Capítulo 5
POV do J.V.
A cama de Nath estava repleta de bichinhos de pelúcia, mas J.V. simplesmente os ignorou e se jogou em cima.
— Ai, nem acredito que eu posso deitar.
— É, mas não amassa os meus bebês não! — Nath disse, correndo para resgatar os seus bichinhos. — Seu grosso, eu coleciono!
— Eles vão sobreviver, Nath.— Murmurou, sua voz abafada pelo travesseiro. — Eu, quando chegar em casa, não vou.
— Ai, homem é dramático mesmo né? Deixa de besteira, o médico disse que é só uma gripe! Agora toma logo esses remédios para ver se você melhora um pouco antes de ir para casa, tá bom?
— Tá, tá bom. — resmungou, aceitando os comprimidos que Nath estava entregando para ele. — por que é que você é tão chata?
— Porque você é trouxa. — respondeu sem piscar, se largando numa cadeira ao lado da cama. — Já que eu te levei ao médico, comprei os seus remédios usando a minha própria mesada e te trouxe para casa, você podia pelo menos tocar alguma coisa para mim.
— O que, vai me dizer que você só me ajudou por interesse?
— Mas é claro! O que, vai dizer que quer os meus serviços de cuidadora de graça? — rindo, Nath meneou a cabeça — Não mesmo! Sou boazinha, mas nem tanto, pode ir retribuindo o favor aí.
— Bem, sou eu quem está doente né, então–
— De uma gripe, não de alguma doença incurável!
— Tá certo, tudo bem Nath. O que eu posso fazer por você para retribuir?
Nath abriu um largo sorriso.
— Ah não sei, vamos ver... — se levantando da cadeira, Nath pegou um violão e trouxe para J.V. — por que não toca um pouco, hm? Tenho sentido falta dos meus shows ao vivo.
J.V. imediatamente reconheceu o seu violão, o que adorava e tinha ganho de presente da sua mãe quando tinha seis anos, pouco antes de demonstrar o seu talento para futebol aos sete.
Lembrava das longas horas trabalhando para aprender a tocar, dos calos nos dedos, da diversão que teve se desafiando com músicas mais e mais difíceis e... por fim, se lembrava do seu pai o forçando a doá-lo para a Igreja.
Atletas precisam de foco filho, e essa porcaria está tirando o seu!
Se lembrava de ter chorado por dias depois daquilo, a sua mãe o consolando silenciosamente ao seu lado. Tinha sido também uma das poucas vezes que a sua mãe tinha realmente brigado com o seu pai.
E a primeira vez que J.V. havia pensado que o seu pai ia bater na sua mãe.
Ele não tinha, é claro. Nunca havia encostado nem ao menos um dedo em nenhum deles. Mas a imagem da sua mãe se preparando para receber o golpe que não veio ficou gravada na sua mente.
Ele nunca mais esqueceu.
Desistiu do violão, das aulas, e dedicou tudo o que tinha para tornar o seu pai feliz. Escondeu a raiva, a dor, o sofrimento e o medo numa caixinha dentro dele que ele raramente abria. Ele nunca mais tocaria violão, pelo menos não aquele violão, mas tudo bem.
Ele ficaria vivo, seria forte e um dia... um dia...
Um dia.
Mas Nath não havia deixado acontecer. De alguma forma que até hoje J.V. desconhecia, Nath surrupiou seu violão da caixa de doações da Igreja, onde o seu pai havia feito um grande estardalhaço ao doá-lo, e o levou para casa, o escondendo embaixo da sua cama no quarto. Algum tempo depois, levou J.V. para lá, pegou o violão e o entregou para ele com um largo sorriso.
— Vai ficar aqui até você poder pegar de volta, — prometeu, fingindo não perceber as lágrimas no rosto de J.V. — até lá, você pode vir aqui para praticar. Eu gosto de música.
Graças a Deus por Nath, pensou, não pela primeira, nem pela última vez na sua vida.
— J.V.? — Nath perguntou, olhando para J.V. com preocupação. — Você tá bem? Olha, se você não tiver legal, você pode vir aqui tocar outro dia... é só que achei que podia te ajudar a relaxar, mas talvez você devesse tirar um cochilo...
J.V. meneou a cabeça com um sorriso no rosto e pegou o violão.
