Capítulo 34
POV do J.V.
Antigamente, perder um jogo fazia parte da diversão do futebol para J.V., afinal de contas, se ele sempre vencesse, onde estaria o desafio? Aquela força que o motivava a continuar treinando, a continuar jogando? A vontade de praticar, de se tornar melhor e melhor a cada dia?
É claro, seu pai nunca vira as coisas da mesma forma que ele.
— Se não for para ser o melhor, por que fazer? — diria ele, por entre seus goles de cerveja. — Fazer qualquer coisa apenas para ser medíocre nela é apenas perda de tempo, tempo que você poderia estar investindo em seu verdadeiro dom, seu verdadeiro talento.
"Talento", a palavra que assombrava J.V. desde seus sete anos de idade, era uma constante em sua vida. Se alguém perguntasse a ele, J.V. diria sem nem ao menos piscar que seu maior sonho era ser um jogador de futebol medíocre.
Olha aí a ironia do destino.
Os jogadores "medíocres" do seu time, como o seu pai os chamava, estavam sempre jogando com um sorriso no rosto, rindo, brincando com os companheiros de equipe. Eles faziam viagens juntos, pregavam peças nos outros e até mesmo marcavam de comemorar os aniversários uns dos outros na barraquinha da esquina.
Não que ele fosse convidado.
Os outros colegas de equipe, com exceção de Liam, é claro, o olhavam como quem olha alguém que está acima deles, alguém que não faz parte do grupo.
E ele realmente não podia culpá-los.
O rosto suado, pálido que o encarava de volta no espelho não era um rosto que convidava novas amizades — era um rosto que provavelmente deveria tirar férias, se as manchas escuras embaixo de seus olhos queriam dizer qualquer coisa. Além disso, era um rosto que provavelmente deveria passar no hospital e fazer um check up também, para um atleta ele estava com uma baita cara de doente.
Não que seu pai diria isso — para ele, contando que o filho tivesse o melhor desempenho humanamente possível no campeonato, nada mais importava: não a sua saúde mental, não a sua felicidade e, J.V. estava começando a desconfiar, nem mesmo sua saúde física.
Contando que ele conseguisse jogar, é claro.
Não, J.V. definitivamente não concordava com o seu pai.
Grande novidade, J.V. pensou, um sorriso enviesado se formando em seus lábios enquanto fechava a porta do banheiro atrás de si e seguia rumo a cozinha. Quando é que a gente vê as coisas da mesma forma nos últimos meses?
Furioso, o homem havia gritado com o filho até quase perder a voz e, agora, se resignava a soltar resmungos inconformados da sua posição confortável na velha poltrona da sala.
Do jeito que ele está agindo, parece que a gente perdeu de vinte a zero, J.V. pensou, irritado, enquanto cumpria o castigo que o seu pai havia designado para ele naquela maldita tarde de sábado, mas não, a gente empatou, um a um. E o gol foi meu!
Não que isso diminuísse a fúria de seu pai, que havia decidido que o filho praticaria pênaltis até que conseguisse pagar ao seu pai por ter perdido o pênalti mais cedo.
Tirando os dez minutos de pausa que ele havia tirado para ir ao banheiro, tinha mais de quatro horas que ele estava treinando.
Isso não seria nada demais, não fosse o fato de que ele havia machucado o seu pé durante o jogo, há algumas horas atrás.
A dor pulsante e o desconforto que só parecia aumentar incessantemente fez J.V. suspeitar que o seu pé provavelmente estava inchando — não que ele sequer ousasse pensar em solicitar ajuda a seu pai.
E era por isso que, mesmo cerrando os dentes e respirando fundo para esconder sua dor, J.V. voltou para o quintal para continuar batendo pênaltis incessantemente, aguardando com ansiedade a palavra de seu pai que o liberaria daquela tortura...
E, para sua surpresa — e alívio — essa palavra veio bem antes do esperado naquele dia.
— Nath!
A menina sorria, mas seu olhar estava indo de J.V. para seu pai, e de volta para J.V. ininterruptamente. Ao seu lado, seu Jorge fingia não prestar atenção na conversa dos dois, mexendo em seu celular distraidamente. Mesmo assim, Nath não pareceu relaxar de certo notando o clima tenso entre os dois, mas forçou um sorriso tranquilo na tentativa de acalmar os ânimos.
