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Capítulo 61 | O Peso da Verdade

Isaque Campbell

Saímos do carro e fomos até o prédio de Dr. Henrique. Gabriela, de alguma forma, tinha a senha e liberou o acesso da entrada depois de muita insistência. Eu estava consumido por uma raiva que não conseguia controlar, mas a verdade era que não era só Henrique que me causava repulsa. Gabriela, ao meu lado, com aquela expressão de culpa que tentava esconder, só fazia o peso no meu peito aumentar. Sim, ela estava grávida, e isso complicava as coisas, mas não apagava o que aconteceu. Não foi traição, mas a mentira dos dois, o jogo sujo, a falsificação... Nada disso deixava minha cabeça funcionar direito. Eu precisava confrontar os dois, juntos, e dar um fim nisso.

Gabriela tocou a campainha do apartamento, hesitante, como se esperasse que eu desistisse. Seus olhos imploravam por compreensão, mas a única coisa que eu conseguia sentir por ela era decepção. Quando Henrique abriu a porta, com aquele ar confiante e calmo que me irritou da primeira vez que nos vimos, qualquer controle que eu tinha foi por água abaixo.

— Então você descobriu, né? — disse ele, com um meio sorriso, sem qualquer arrependimento. Aquilo foi a faísca que faltava. Senti meu sangue ferver. Aquelas palavras, a forma como ele dizia... Minha mão fechou-se num punho antes que eu percebesse, e quando me dei conta, já tinha avançado sobre ele. O primeiro soco foi direto no queixo. Senti o impacto reverberar pelo meu braço, mas não me importei. Henrique cambaleou para trás, segurando o rosto.

Ele me olhou, e no momento seguinte, reagiu. Antes que eu pudesse prever, ele se lançou para cima de mim, me empurrando com força contra a parede do corredor. O choque me fez soltar um grunhido, mas isso só aumentou minha fúria. O soco dele veio rápido, atingindo meu estômago, me tirando o fôlego por um segundo. Mas eu não ia parar.

Avancei de novo, dessa vez com mais força. Henrique tentou se defender, mas eu acertei o ombro dele, o empurrando para o lado, e depois outro soco no rosto, fazendo-o bater na porta atrás dele. A raiva explodia dentro de mim como um vulcão. Cada golpe era uma descarga, um acerto de contas com a mentira.

Henrique cambaleou para trás, claramente surpreso, mas ainda sustentando aquela postura arrogante. Minha respiração estava pesada, o ódio fervia nas veias, enquanto Gabriela, apavorada, se jogava entre nós.

— Para, Isaque! Pelo amor de Deus, para! — ela gritava, as mãos instintivamente protegendo a barriga. Os olhos dela estavam cheios de lágrimas, mas, naquele momento, eu não me importava.

— Você falsificou o teste! Você destruiu tudo! — minha voz saiu como um grito, enquanto eu encarava Henrique com o punho ainda cerrado e maxilar travado. — Não quer assumir a criança para não atrapalhar a carreira, mas você mesmo destruiu sua carreira, infeliz!

Henrique respirava com dificuldade, mas ainda tinha aquela maldita expressão de desprezo no rosto. Ele limpou o sangue que escorria do canto da boca e deu um passo à frente, seus olhos queimando de ódio.

— Você acha que pode resolver tudo assim? Na base da força? Você é patético, Isaque.

Eu mal ouvi. Minha mente estava dominada pela raiva, pelos socos trocados, pelo caos do momento. Henrique me acertou de novo, dessa vez no lado do rosto. Senti o gosto metálico de sangue na boca, mas não me importei. A dor física era nada comparada à dor da mentira.

— E agora? — ele provocou, com uma calma que só aumentava minha raiva. — O que vai fazer? Me denunciar? Ir pra polícia? Vai fazer o quê? Sei que já estou acabado, mas posso seguir por outro caminho, administrar a empresa da família. Então, Isaque, você não me destruiu.

A cada palavra, eu queria avançar novamente, mas algo em mim começou a desmoronar. Não era só sobre mim ou ele. Gabriela estava ali, grávida, envolvida no meio desse desastre. A realidade começou a se impor, sufocante. A ira me dominava, mas algo dentro de mim dizia que eu precisava parar.

Meu punho ainda estava no ar, mas o peso daquela luta interna começou a me fazer vacilar.

— Vocês me fizeram de idiota! — gritei, apontando para Henrique. — Você, um cara com diploma, um profissional, falsificou o teste! Como consegue dormir depois disso?

— Muito mais fácil do que você imagina — respondeu ele, sarcástico, o sorriso ainda no rosto, o que fez meu sangue ferver ainda mais.

— Não tem medo de perder a licença, Henrique? Porque é isso que vai acontecer.

