Capítulo 2
**Atenção: Pode conter gatilhos, especialmente se você for parte da comunidade LGBTQIA+ ou se você passou por algum tipo de abuso verbal, já que o pai do J.V. é... um cara complicado, para não usar palavrão. Odeie ele, eu sei que eu odeio hahaha, mas não quero que você se sinta mal lendo. **
POV do J.V.
– Parabéns, J.V. Você conseguiu agir exatamente do jeito que você acabou de me falar que não queria.
Soltando um suspiro, o rapaz passou a mão pelos cabelos mais uma vez. Estava ficando grande de novo, seu pai logo lhe diria para cortar.
Ele odiava seu cabelo raspado.
Mas isso não importaria para seu pai, assim como não importava o fato dele querer fazer aula de violão, assim como não importava o fato dele odiar futebol, assim como não importava que ele tinha quase reprovado na escola no ano passado.
Nada importava, contando que ele fizesse tudo exatamente do jeito que o seu pai queria, e para o seu Jorge nada importava mais do que o seu filho se tornar o próximo grande craque no esporte.
– Foi mal, Liam. Eu tô com um monte de coisa na cabeça...
– Eu sei, cara, mas isso não te dá o direito de ser um babaca.
Assentindo, ele soltou um suspiro.
– Foi mal, cara. Pode pedir desculpas para as meninas por mim? Eu nem conheço elas direito, não devia ter falado dessa forma...
– Olha, comigo, tá tudo bem. Afinal de contas, você só afugentou a Olívia... e ela sempre foge, de qualquer forma. – soltando um suspiro, ele deu uns tapinhas nas costas do J.V. – Mas também, não é para mim que você tem que pedir desculpas.
– Liam—
– E nem vem com essa cara não, você fez a cagada, você vai ter que ir lá e assumir. Pedir desculpa. – dando mais uns tapinhas nas costas dele, Liam acrescentou. – Aspen e Olívia são pessoas bem legais, e eu não tô falando isso só porque elas são amigas da minha irmã—
– É porque você gosta da Olívia. – interrompeu J.V., um sorriso se formando em seu rosto. – Todo mundo sabe disso.
Liam engasgou, tossindo tanto que até seu rosto normalmente moreno ficou vermelho.
– Foi mal cara. Eu devia fingir que não sabia? – J.V. perguntou, dando alguns tapas nas costas de Liam, tentando ajudar o amigo a voltar ao normal. – Relaxa, não vou comentar com ninguém.
–Então. Como eu dizia. – Liam deu mais algumas tossidas antes de respirar fundo. – Aspen e Olívia são legais. Se você pedir desculpas e conversar com elas, mas conversar mesmo, sem essa encenação toda que você faz quando acha que os seus pais estão olhando, bem, elas vão perdoar você. Às vezes, você até ganha algumas amigas novas. E... – olhando de um lado para o outro, Liam se inclinou na direção de J.V. – sobre a Olívia. Você acha que alguém mais reparou?
Sem coragem de dizer para Liam que esse era o segredo mais conhecido da escola inteira, J.V. deu um sorriso sem graça e deu de ombros.
– Bateu uma baita fome agora, sabe, Liam. Aquela coxinha... ainda tá de pé?
*
O sol já havia se posto quando J.V. chegou em casa, fechando o portão preto atrás de si com um misto de exaustão e nervosismo.
Um raio cortou o céu, sinal de que provavelmente começaria a chover logo. O som do trovão distante só aumentava a sensação de nervosismo e... terror.
Escondeu as mãos trêmulas no bolso e caminhou em direção a casa. Certamente, poucas pessoas entenderiam o medo dele... Afinal de contas, tinha uma casa bonita, boas roupas, comida a vontade, coisas que estavam fora do alcance de muita gente.
Mas também...
Não era tão fácil como a grande maioria acreditava.
Parou no quintal por alguns instantes para fazer um afago no Pombinho, o velho vira lata caramelo que tinha invadido o seu quintal no dia de um jogo da Copa do Mundo e simplesmente decidiu morar ali. Pombinho era um amigo, um companheiro... e um consolo.
E uma desculpa para procrastinar a volta para casa, mesmo que apenas por alguns segundos.
Não é que ele não gostasse da sua família, ou que o tratassem mal... Talvez esse fosse o maior dos problemas... Talvez isso fosse exatamente o que doesse mais.
Não a falta de amor, mas o amor condicional.
O amor que o fazia questionar cada passo que dava, cada pensamento que tinha. O amor que fazia com que ele nunca se sentisse bom o bastante, o amor que dava medo, tristeza, pavor... de errar... E também de acertar.
