Capítulo 62 | No Limiar da Mudança
Isaque Campbell
Passei a noite de ontem e a madrugada de hoje, após toda aquela cena, em oração e louvor, buscando desesperadamente a presença de Deus. Assim que cheguei em casa, a raiva ainda queimava em minha pele como brasas vivas. Tomei um banho gelado, tentando acalmar o fogo que consumia minha mente e afastar as imagens daquela briga, mas elas voltavam como um eco implacável. Comi algo sem sentir o gosto, apenas para afastar o vazio que crescia dentro de mim. Então, voltei para o quarto, minha mente ainda um campo de batalha, e me ajoelhei.
Minha conversa com Deus foi intensa, uma luta em que cada palavra parecia arrancada de um abismo de culpa e arrependimento. Abri meu coração, expondo feridas que eu mesmo havia causado e supliquei por perdão. Minha consciência pesava como uma âncora, enquanto a minha carne insistia em me dizer que eu fizera o certo, que os socos eram justificados, mas no fundo, eu sabia que tinha errado. Mesmo assim, uma parte de mim gritava que Henrique merecia sentir pelo menos uma fração da dor que ele causou. Mas havia algo, algo mais profundo, que me dizia que eu havia cruzado um limite, um limite que não poderia ser ultrapassado novamente.
Lembrei-me de Jesus, Seu sofrimento indescritível, suportando a humilhação, os açoites, os pregos. Ele não revidou. Ele não cedeu à fúria. Ao invés disso, Ele pediu ao Pai que perdoasse àquelas pessoas, demonstrando uma paz e uma humildade que transcendem o entendimento humano. Essa lembrança me atingiu como um golpe. Eu sabia que precisava mudar.
“Se alguém lhe bater numa face, ofereça-lhe também a outra.” As palavras de Lucas 6:29 ecoavam em minha mente, desafiando cada parte do meu ser. E então, como se Deus estivesse falando diretamente comigo na leitura da Bíblia, veio a passagem de Efésios:
“Quanto à antiga maneira de viver, vocês foram ensinados a despir-se do velho homem, que se corrompe por desejos enganosos, a serem renovados no modo de pensar e a revestir-se do novo homem, criado para ser semelhante a Deus em justiça e em santidade provenientes da verdade.”
[...]
“Quando vocês ficarem irados, não pequem. Apazigúem a sua ira antes que o sol se ponha e não deem lugar ao Diabo. Não entristeçam o Espírito Santo de Deus, com o qual vocês foram selados para o dia da redenção. Livrem-se de toda amargura, indignação e ira, gritaria e calúnia, bem como de toda maldade. Sejam bondosos e compassivos uns para com os outros, perdoando-se mutuamente, assim como Deus os perdoou em Cristo”.
Efésios 4:22-27, 30-32 NVI
Senti como se um peso fosse colocado sobre meus ombros. Eu tinha permitido que minha ira me dominasse, que a escuridão entrasse e me cegasse. E ali, de joelhos, na madrugada, fiz um voto silencioso. Eu não me deixaria vencer pela ira novamente. Se eu queria ser um novo homem, precisava me entregar completamente a Deus, não só com palavras, mas com ações, com minha vida.
Rebusquei na memória o que havia deixado para trás, os momentos em que, com a Bíblia aberta e o violão nas mãos, eu me sentia mais próximo de Deus. Era hora de voltar a isso, de resgatar a essência do primeiro amor. Peguei minha Bíblia, aquela que comprei quando decidi me reconectar com Deus, e pedi perdão por cada palavra que um dia desdenhei. Hoje, quero me alimentar da palavra, deixá-la preencher cada vazio, cada dúvida.
Eu já tinha lido a Bíblia inteira mais de uma vez, mas desta vez era diferente. Decidi começar novamente por Gênesis, com uma nova disposição no coração. Não queria apenas ler as palavras, mas absorvê-las, estudá-las, deixar que cada versículo se tornasse parte de mim, preparando-me para a obra que Deus tem para minha vida.
Sinto que Ele está me chamando de volta, como antes, para ser um instrumento em Suas mãos. Se Ele deseja que eu pregue Sua palavra, quero estar pronto. Se for para evangelizar, estou disposto. E se for para louvá-Lo com instrumentos de cordas, não hesitarei. Não importa o desafio, irei onde for, farei o que for preciso, porque agora sei que a única forma de viver plenamente é vivendo para o propósito que Ele traçou para mim.
Olhei para o espelho do banheiro. A marca do soco ainda estava lá, um lembrete vivo da minha falha. Joguei água no rosto e, enquanto as gotas escorriam, senti como se Deus estivesse limpando mais do que apenas a pele. Havia uma ordem em meio ao caos. “Primeiro Deus vai sacudir, para depois pôr em ordem.” Era isso que Ele estava fazendo, tirando tudo do lugar para que pudesse reorganizar da maneira certa.
E então, Anne.
Seu nome surgiu em meus pensamentos como um bálsamo.