Gabriela, chorando, segurou meu braço com força.

— Isaque, vamos embora, por favor... — ela suplicou, a voz baixa, puxando-me de volta à realidade.

Foi aí que a ficha caiu. Olhei para Henrique, ainda me provocando, e vi a futilidade de tudo aquilo. A raiva, o ódio, nada daquilo me traria paz. Eu estava longe de ser quem eu deveria ser, agindo pela carne, cedendo à raiva, fazendo exatamente o oposto do que o Espírito Santo aprovaria. Suspirei, abaixando lentamente o punho, sentindo o cansaço e o peso daquela batalha.

Eu sabia que precisava pedir perdão a Deus por ter sido vencido pela ira, e lembrar-me disso me fez recuar.

Henrique riu, mesmo com a boca ensanguentada, como se tudo aquilo fosse um grande jogo para ele. Gabriela, agora mais calma, olhava de um para o outro, sem saber o que fazer.

— Eu vou, mas você fica aqui — disse, me afastando dos dois.

Saí do apartamento, o som dos meus passos ecoando pelo corredor vazio. A adrenalina ainda corria nas minhas veias, mas à medida que eu me afastava de Henrique e Gabriela, uma clareza fria começou a se instalar. Eles não tinham apenas me enganado. Henrique havia cruzado uma linha legal e moral. Ele, como biomédico, falsificou um teste de DNA — isso era crime, e eu sabia que não poderia deixar isso passar.

Parei no meio do corredor, respirando fundo, tentando conter a raiva que ainda pulsava dentro de mim. Sabia que a justiça que eu queria não viria com mais socos ou gritos. Peguei o celular no bolso e disquei o número da polícia, antes que o impulso de voltar lá me dominasse.

O toque do telefone parecia interminável. Flashes das últimas horas passavam pela minha cabeça: o rosto de Gabriela, a calma repugnante de Henrique, e acima de tudo, o peso da verdade que eu agora carregava. Henrique tinha manipulado vidas.

— Polícia, qual sua emergência?

A voz do atendente me puxou de volta ao presente.

— Eu quero denunciar um crime — falei, tentando manter a voz firme. — Um biomédico falsificou um teste de DNA. Eu tenho as provas.

O atendente fez uma pausa, talvez processando a gravidade da situação.

— Pode informar o nome e endereço? — ele perguntou.

— Isaque. O nome dele é Henrique. Ele falsificou o teste que ele mesmo fez — eu dei o endereço e outros detalhes enquanto falava, e senti um peso saindo de mim. Não era só sobre mim, ou sobre Gabriela, mas sobre o crime que Henrique cometeu.

— Vamos abrir uma investigação. Você fez bem em denunciar — disse o atendente.

Desliguei, respirando fundo. A raiva ainda estava ali, mas agora havia algo mais: a certeza de que, finalmente, a verdade veio à tona. Eu sabia que o caminho seria longo, haveria inquéritos, depoimentos, mas Henrique pagaria por isso.

Quando saí do prédio, ouvi os passos apressados de Gabriela atrás de mim.

— Isaque, espera! — ela gritou, e eu parei perto do carro.

— O que foi agora? — perguntei, irritado, virando-me para encará-la.

— Posso ir com você? — ela implorou. — Henrique não vai me levar e eu não quero pegar um Uber, grávida, a essa hora da noite...

Por um momento, quis dizer não. Quis deixar ela com os próprios problemas. Mas algo dentro de mim me impediu.

— Entra no carro — respondi, exausto com tudo aquilo.

Enquanto o motor roncava sob o capô, minha mente vagava entre o passado recente e o presente. Gabriela, ao meu lado, estava em silêncio, com os olhos perdidos na janela. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas, naquele momento, meu coração estava anestesiado. Tudo o que eu queria era distância.

À medida que avançávamos pela avenida, meu olhar se prendeu a uma cena à margem da calçada: homens, mulheres, até crianças, sentados sobre pedaços de papelão. Todos com os rostos marcados pelo cansaço e pelo frio. Eles se abraçavam, na tentativa de se proteger do vento cortante.

— Por que você não leva essa comida para eles? — soltei, quebrando o silêncio que dominava o carro. Gabriela piscou, surpresa, enquanto enxugava as lágrimas.

— O quê? Que comida? Que pessoas? — Ela olhou ao redor, confusa.

— A comida que eu trouxe do Ravello. Para aquelas pessoas ali, ó — apontei para fora, em direção ao grupo à beira da praça.

Gabriela olhou para eles e logo voltou os olhos para mim, desconfiada.

— Isaque... Elas podem ser perigosas. Você quer mesmo mandar uma mulher grávida fazer isso?

Eu apertei o volante com força, tentando controlar a frustração que me queimava por dentro.

