio. — Nicholas fechou a porta atrás de si, e pegou da mochila aberta de Maya uma mini espada de mentira. — Com toda a sua bravura.
— E você matou o bruxo mau? — o segundo garotinho pergunta, arregalando os olhinhos acinzentados.
— Não sobrou nada dele para contar história.
— Uau!
— Com licença meus amores, a princesa precisa ter uma conversa séria com o príncipe. Vamos pausar a história por um minutinho? — Maya sorriu e as crianças soltaram um "aaaa" de decepção. Uma enfermeira entrou no quarto no mesmo instante.
— Está na hora da pausa mesmo, vocês vão tomar os remédios agora. — ela sorriu pegando uma agulha, e arqueou a sobrancelha ao olhar para Nicholas. — Quem é você?
— Alguém que já está indo embora, me perdoe Meredith! — Maya empurrou Nicholas para fora, e fechou a porta. — O que você está fazendo aqui?
— Nesse momento, observando uma garota com muita raiva.
— Campbell!
— Tudo bem, tudo bem, me desculpa. Eu sei que não devia ter entrado, só fiquei curioso. Você conhece alguma das crianças?
— Eu sou voluntária, venho passar um tempo com elas duas vezes por semana. Conheci todas aqui.
— E porque você não queria que ninguém soubesse?
— Porque eu não gosto de sair falando por aí que eu visito crianças com câncer, Nicholas! Elas não precisam de holofotes, e eu não preciso que ninguém saia dizendo por aí que eu sou uma grande pessoa só porque estou fazendo o mínimo que deveria ser feito. Na bíblia fala que boas ações devem ser feitas em secreto. Só meu pai sabe, então por favor, não conte a ninguém.
— Não irei. — ele se vira a vê pelo vidro da porta a enfermeira injetando mais coisas nos tubos. — Quão mal eles estão?
— Muito. — Maya sorriu fraco, segurando a vontade de chorar. — O primeiro princípio que eles ensinam aos voluntários é não se apegar tanto, mas não tem como sabe? Eles são incríveis.
— Me apresenta eles.
— Você nem devia estar aqui, Campbell! — ela sorri, retirando uma lágrima que desceu sem sua permissão.
— Bom, já que provavelmente eu não vou poder entrar de novo, essa é a minha chance.
— Príncipe! — um dos garotinhos vê ele olhando da porta e o chama. A enfermeira assente, e os dois entram.
— Esse é o Bryan. — Maya sorriu, apresentando os dois. — Ele dá dez a zero em você em qualquer conta de exatas.
— Muito prazer, Bryan. — Nick faz um soquinho com a mão, e o garoto bate com a pequena mão pálida coberta de veias bem visíveis.
— E essa é a Theodora. — Maya coloca a coroa de plástico que estava em sua cabeça na da garotinha de pele escura, e faz uma reverência.
— Pode me chamar de Theo. — Ela sorri, estendendo a mãozinha. Nick faz uma reverência parecida com a de Maya, e beija a mão dela.
— Eu sou a Ellie! — a segunda garotinha levanta a mão, sorrindo de forma larga expondo a falta dos dois dentinhos da frente que haviam formado uma banguela. Nicholas sorriu.
— E eu sou a Naomi. — a última menina sentada ao lado da amiga diz também animada, sorrindo de forma tão larga que os olhinhos puxados asiáticos quase se fecharam. — Qual é o seu nome, príncipe?
— Nicholas. — ele também fez a reverência para as duas meninas, que sorriram envergonhadas. O último garotinho o olhou do fundo da sala. Apesar do cabelo também raspado, ele não carregava nenhum soro no braço.
— E esse, por último, é o Benjamim. — Maya segurou na mão dele, e ele se aproximou desconfiado.
— Ben, tia. Eu gosto que me chame de Ben. — ele disse baixinho, com a mão na frente da boca como se estivesse contando um segredo.
— Ben! Me perdoe príncipe, eu que disse errado.
— Olá, cara. — Nick se agachou para ficar do tamanho dele, e fez o mesmo sinal do soquinho, que após alguns segundos, o garoto retribuiu.
— Eu sou o irmão do Bryan! — ele contou, desistindo da desconfiança e sorrindo. — Você também tem um irmão?
— Tenho. — Nicholas sorriu fraco, sentindo o peito apertar com a pergunta.
— E ele é o seu melhor amigo? O Bryan é o meu melhor amigo.
— Já chega de tantas perguntas. — a enfermeira os interrompeu, e pegou o garoto no colo, o colocando sentado na poltrona. — Ben, seus pais já estão chegando para te buscar. Você já passou muito tempo aqui hoje, está na hora de voltar para casa.
— Mas eu quero ficar com o Bryan! — ele choramingou. Maya se agachou ao lado dele, e segurou em sua mão.