— Ei J.V.! Desculpa atrapalhar o seu treino, — ela pediu, olhando para seu pai mais uma vez com nítido desconforto. — É que eu queria falar com você hoje.
Seu pai resmungou alguma coisa que J.V. não entendeu, mas ele não parecia inteiramente oposto a presença de Nath.
Graças a Deus ele gosta dela.
— Não tem problema, Nath. Vamos para a cozinha, você deve querer comer alguma coisa...
— Não se esqueça de que você está de dieta, filho! — seu pai gritou, a voz arrastada de quem tinha passado da conta na bebida fazendo J.V. sentir um misto de irritação e tristeza. — Não ouse jogar pro alto tudo o que você conquistou por uma menina!
Tudo o que eu conquistei? Mas o que eu conquistei?, J.V. se questionava, suas mãos subitamente tremendo de raiva. Pisando com força em parte para extravasar a raiva e em parte para chegar rapidamente a cozinha, J.V. se arrependeria amargamente no segundo em que o seu pai saísse da sua vista e o seu pé se fizesse notar.
— Droga, — resmungou, mancando de leve até conseguir se largar em uma cadeira. — Mas que droga!
Ergueu os olhos para encarar Nath e suspirou, mais uma grande onda de raiva preenchendo seu ser quando viu que os olhos da amiga estavam cheios de lágrimas... e pena.
Nath estava com pena dele.
É claro que ela está com pena, pensava, cerrando os punhos em cima da mesa. Eu sou mesmo digno de pena. Não consigo fazer nada sozinho, nem mesmo proteger a minha mãe...
— Eu não sei o que você está pensando, — Nath começou, se sentando na cadeira em frente a dele. — mas você está errado.
J.V. riu, mas foi uma risada fria e sem sentimento.
— Se você não sabe o que eu estou pensando, como sabe que eu estou errado?
— Pela cara que você tá fazendo. — Nath sacudiu a cabeça e soltou um suspiro. — Olha, eu sei que as coisas tão difíceis agora, mas elas vão melhorar. Você vai ver.
— É difícil de acreditar... — retorquiu, mas respirou fundo. Nada do que estava acontecendo era culpa de Nath, no fim das contas. — mas obrigado por vir me visitar, Nath.
— Tá tudo bem. — Nath disse, sorrindo e procurando por alguma coisa em seus bolsos. — Aqui, a Aspen pediu para eu entregar para você. São os efeitos especiais que preparamos para o seu show de amanhã.
J.V. parou, congelado.
— Mas... mas eu disse que não queria ajuda, —retorquiu, irritado, pegando o papel das mãos de Nath enquanto a sua raiva subia mais uma vez. — Aspen sabe disso.
— É, ela sabe, — Nath riu, meneando a cabeça. — Mas—
— Ela deve realmente achar que eu sou um incompetente. — J.V. soltou um suspiro, abrindo o papel e lendo o que estava escrito ali – era o poema de Gonçalves Dias, Canção do exílio.
— Não é isso, — Nath retorquiu, franzindo o cenho. — e você sabe que não é isso, J.V.. É só que... bem, a gente é um time, sabe? — Nath riu, meneando a cabeça. — Uma família... é, é isso. Nós somos uma família, e a gente não pode deixar um membro da nossa família pra trás né?
J.V. riu.
— Você tá assistindo Lilo & Stitch demais de novo.
— Lilo & Stitch nunca é demais. — Nath retorquiu, abrindo um sorriso. — Mas sério. Você pode ter sido a desculpa inicial, e te ajudar com... seus planos, bem, foi o nosso motivo inicial... Mas, de certa forma, nós formamos uma família... E a gente tinha que ajudar o Liam com a recuperação dele também. E, você sabia que a Camila gosta do Fábio? E que eu acho que o Fábio tem um pouco de medo dela? É engraçado, — Nath riu, meneando a cabeça. — mas sabe? — Nath se inclinou em sua direção, abaixando seu tom de voz. — Nenhum deles sequer piscou quando a Angela apareceu, muito menos quando ela se apresentou como sendo minha namorada. Continuaram tratando a gente normalmente, sabe? Como se não fizesse a menor diferença.
— Bem, é porque não faz a menor diferença, Nath. — J.V. disse, afagando os cabelos da amiga. — Eu te disse que, um dia, você ia encontrar gente que ia gostar de você por você e que, quando você os encontrasse, que você ia saber que essas coisas não fazem diferença porque elas não mudam quem você é.