— Não, desculpa Nath. Tá tudo bem, é só que... minha cabeça tava longe.
Pegou o violão e o afagou como alguém que reencontra um velho amigo.
— Então, você tem algum pedido em especial?
*
O sol estava começando a se pôr quando J.V. começou a se preparar para voltar para casa. Enquanto ele cuidava do seu violão que ficaria na casa de Nath como quem cuida de um recém-nascido, a mesma arrumava os remédios dentro da sua bolsa e repetia incansavelmente os horários nos quais ele tinha que tomar as próximas doses do remédio.
— Eu vou te passar zap, se você me disser amanhã que esqueceu de tomar os remédios eu vou te matar.
— Ok, Nath.
— E é bom você jantar direito também e dormir cedo. Se o seu pai quiser te mandar treinar, se joga no chão e finge que teve uma contusão.
— Tudo bem Nath.
— Se inspira no Neymar e vai. — Nath continuou, enquanto checava ao redor no seu quarto para se certificar que nada tinha ficado para trás. — Se eu souber que você descumpriu as ordens médicas, J.V., eu juro por Deus–
— Vou cumprir tudo direitinho, Nath. Prometo. E obrigado por tudo mais uma vez. — J.V. sorriu, afagando os cabelos de Nath. — Você é a melhor amiga que eu poderia ter.
— Eu sei. — Nath fungou algumas vezes, como se estivesse a ponto de chorar. — Eu sou maravilhosa mesmo.
— Ainda bem que você sabe. — rindo, ele beijou a testa da amiga. — Não se preocupa não, Nath. Vou ficar bem.
Nath o observou por alguns minutos, como se ela estivesse debatendo alguma coisa internamente.
— Tudo bem. Aqui, eu quero te dar uma coisa. — Nath pegou alguma coisa do seu bolso e entregou nas mãos de J.V. — Não quero me meter e criar problemas para você, mas eu realmente acho que você deveria dar uma olhada nisso... Só não deixa o seu pai achar.
— Ok. — com um sorriso, J.V. aceitou o papel e o guardou no seu próprio bolso. — Vou dar uma olhada nisso mais tarde... Agora eu preciso mesmo ir.
— Eu sei, eu sei. — Nath riu, meneando a cabeça com um sorriso. — Mas olha isso com cuidado mais tarde e... e J.V., se você precisar de ajuda, eu estou aqui.
— Eu sei.
*
Naquele dia, o ônibus que o levaria para casa demorou a chegar. Olhando para o número crescente de pessoas na frente do ponto, J.V. começou a pensar que alguma coisa incomum deveria ter acontecido, mas não havia muito que ele pudesse fazer além de esperar.
Colocando a mão no bolso, o barulho de papel amassado o fez se lembrar do papel que Nath havia lhe entregado quando ele estava saindo da casa dela.
O que seria aquilo?
Desdobrando o papel, a primeira coisa que lhe chamou atenção era a cor roxa do panfleto, e as grandes letras amarelas que avisavam: "Show de talentos".
Um show de talentos?, pensou J.V. com certa curiosidade. Mas o que Nath pode querer dizer com isso?
Seria uma competição onde qualquer morador de Felicidade poderia exibir o seu talento. Quem passasse em todas as fases do concurso ganharia um generoso prêmio em dinheiro, além de ser contratado para fazer uma grande exibição em um famoso canal de televisão.
Qualquer talento poderia se inscrever, então dançarinos, atores, humoristas, mágicos, artistas circenses, músicos... desde que você pudesse fazer um show que entretivesse a plateia, tudo estava liberado.
Músico?
J.V. subitamente se lembrou da alegria que sentia quando segurava o seu violão e teve uma súbita vontade de se apresentar com ele.
Você só está perdendo tempo com essas coisas, a lembrança da voz do seu pai interrompeu os seus pensamentos. Você nunca vai vencer com essa porcaria de música.
Mordendo o lábio inferior, J.V. olhou para suas mãos, os dedos ainda ligeiramente marcados pelas cordas do violão. Ele estava destreinado, não tinha tempo para praticar já que precisava participar dos treinos e agora ainda teria aulas extras de literatura, além do que seria incrivelmente difícil participar de algo assim sem que o seu pai descobrisse e se ele nem ao menos passasse da primeira fase, seria um tremendo esforço perdido.