— Talvez seja Deus te testando, Gabriela. Olha para eles. Estão com fome, estão com frio. Tem uma manta no banco de trás e a comida. Vai e entrega pra eles. Quem sabe assim você se deixa tocar por algo maior.

Ela franziu a testa, insegura. Seus olhos iam e vinham, hesitantes, entre o grupo e o banco de trás.

— Por que não vai você? — insistiu. — Você é homem, saberia lidar melhor com eles.

— Porque é você quem precisa disso, Gabriela. Quebrantar seu espírito, sua alma. Vai lá, entrega a comida, a manta. E se quiser falar de Deus, essa é a hora.

Sem esperar uma resposta, estiquei o braço para pegar as marmitas e a manta que já estava no carro há alguns dias. Coloquei tudo em suas mãos, enquanto ela continuava a me encarar, ainda incerta.

— Não quer vir comigo? — pediu, a voz baixa.

Eu desviei o olhar, fixando-o no grupo à distância.

— Deus vai contigo.

Ela respirou fundo, saiu do carro e caminhou, insegura, até aquelas pessoas. Observei cada passo dela, atento, pronto para agir caso algo acontecesse. Gabriela se abaixou, falou com eles, e logo entregou as marmitas e a manta. Vi sorrisos tímidos se formarem em meio ao cansaço e alguns agradecimentos que pareciam sinceros. Ela voltou ao carro com os olhos marejados, abraçando-se para se proteger do frio.

— Isaque... — sua voz trêmula me trouxe de volta ao momento. Ela se virou, me encarando. — Me perdoa. Eu... eu não sabia que isso tudo chegaria a esse ponto.

Minhas mãos estavam firmes no volante, mas minha mente estava tomada por uma mistura de raiva e frustração.

— Claro que sabia, Gabriela. Você planejou tudo minuciosamente. Achou que eu era idiota, que me prenderia a você por causa disso. Mas cometeu um crime.

Continuei a dirigir, sem olhar para ela, sentindo o peso das palavras que se seguiam.

— Sei que não posso te demitir por causa da gravidez, mas você vai ser transferida para outro setor em outro andar. Longe de mim e de todos os meus amigos.

— Não! — a voz dela falhou, misturando pânico e súplica. — Isaque, por favor, eu não posso deixar o setor financeiro! É o meu trabalho!

— Devia ter pensado nisso antes de agir da maneira que agiu — respondi, minha voz cortante.

O silêncio entre nós era sufocante enquanto o carro seguia em direção à casa dela. Quando finalmente parei na frente da sua residência, esperei que ela descesse, mas Gabriela permaneceu no banco ao meu lado, imóvel.

— Por favor, Isaque... me perdoa. Eu não quero que Deus castigue meu filho por causa dos meus erros. Sei que você voltou para a fé, pode interceder por mim... Pelo meu filho. Só... me dê o seu perdão — sua voz se quebrou enquanto ela implorava, os olhos brilhando com uma mistura de culpa e desespero.

Meu olhar estava fixo na rua à frente, o cotovelo apoiado na janela, meus dedos alisando a barba. As palavras de Anne me invadiram a mente: “Setenta vezes sete”. Lembrei do conselho que eu mesmo havia dado a ela. Como eu poderia ser tão hipócrita e não perdoar?

Suspirei fundo, sentindo o peso do momento.

— Eu te perdoo, Gabriela... mas fique longe de mim — finalmente respondi, meus olhos encontrando os dela por um breve segundo.

Ela soltou um sorriso fraco, um sorriso sem vida, e então desceu do carro em silêncio.

Fechei os olhos e respirei fundo, deixando a tensão se dissipar, pelo menos em parte. Encostei a cabeça no banco e orei baixinho:

“Obrigado, Senhor, por me mostrar a verdade, por me guiar quando tudo parecia confuso. Meu coração está cheio de gratidão por não teres permitido que eu fosse enganado. Eu perdoei Gabriela, e peço justiça, mas, acima de tudo, que essa criança não sofra pelos erros dela. Que o Senhor conceda a esse bebê uma vida de redenção, independente do que aconteça com Gabriela.

Peço perdão, Senhor, por ter cedido à carne naquela briga horrível com Henrique. Não deveria ter levantado minhas mãos contra ele e partir pra agressão, mas fui tomado por uma raiva que há muito carregava. Sei que errei, e isso pesa em minha alma. Tu conheces minhas fraquezas, e cheguei ao meu limite. Te peço, de todo o coração, que me perdoe, que apague essa culpa, e que me ajude a viver em paz, sem deixar que a ira me controle novamente. Amém.”

Abri os olhos e, por um momento, o peso parecia mais leve. Eu tinha feito minha parte. O resto estava nas mãos de Deus.

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