— Eu sei. — Nath sorriu, encarando o amigo de volta. — Eu só espero que você saiba que o mesmo é verdade para você; eles gostam de você por quem você é.
— Ah, droga, — J.V. murmurou, tentando engolir o choro. — droga Nath, você sabe que o meu pai me mata se me ver chorar.
A expressão subitamente séria, Nath suspirou.
— Desculpa. A situação tá tão ruim quanto parece estar?
J.V. soltou um suspiro e parecia estar prestes a responder quando sentiu alguém puxando o pedaço de papel em suas mãos.
— Mas o que é isso? — J.V. congelou, lentamente se virando para encarar o seu pai. — Mas o que é essa porcaria?
— Ah, não é nada demais não, tio, — Nath correu para responder, ficando de pé e tentando pegar o papel de volta... mas falhando, é claro. — é parte do dever de casa das férias. Eu mostrei para o J.V. para tirar uma dúvida que eu tive...
J.V. respirou fundo e encarou o pai, sua expressão tensa, tentando se preparar para reagir da melhor forma possível e proteger Nath, se necessário.
— Dever de casa, hein...? — seu pai olhou de J.V. para Nath, fazendo com que J.V. engolisse em seco. Será que o seu pai descobriria a mentira de Nath? Não seria algo muito difícil — tudo o que ele teria que pensar era que J.V. tinha dificuldade com literatura e logo não faria sentido para Nath tirar dúvidas com ele...
Mas felizmente, isso não pareceu passar por sua cabeça.
— Não sei por que as escolas de hoje em dia tem que ensinar essas porcarias que não servem para nada, só serve para vocês que são o futuro dessa nação perderem tempo. — revirando os olhos, seu Jorge soltou um suspiro e devolveu o papel para Nath. — E agora, Nath, querida, você precisa ir. Sei que você deve estar sentindo falta dele, mas o sucesso exige um pequeno sacrifício.
— Ah, sim, senhor, eu sei, é só que—
— Além disso, — ele continuou, como se não a tivesse interrompido. — tenho certeza de que não vai se incomodar de resolver esse problema para ele, é uma forma de demonstrar o seu apoio, sabe?
— Hm, bem, claro. —Nath coçou a cabeça, parecendo extremamente sem graça. — mas é que eu realmente preciso explicar isso para o J.V. porque ele pode ter problemas quando as aulas voltarem e—
— Duvido que ele vá ter problemas se for bem nos próximos jogos, — respondeu com arrogância, se levantando da mesa. — até porque ninguém teria coragem de reprovar o mais novo astro do futebol brasileiro.
J.V. soltou um suspiro enquanto Natália deu um sorriso sem graça.
— Mesmo assim, eu realmente preciso—
— Sem mais nem meio mais! — seu pai bateu na mesa com força, o barulho súbito fazendo com que Nath desse um pulo de susto e caísse no chão, cadeira e tudo. — Natália, eu realmente gosto de você, querida, mas o J.V. precisa se concentrar em seu treino agora.
E, sem dar tempo para que J.V. se aproximasse da amiga para a ajudar a se levantar do chão, seu Jorge pegou o filho pelo braço e começou a puxá-lo para fora da cozinha e rumo ao quintal, onde ele sem dúvida o faria voltar para o treino.
*
Foi só horas mais tarde, quando estava indo dormir, que J.V. descobriu o resto do recado de Nath.
— Ela queria saber que música você vai apresentar amanhã, — sua mãe murmurou enquanto fingia estar mexendo no armário de J.V. — eu disse que você estava planejando tocar Guns & Roses ... eu estava certa né?
— Sim, — J.V. deu um pequeno sorriso. —November rain. Vou avisar a Nath discretamente.
Cerrando os dentes, mas determinado a não mostrar seu desconforto, J.V. mancou até o banheiro e usou a água quente do chuveiro em seu pé inchado e dolorido... e estranhamente roxo.
— Era só o que me faltava... — resmungou, xingando mentalmente quando botou o pé no chão. — como é que eu vou me apresentar amanhã?
Mas não havia muito que ele pudesse fazer, então se conformou em colocar o pé para cima e tentar encontrar uma posição confortável para poder, enfim, adormecer.
Tudo estaria bem no dia seguinte, pensou, tentando ser otimista. Tudo estaria bem.
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