Depois de alguns minutos, ele engoliu em seco e respirou fundo, antes de entrar em casa.
No fundo, o barulho de uma partida de futebol podia ser ouvido... provavelmente na sala. Tirando isso, havia um silêncio quase tangível, e ele também não ousava quebrá-lo.
Fechou a porta atrás de si com cuidado, retirando os sapatos e andando com eles nas mãos na ponta dos pés pelo corredor até colocá-los na sapateira. Quando nada foi ouvido, soltou um suspiro de alívio, pensando que finalmente poderia tomar um bom banho e trabalhar no seu dever de casa.
Os professores ficariam surpresos com ele por entregá-lo.
– E aí? Como foi?
J.V. deu um pulo de susto, sentindo o seu corpo travar logo em seguida.Essa seria uma pergunta normal de depois do treino para qualquer pessoa do mundo, mas a pesada carga de expectativas por trás dela e a voz forte e marcante do seu pai sempre o colocava como estrela de um filme de terror.
– Ahh... foi normal. – respondeu, congelando ao sentir a mão do pai em seu ombro. – Correu tudo bem.
– Seu treinador me disse que você ganhou o prêmio de melhor atacante do ano passado. Parabéns.
J.V. relaxou e conseguiu se virar e sorrir para o pai.
O homem corpulento de meia-idade tinha uma expressão no seu rosto que J.V. tinha dificuldade em compreender, mas era nítido pelo tom de voz que ele estava satisfeito. Não havia forma de saber por quanto tempo essa satisfação duraria e, honestamente, o rapaz estaria feliz até mesmo se só durasse por hoje.
– Sim, é, eu ganhei. Obrigado. – O orgulho que havia estado presente quando declarou a sua vitória para Aspen estava ausente naquela frase, mas era melhor assim. Se o seu pai estivesse satisfeito, tudo ficaria bem. Ele quase podia se ver fazendo a lição de casa.
– Ótimo. Mas espero que você saiba que um campeão não pode descansar sobre os louros da sua vitória. – sua expressão se tornou séria e J.V. ficou tenso novamente. – O treinador me disse que você errou dois passes hoje... devia ir treinar mais.
– M-mas pai... vai chover... – como se concordasse com o menino, o barulho alto de um trovão interrompeu a conversa. – Estava pensando em adiantar as tarefas... e... estudar um pouco...
– E você é lá feito de açúcar, moleque? – sacudindo a cabeça, o homem empurrou o filho para fora de casa. – Filho meu não é desses fracotes que ficam doentes com qualquer chuvinha. Muito menos dos que não tem cem por cento de aproveitamento em cada treino. Vai lá treinar.
– M-mas pai, minhas notas estão–
– E que importam as notas? Filho, você não precisa se preocupar com essas coisas não, é só jogar o charme do garanhão que eu sei que você tem, e pedir alguma das menininhas da sua sala para te deixar copiar. Agora vai treinar.
A voz firme, a postura intransigível que era tão comum no seu pai fez J.V. soltar um suspiro. Era perda de tempo discutir, concluiu, e se ele fosse treinar, provavelmente conseguiria fazer algum dever de casa hoje, embora provavelmente não todos.
Não era dessa vez que ia levantar a sua moral com os professores.
– É claro pai. Já estava pensando nisso mesmo. – mentiu, soltando um suspiro.
– É claro que estava, conheço o meu garanhão! – dando um forte tapa no ombro de J.V., ele soltou uma gargalhada. – Dever de casa, há, você fala como se isso fosse importante! João Vítor. Você sabe porque eu te dei esse nome? É porque eu sabia desde que você nasceu que você seria vitorioso, aquele que finalmente quebraria todas as barreiras e levaria os Azevedo para o mundo!
– Ah, sim pai. É claro, pai. – respondeu, soltando um suspiro. – Eu sei, é só–
– Eu crio você para que você seja forte. Um homem de verdade, não esses maricas que você vê toda hora na televisão. – disse, gesticulando na direção da sala, onde a televisão ainda podia ser ouvida ao fundo. – Esses caras idiotas que não fazem nada além de perder tempo, não sei porque tem gente que gasta dinheiro para ver eles... mas não, não o meu filho. Contando que você consiga a sua posição no Flamengo no final do próximo ano, filho, não precisa mais se preocupar. A sua vida tá ganha!