Ontem à noite, depois de deixar Gabriela em casa, contei tudo para ela, cada detalhe, cada erro. Fui honesto, abri meu coração, não escondi nada. Ela ficou aliviada ao saber que não havia mais barreiras entre nós, mas a preocupação pelo que aconteceu com Henrique era evidente em sua voz. Prometi que seria a última vez. Eu sei que preciso ser moldado, lapidado. Preciso me tornar o homem que Deus deseja que eu seja, para cumprir as promessas que Ele me fez, para ser digno do amor de Anne.
Agora, mais do que nunca, sei que preciso manter o foco, seguir em frente, firme nas promessas de Deus. O caminho será longo, mas estou disposto a trilhá-lo, passo a passo, confiando que, no final, tudo estará no lugar certo.
Já pela manhã, por volta das 11h, eu estava me preparando para buscar a Anne. Tínhamos um almoço marcado na casa dos meus pais, mas antes precisava dar um jeito de encontrar o Marcos e ajudá-lo com o terno.
Decidi pular o escritório de manhã, minha cabeça estava em outro lugar. A reforma da minha nova sala na gerência ficou pronta, e mesmo tentando atrasar o máximo possível pra continuar perto da Anne, admirando-a enquanto trabalhava, não tinha mais como fugir. Fui notificado de que precisava começar na nova sala, e agora Anne teria uma assistente com ela. Mas isso não me preocupava. Todo mundo já sabe que a gerência é só uma fase, porque em breve vou assumir o cargo de CEO. É só uma questão de tempo.
— Cara, tu brigou mesmo? — Marcos entrou no carro já mandando a pergunta na lata.
— Já te expliquei — dei a partida, sem rodeios. — Perdi a cabeça.
— Tá de brincadeira, né? Como que tu sai na mão e ainda fica aí com essa cara de “tá tudo certo” ? — Ele me olhou com aquele ar de “que raios tá acontecendo contigo?”
— Não é tão grave assim, Marcos — olhei no retrovisor, analisando meu rosto. — Só uma marquinha.
— Quem sou eu pra julgar, né? O cara falsifica um teste de DNA, ainda faz o próprio exame! Qualquer um ficaria com raiva — ele comentou, e eu assenti.
— Mas não quero repetir isso. Ceder à raiva só destrói a paz. Já denunciei o cara, agora a justiça é com Deus.
— Boa! Falando em Deus... quando você volta de vez pra igreja? Digo, pregação, música...?
— O mais breve possível. Não dá mais pra perder tempo. Já me iludi demais com esse mundo vazio, cheio de enganos e vazio de Deus — respondi, enquanto procurava a loja onde a Melissa tinha reservado um horário exclusivo pra ele.
— É isso aí, mano. Tô gostando de ver — ele riu, também observando as lojas. — E sobre a Gabriela... tô decepcionado, cara. Melissa e os pais dela já descobriram tudo — ele falou, e o olhar dele ficou pesado.
— Você deu sorte com sua cunhada — eu zombei, e ele me deu um soco leve no ombro.
— Vida que segue. Agora é orar pra ela se arrepender, e entregar tudo nas mãos de Deus.
— Muita oração, irmão.
— Melissa tá fazendo o que pode, dando conselho, tentando levar ela pra igreja, mas a Gabriela tá fora de si.
— Ela não está agindo por conta própria. Só Deus pra restaurar isso. Espero que ela se entregue de verdade e vire a mãe que esse bebê precisa.
— Tô contigo, Isaque.
Chegamos na loja. Marcos parecia que ia casar no dia seguinte, não daqui a algumas semanas. Era ansiedade que eu nunca tinha visto. Entramos na loja mais fina da cidade, e o atendente nos recebeu com aquele olhar de “já vi de tudo”, mas dava pra ver que o entusiasmo do Marcos o pegou de surpresa.
— Quero o melhor terno que vocês tiverem! Preto, clássico e... como é que chama? — Ele me olhou, meio desesperado, meio esperançoso.
— Elegante? — Eu sugeri, tentando segurar a risada.
— Isso, elegante! — Ele repetiu como se tivesse resolvido um mistério da vida.
O atendente nos levou até uma arara cheia de ternos perfeitos, cada um alinhado como se fosse uma obra de arte. Enquanto ele mostrava as opções, Marcos passou a mão nos tecidos como se estivesse escolhendo algo sagrado.
— Esse aqui parece confortável... será que dá pra dançar? — Ele perguntou, já fazendo uns passos desajeitados.
Eu estava quase rindo alto.
— Marcos, você vai casar ou vai dançar?
— Os dois! — Ele respondeu sério, o que só deixou a situação mais cômica.
Quando ele finalmente escolheu o terno, ficou se admirando no espelho como se estivesse prestes a desfilar num tapete vermelho.
— Acho que vou desmaiar quando a Melissa me ver assim! — Ele disse, todo dramático.
Eu ia fazer um comentário zombeteiro, mas o atendente virou pra mim.
— E o senhor? Também vai precisar de um terno, certo?
— Vou sim, mas sem todo esse drama — respondi, piscando pro Marcos.