Sem contar o quão raivoso o seu pai ficaria quando descobrisse tudo... Talvez até sobrasse para Nath ou para sua mãe.
Não, não vale a pena o risco.
Decidido, J.V. pensou que deveria jogar fora o panfleto, mas algo o fez dobrar o papel novamente e colocá-lo no bolso mais uma vez.
*
Já era noite quando J.V. conseguiu chegar em casa, tão cansado que mal conseguia abrir os olhos.
Mal abriu a porta de casa e já foi recepcionado por sua mãe, que o guiou para dentro de casa.
— Deixa eu ver você — ela pediu, segurando o rosto do filho e rapidamente tocando a sua testa com as costas da mão. Sua expressão imediatamente se fechou. — Hm, nada bom. Você está quente, filho. — murmurou, mordendo o lábio inferior. — Nada bom, nada bom...
J.V. respirou fundo, abrindo a boca para avisar a mãe que estava bem — era só que estava quase na hora de tomar o remédio de novo, então o efeito estava passando, mas antes que ele pudesse falar qualquer coisa, sua mãe continuou a falar.
— Rápido, rápido, o seu pai tá tomando banho. — ela murmurou, empurrando o rapaz em direção ao seu quarto. — Vamos, vamos logo.
— A Nath avisou a você, mãe? — finalmente conseguiu perguntar, se sentindo irritado ao notar a sua voz arrastada. — Eu tô bem, é só uma gripe.
— Você sabe como é o seu pai, — ela disse de forma ríspida, mas J.V. apenas assentiu. — se você estiver dormindo, ele vai se distrair com algo na televisão.
J.V. assentiu e jogou a mochila no canto do quarto, se largando na cama.
— Finja que está dormindo. Daqui a pouco eu trago algo para você comer. E tome o seu remédio — Dando um beijo na testa do filho, a mulher o encarou com tristeza. — Assim que o seu pai for dormir, te aviso para você poder ir tomar banho. Ah, filho, eu sinto tanto...
— Tá tudo bem, mãe. — J.V. sorriu, segurando as mãos trêmulas de sua mãe entre as suas. — Não é culpa sua...
— Mas eu devia te proteger... — fechando os olhos, ela sacudiu a cabeça. — Desculpa a sua mãe ser tão covarde, meu bebê.
— Não se preocupa mãe. Eu vou ficar bem. — Forçando um sorriso para sua mãe, J.V. trocou de roupa e se deitou na cama, fechando os olhos e tentando relaxar o corpo.
A próxima coisa da qual se deu conta, foi um toque gentil em seus ombros.
— Seu pai está dormindo. Pode ir tomar banho agora se quiser. — era sua mãe, com a aparência cansada e o olhar triste.
— Obrigado, mãe. — ele murmurou, esfregando os olhos ao se sentar na cama. — Vou tomar um banho sim.
— Ótimo, enquanto você faz isso vou esquentar alguma comida para você. Tem alguma coisa que você queira comer?
— Torta de frango! — J.V. respondeu, quase no automático. A torta de frango da sua mãe era sua receita favorita, e ele se lembrava de passar horas e mais horas ao lado dela na cozinha quando mais novo, aprendendo a fazê-la.
Até que ele fez sete anos e não podia mais 'perder tempo' fazendo essas coisas.
Como se soubesse o que tinha passado pela cabeça do filho, a sua mãe deu um sorriso e afagou os seus cabelos.
— Está muito tarde para torta de frango, não acha? Que tal uma canja hoje, para ajudar com a gripe, e preparamos uma torta juntos esse sábado? Ouvi o seu pai comentando com um amigo dele que iria viajar, então...
Abrindo um sorriso largo, J.V. assentiu, sentindo uma explosão de felicidade ao pensar nas horas gastas com a sua mãe, fazendo a massa e preparando o recheio para no final saborear uma deliciosa torta de frango...
Apenas para seu sorriso sumir em uma explosão de igual tamanho... de culpa.
J.V. tinha... sentimentos bem controversos com relação a seu pai. Gostava dele, o amava, o admirava tanto quanto tinha raiva dele, rancor e medo. Era... um assunto muito complicado para se pensar sobre tão tarde da noite.
Ou em qualquer horário, na verdade.