– Sim, pai, mas eu ainda tenho que me formar e–
– E que nada! Só precisa tirar seis em tudo, passar de ano e ponto! E isso você consegue com qualquer uma das menininhas que você encontrar por aí. Sei bem que o meu garanhão aqui é pegador que nem o pai, só que precisa disfarçar na frente da Nath, né não? – ele disse, dando mais algumas gargalhadas e batendo nas costas de um J.V. que estava claramente se sentindo desconfortável com toda aquela situação, cerrando os punhos com força para controlar o seu próprio temperamento. – Qualquer coisa que precisar no futuro, você pode contratar os idiotas que ficaram estudando aí, pagar alguns trocados e se ver livre de todos os incômodos.
J.V. respirou fundo, forçando as suas mãos a se abrirem e ao seu corpo a relaxar.
– Sim, pai, mas eu preciso—
– Confiar no seu pai, é isso que você precisa. Seu velho aqui sabe o que fala. Agora joga essa mochila aí em qualquer canto e vai treinar. Meu filho não pode ter menos do que cem por cento de aproveitamento em todos os treinos.
– Tá bom, pai.
*
Chutou a bola com força, tentando transmitir todos os seus sentimentos de irritação, raiva e descontentamento para a bola. A pobre coitada bateu com força contra a parede e imediatamente voltou para seus pés, fazendo com que Pombinho que havia corrido atrás da bola com entusiasmo soltasse alguns ganidos de decepção.
– Desculpa, – murmurou para o bichinho, se abaixando para afagar o cão. – Vai buscar, – falou em um tom de voz baixo para que seu pai não escutasse, embora o som de chuva pesado caindo ao seu redor provavelmente já fosse o suficiente para impedi-lo de ouvir. Preparando a bola em seus pés, J. V. a chutou para deixar que o cachorrinho trouxesse a bola de volta. – Bom garoto! – murmurou, afagando o cãozinho mais uma vez. – Vamos de novo?
Brincar com Pombinho era uma das poucas diversões que o seu pai permitia que ele tivesse, em grande parte por ser algo que fortalecia o seu físico e isso ser algo que contribuísse para seu desempenho no futebol.
Seu pai era obcecado por futebol.
Houve um tempo em que J.V. também gostava do esporte. Ele até mesmo conseguia se lembrar de jogar por diversão em alguns eventos na escola e em algumas festas.
Até o dia em que tudo mudou.
O dia em que perceberam que ele tinha talento... e depois disso, ninguém jamais perguntou se ele queria jogar futebol. Ele só tinha. Porque tinha talento.
J.V. odiava essa palavra.
Por isso admirava, e de certa forma invejava, pessoas como aquela ruivinha, Aspen. A menina fazia o que queria, escrevia porque gostava de escrever, e isso era incrível. Se ele pudesse fazer o que ele quisesse fazer...
Ah, primeiro ele ia deixar o cabelo crescer. Não a ponto de fazer um rabo de cavalo, mas gostava do jeito que estava agora. E depois, ele ia comer todo tipo de coisa que era ruim para atletas. Coxinha, pizza, chocolate... todas as coisas que o seu pai tinha cortado da sua dieta porque iam diminuir a sua 'performance'.
E ele ia sair com os amigos. Ele ia para cinemas, baladas, shows, festas... todo esse tipo de coisa para as quais ele sempre era convidado, mas nunca podia aceitar.
"A rotina de um atleta precisa ser muito rígida, filho. Mas vai valer a pena um dia, eu te garanto."
Ele queria gritar que não valia a pena. Nunca valeria a pena. Ele estava cansado de tudo aquilo, queria poder dormir na hora que quisesse, acordar na hora que quisesse. Queria poder descansar nos finais de semana. Queria poder chegar em casa depois de um longo dia de aulas e treino e ir tomar um bom banho quente e relaxante ao invés de ter que ficar treinando por horas a fio na chuva.
Queria poder reclamar sobre isso para alguém e não ficar de castigo se isso chegasse ao ouvido do seu pai, porque ele não estava criando um fracote.
Queria... queria...
J.V. olhou para a janela do seu quarto, soltando um suspiro. De que adiantava ficar pensando aquelas coisas? Ele nunca conseguiria fazer nenhuma delas, nunca teria coragem para enfrentar o pai que amava tanto. Era ridículo ficar sonhando com coisas que ele simplesmente não conseguiria atingir, uma simples perda de tempo.
Irônico que ele tinha acusado Aspen de estar perdendo seu tempo e aqui estava ele, fazendo o mesmo.
Soltando um suspiro, continuou treinando os chutes incansavelmente, até que o seu pai finalmente o chamasse para entrar.
Eram três horas da manhã.
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