Enquanto eu vestia o meu, Marcos ficou ao redor, mexendo na gravata, ajustando os detalhes como se fosse o estilista da vez.
— Você também tem que impressionar, cara. A Anne vai estar lá! Olha só, esse corte te deixou com cara de galã.
— Ah, claro, porque o terno faz milagre, né? — brinquei, puxando a manga pra checar o ajuste.
No fim, saímos de lá com dois ternos impecáveis e a sensação de que estávamos prontos para qualquer coisa, menos para um casamento. Marcos ainda estava pilhado, falando sobre a festa, os votos e a surpresa que ia fazer pra Melissa.
No carro, Marcos começou a falar da lua de mel com uma empolgação que parecia um garoto ganhando o brinquedo favorito. Era impossível ignorar o brilho nos olhos dele.
— Cara, você não vai acreditar no que eu fiz! — Ele praticamente explodiu de tanto entusiasmo.
— Ah, lá vem... já imagino algo fora do normal. Fala logo, vai.
Marcos fez uma pausa dramática, daquele jeito clássico dele de criar suspense.
— Santorini, parceiro! — soltou, como se tivesse revelado um segredo digno da CIA.
Eu não me segurei e ri.
— Santorini, hein? Tá ficando chique demais pra mim. Essa lua de mel vai parecer aquelas de filme com trilha sonora épica.
— Exatamente! — Ele respondeu, agora com os olhos quase saltando de tanta animação. — Eu e a Melissa sempre sonhamos com isso! Aquelas casas brancas, o marzão azul... Reservei uma suíte com vista para o pôr do sol! Dá pra acreditar?
Eu o olhei por uns segundos, impressionado. Esse era o Marcos: bagunceiro, mas quando queria, mandava bem demais.
— Mano, tu vai reconquistar a Melissa com essa viagem, sem sombra de dúvida.
— Esse é o plano, velho. Quero que seja perfeito. Ela merece, sabe?
— Sei, sei sim — falei, pensando que uma hora dessas eu também teria que me virar pra planejar a lua de mel perfeita para a Anne.
A conversa continuou, e Marcos começou a detalhar o roteiro como se fosse um guia turístico: jantares à beira-mar, passeios de barco, vilas gregas... Era como se o cara já estivesse vivendo tudo na cabeça dele. Quase me convenci a me juntar.
— E você, seu enrolado? — Ele perguntou, me arrancando dos meus devaneios. — Já pensou em algum lugar quando for a sua vez?
Eu dei aquele sorriso de canto.
— Não vou mentir, a Suíça tá no topo da minha lista. É romântico, tem história... E eu descobri que a Anne ama o lugar, então vai ser surpresa pra ela.
— Claro, vocês dois têm esse estilo mais “conexão com a natureza” — ele riu e me deu um tapa nas costas. — Só não estraga tudo com seus comentários sarcásticos na hora, beleza?
— Relaxa, mano, eu sei quando levar a parada a sério... na maioria das vezes.
A gente seguiu conversando sobre um monte de coisa aleatória, mas na real, tudo o que me vinha à cabeça era o quanto a vida estava começando a ficar interessante. Santorini, Suíça, casamentos... parecia o início de uma nova aventura tanto pra Marcos e Melissa quanto pra mim e Anne. E, sendo sincero, eu mal podia esperar pra ver o que ia rolar a seguir.
Depois de deixar o Marcos em casa, fui direto pra empresa buscar a Anne. O caminho todo, meu coração já batia mais rápido, só de saber que a veria. Quando a vi ali, esperando, quase perdi o fôlego. Ela estava impecável, como sempre: calça de alfaiataria branca, cinto nude, um cropped branco discreto e um blazer rosa bebê que parecia ter sido feito pra ela. A mulher dos meus sonhos. Só de pensar no nome dela, meu coração disparava.
Ela entrou no carro e, antes de eu conseguir me controlar, já estava me inclinando para lhe dar um beijo na testa, mesmo que o que eu queria de verdade era sentir seus lábios nos meus.
— Boa tarde, amor — falei, tentando disfarçar o nervosismo que só ela conseguia despertar em mim.
Ela sorriu, aquele sorriso que sempre me desarmava.
— Boa tarde, meu amor — respondeu com uma voz doce, que fazia tudo ao redor parecer parar. — E esse machucado, Isaque? — perguntou, preocupada, enquanto passava a mão delicadamente no roxo que ainda marcava meu rosto.
— Já não dói mais — falei, tentando tranquilizá-la. — A dor da mentira foi muito pior.
Ela suspirou, seus olhos refletindo uma preocupação genuína, mas também uma serenidade que sempre me acalmava.
— Mas Deus nos revelou a verdade — disse, com aquele tom acolhedor que só ela tinha.
Eu sorri, sentindo a paz tomar conta de mim.
— Louvado seja Deus por isso — respondi, grato por tê-la ao meu lado, por termos passado por tudo aquilo juntos.
Naquele momento, enquanto dirigíamos para a casa dos meus pais, eu soube que não importava o que viesse, desde que ela estivesse comigo, eu enfrentaria qualquer coisa.
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