— Depois você volta, meu amor. Seu irmão precisa se recuperar para ficar bom logo. Eu prometo que daqui três dias, quando eu voltar, contarei uma história nova daquela que você sempre quis.
— Com dragões? — os olhos castanhos do garotinho se arregalam, e ele sorri.
— Com dragões.
Nicholas olhou para a cena, e percebeu que nunca, em toda a sua vida, ele havia admirado tanto uma garota. A frequência com que ele sorria ao olhar para ela jamais se comparava com qualquer outra. Maya brilhava. Ela brilhava quando ela sorria, e ele não se importava mais em admitir que gostava de cada minuto que passava com ela.
— Só aceito a história dos dragões se o príncipe voltar! — Ellie diz, franzindo a cara para Meredith que tentava ajeitar a agulha de novo em seu braço.
— O príncipe precisa ir embora. — a enfermeira sorri para ele, arqueando as sobrancelhas. — E a princesa também. Se despeçam dos dois.
— Tchaaaaaau! — eles disseram tristes em conjunto. Maya pegou a mochila e levantou a barra do vestido lilás de tnt que ela havia improvisado e feito a mão em casa. Quando os dois saem para fora da porta, Meredith aparece.
— Eu não sei quem é você garoto, mas você não pode aparecer aqui se não está no programa de voluntários. As crianças ficaram felizes e eu agradeço por isso, mas elas estão frágeis e podem pegar infecções mais rápido do que a gente. Pelas normas do hospital, assim como Maya, você só poderia ficar aqui se trouxesse a confirmação de todas as vacinas e tivesse a autorização que, pela sua camisa vazia sem crachá, me indica que você não tem.
— Eu compreendo. — Nick abaixa a cabeça, e enfia as mãos nos bolsos da calça.
— E quando a você Maya, nós temos que conversar. Suas visitas terão que ser reduzidas a uma vez a cada quinze dias.
— O que? Porque? — ela olha desesperada para a enfermeira, que aperta triste o prontuário.
— Eles não estão melhorando, minha menina. A partir dessa semana, os tratamentos serão iniciados com mais intensidade, e eles estarão fracos demais para sequer prestar atenção nas histórias.
— Mas...
— Eu sinto muito, prometo que se as coisas melhorarem eu peço a Samantha para te ligar.
— Mas eu quero estar com eles... Eu prometi que voltava essa semana...
— Eu sei, meu amor. — ela toca o rosto de Maya, a olhando com carinho. — Mais uma vez, eu sinto muito.
Assim ela saiu, deixando a garota para trás. Nicholas permanece parado, sentindo algo estranho no peito ao vê-la tão abalada. Sem conseguir controlar, Maya deixa cair mais uma lágrima, e jogando fora o limite que havia imposto mais cedo depois da batida do carro, Nick a abraçou novamente.
— Eu realmente não consigo acreditar que você venha sozinha. — ele diz e ela se solta do abraço, voltando a tentar sorrir.
— Tem outros voluntários, mas cada um escolhe a ala que quer ficar. Segundo as regras do hospital, só pode ficar um em cada.
— Desde que você trabalha aqui... — ele começa a andar ao lado dela, em direção a saída do hospital. — ... alguma delas já...
— Morreu? Sim. — Maya aperta a mochila contra o corpo, não se importando se andar pelos corredores vestida de princesa. — Uma menina que tinha um irmã, assim como o Ben e o Bryan. Não sei se você percebeu, mas o Ben não está doente.
— Eu imaginei. — Nicholas respondeu, observando um grupo de médicos passar carregando uma maca. — Ele raspou o cabelo pelo irmão, não foi?
— Sim, e vem todos dias.
— Como você consegue? — ele segura Maya pelo braço, a parando no corredor. — Quer dizer, isso é muito triste, Olsen. Como pode enxergar Deus em meio ao sofrimento dessas crianças?
— Todos viemos com um propósito nessa terra, Nick. — ela o responde com calma e leveza, sabendo que ela mesmo já havia se feito essa pergunta muitas vezes. — Todos nós vamos morrer. Acredito que essa garotinha que contei foi primeiro porque já cumpriu o propósito pelo qual Deus a enviou, mostrar que ainda existe amor e pureza. Mostrar a graça de Deus na força que ela teve para lutar, de forma mais impressionante que qualquer adulto. Ensinar aos pais o que é amar de verdade. Meu maior medo não é morrer cedo, mas morrer sem ter cumprido o meu propósito aqui. Todos os dias eu penso se eu estou fazendo diferença na vida de alguém.
Os dois voltaram a andar, e cumprimentaram Samantha na recepção. Maya entregou o crachá, e engoliu uma saliva querendo saber o que Nicholas estava pensando.
O silêncio dele havia a incomodado, mas na verdade, naquele momento, talvez era melhor do que palavras. De relance, ele olhou para ela e disse a si mesmo, em seus próprios pensamentos, o que ele não tinha coragem de dizer em voz alta.
— Certamente na minha você está.
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