No fundo, J.V. sabia que o seu pai queria o melhor para ele embora a forma que o seu pai expressasse isso fosse péssima, e ele se sentia culpado por não conseguir fazê-lo feliz e orgulhoso... E por não conseguir deixar de se sentir aliviado sabendo que teria alguns dias sem a sua supervisão.
Banho tomado, J.V. seguiu em direção a cozinha ainda secando os cabelos. O cheiro de canja quente de galinha fez cócegas no seu nariz e logo o seu estômago começou a roncar.
— Acho que alguém está com fome. — sua mãe disse com um sorriso, servindo uma grande quantidade de canja em seu prato. — Coma bastante para se fortalecer logo. Se quiser repetir, tem mais aqui na panela, tudo bem?
— Obrigado, mãe. — sorriu, observando preocupado a expressão cansada no rosto da mãe. — pode ir dormir agora se quiser, eu vou comer e limpo tudo aqui depois.
— Não, querido, você está doente... — soltando um bocejo, ela parou para jogar um pouco de água no rosto. — Alguns minutos a menos de sono não vão fazer falta.
— Mas mãe–
— Não não não, eu sou sua mãe e eu tenho que cuidar de você. — com um sorriso triste, ela afagou os cabelos do filho. — É uma das poucas alegrias que me resta. Você não vai tirar isso de mim, né?
J.V. deu um sorriso sem graça — sua mãe era muito boa em usar culpa.
— Se você quer ficar...
— Eu quero. — disse, decidida, se sentando em frente ao filho. — Não temos podido conversar muito...
Implícito, J.V. pensou amargurado, ficava que o seu pai gostava de espiar todas as suas conversas com a sua mãe, procurando novas coisas em que ele podia 'melhorar'.
Eles não tinham privacidade.
— Eu sei mãe.
— Como está a escola? — perguntou, um sorriso preocupado nos seus lábios. — Tem feito muitos amigos? Está se saindo bem nas aulas?
Com um sorriso sem graça, J.V. admitiu a verdade.
— Não tenho conseguido estudar... as minhas notas estão bem ruins. Vou ter que fazer aulas suplementares... e não sei como falar isso com o papai.
— Ah, querido. — a expressão de preocupação no rosto de Isadora era nítida. — eu sinto muito.
— Eu sei. — murmurou, baixando a cabeça em direção ao prato. — Ah, Nath me falou de um show de talentos.
— Show de talentos?
— É. Aparentemente vão ter apresentações de dança, mágica... um monte de coisas. — comendo uma colherada da canja, J.V. se sentiu relaxar.— Você devia ir assistir, mãe. Acho que vai ser divertido.
Com um sorriso triste, sua mãe meneou a cabeça.
— Você sabe como é o seu pai... Se eu sair e não deixar o almoço pronto para ele, ele fica bravo.
E grita com você, J.V. pensou, cerrando os dentes com raiva.
— Eu sei bem disso, mãe... Pensei em me apresentar também, mas só de pensar na cara do meu pai...
Com as mãos cerradas, ela o encarou com uma expressão séria.
— Você quer se apresentar?
— Bem, acho que seria divertido... você sabe que eu sempre gostei de tocar música... — com um sorriso sem graça, J.V. coçou a cabeça. — mas sei que só ia dar problema, então é melhor eu nem tentar...
Como se aquilo fosse tudo o que ela precisava ouvir, Isadora sorriu e afagou os cabelos do filho.
— Muito bem. Se você quer participar, então você deveria participar.
J.V. arregalou os olhos.
— M-mas mãe–
— Não, J.V. Se você quer isso, realmente quer, você devia tentar. Você precisa praticar e se esforçar bastante, tá bom? Eu vou...— ela engoliu em seco e respirou fundo. — Eu vou te apoiar. — repetiu.
— Mas mãe, se o meu pai souber... ele vai ficar furioso...
— Bem, então ele não pode saber, né? Nós vamos conseguir... — com um sorriso vitorioso, ela afagou os cabelos do menino. — Não podemos deixar ele ganhar sempre também.
Em choque, J.V. viu a sua mãe sair cantarolando baixinho, como se subitamente estivesse muito feliz.
O que o fez se dar conta de que ele não se lembrava da última vez que havia visto a sua mãe tão feliz assim... ou se já a tinha visto feliz assim.
Será que ele realmente deveria tentar? Será que essa era a coisa certa a se fazer?
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