Capítulo 38 | Entre o Abismo e a Vida
Isaque Campbell
Eu estava em um deserto, completamente sem vida. À minha frente havia uma grande luz, de tal maneira que eu precisava tapar os olhos por ser tão forte. Havia um rio cristalino e puro que irradiava vida e tranquilidade. Mais à frente, havia uma árvore bem verde. Mais à diante, havia uma mesa farta e um banquete. Quando olhava para os pães em cima da grande mesa, o rio se agitava e uma voz vinha por ele, dizendo: “Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome; aquele que crê em mim nunca terá sede”. Depois, olhei para uma jarra com água que estava perto dos pães e, novamente, o rio se agitou e uma voz repetiu: “Quem beber desta água terá sede outra vez, mas quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Ao contrário, a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna”.
Olhei para trás, havia grandes trevas, e brasas de fogo queimavam o chão. Tremi de medo quando o fogo, a cada segundo, aumentava. Era horrível, fazendo-me arrepiar e eu me senti um covarde por estar tão assombrado.
Arregalei os olhos quando uma chama diferente, mais intensa, acendeu entre a fornalha. Uma voz terrível saiu dela, entoando:
— Sabe por que sua ex-namorada lhe traiu?
— Não — respondi amedrontado, sentindo o meu coração pulsar mais forte.
— Porque você não merece ser amado.
Outra chama mais forte ainda, perguntou:
— Sabe por que seu avô faleceu?
— Não — o ar já estava sumindo de dentro de mim.
Afrouxei a gola da camisa na tentativa frustrada de respirar melhor, visto que havia muita fumaça e o medo tirava as minhas forças.
— Porque você merece sentir o gosto da dor e do luto.
Foi como se estivesse enfiado uma estaca em meu peito, e eu senti as lágrimas escorrendo pelo meu rosto.
Covarde! Fraco!
— Sabe por que seu pai lhe abandonou? — uma outra chama três vezes mais forte se abrasou.
— Não — respondi quase que um sussurro.
— Porque você foi um erro.
— Sabe por que sua mãe sofreu? — acendeu-se outra chama sete vezes mais intensa.
— Não — nesse momento, minha voz já estava completamente falha, sem fôlego e recuada.
— Porque ela lhe deu à luz.
Caí de joelhos, em meio ao choro, me sentindo o pior ser humano do mundo. Aquelas palavras, por mais malditas e atormentadoras que fosse, me fizeram sentir um peso no coração e uma obscuridade dentro de mim.
— Você é uma decepção — a voz estrondosa vinha de dentro da fornalha. — É mais benéfico viver nesta vida degradante, desfrutando dos prazeres da terra, do que se render ao Todo-poderoso e acreditar em uma falsa santidade. Analise o que você tem, Isaque. Você era pobre e, atualmente, é o herdeiro de uma empresa multinacional. Você começou de baixo e, atualmente, está alcançando o topo da hierarquia. Você pode ter a mulher que deseja ao seu dispor. Você pode exibir a sua beleza e, em um piscar de olhos, elas lhe darão o prazer que deseja. Não seja um idiota correndo atrás de crenças falsas. Tenha cuidado com as vozes vindas do Alto, nem mesmo aquelas que tentam manipular-lhe. Afaste-se daquela mulher que você acredita ser uma promessa para a sua vida. Na verdade, ela não passará de uma ilusão. Se envolver-se com ela, ela lhe ferirá sete vezes mais do que sua ex-namorada o feriu. Você não nasceu para ter companhia, mas sim para viver para os prazeres.
A chama que dela saiu a voz, apagou-se. Olhei para trás, para o lugar que transmitia paz, e levantei-me do chão. Vi algumas pessoas ajoelhadas e com braços estendidos em minha direção, intercedendo por mim. Olhando mais ao lado dessas pessoas, meus olhos brilharam ao ver uma mulher com um vestido branco e uma bela aliança de ouro puro em seu dedo anelar esquerdo. Seus olhos azuis eram tão brilhantes quanto o rio cristalino atrás dela. Ao olhar-lhe, o peso do meu coração diminuiu, e as lágrimas cessaram. Um sorriso apareceu em meu rosto e esqueci-me completamente da fornalha ardente atrás de mim.
— Isaque, não ouça a voz do oponente. Ele está te enganando para tirá-lo das bênçãos do nosso Pai. Veja! — apontou para o cenário que estava atrás dela. — Há vida aqui! Há esperança, há reencontro, e o melhor! Existe perdão!
As palavras ditas me abriram os olhos que, por um instante, estavam fechados. Comecei a caminhar em direção ao outro lado. Contudo, a cada passo que eu dava para frente, dois passos eu dava para trás. Eu estava preso no lado escuro.
Comecei a me desesperar, até que um buraco em chamas se formou à minha frente, bloqueando completamente a minha passagem para a vida.
— Oh, Todo-poderoso! — bradei em alta voz, silenciando tudo ao meu redor. — Se me queres, por que formastes um obstáculo à minha frente? Se vou para trás, serei queimado. Se vou para frente, morrerei no abismo. O que queres de mim? Queres me iludir novamente? Mostra-me a vida e me impede de vivê-la? Pois, mais uma vez me decepcionaste. Como queres que eu confie em Ti?
Nesse instante, tudo tornou-se um completo silêncio. As chamas cessaram e o chão tremeu. Os que intercediam por mim taparam seus rostos em reverência. Anne, que antes estava em pé, prostrou-se ao chão, adorando.
— Filho meu! — uma voz como trovão ressoou por todo o lugar, fazendo-me estremecer. Prostrei-me com o rosto no chão para ouvir-lhe. — O que é a criatura para questionar o Criador? Não percebes que seu interesse de vir para o lado de cá é somente por causa dessa mulher que estava falando contigo agora? Conheço o seu coração! Você de fato me conheceu, mas me abandonou porque não fiz a sua vontade, quando, na verdade, é a minha vontade que deve prevalecer por sobre todas as coisas, porque Eu Sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim. Acaso conheces o seu amanhã? Tens o conhecimento de tudo na palma de sua mão? Porém, o meu propósito para a sua vida permanece firme, e irei concretizá-lo, porque você é meu, e Eu jamais o abandonarei.
— O que queres que eu faça? Não quero aceitar as palavras malditas do inferno. Eu quero a Vida, eu escolho a Vida! — ainda prostrado, sem coragem de olhar para cima, me sentindo impuro e fraco, indígno de passar para o outro lado.
— Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida! — nesse instante, o trovão tornou-se como uma brisa suave, tirando todo o meu medo, e colocando paz em meu coração. — Aceite-me como seu único e suficiente Salvador, e terás a Vida Eterna! Eis que estou à porta e bato, se você abrir, ceará comigo, e jamais terá fome, jamais terá sede.
Levantei-me depressa com a leveza do meu coração. Fui adiante, esquecendo-me do buraco que havia à minha frente e escorregando nele. Mas, antes de cair, senti uma mão poderosa me segurando e me colocando em terra firme. Um sopro suave apagou todo o fogo e, com apenas uma palavra, o buraco fechou-se. O deserto tornou-se verdejante, como se a vida estivesse sendo restaurada, trazendo luz àquele cenário que antes parecia morte.
— “Eu sou a porta; quem entra por mim será salvo. Entrará e sairá, e encontrará pastagem. O ladrão vem apenas para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham plenamente. Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas”.
Regozijei-me com Suas palavras e andei em direção ao banquete, com o coração restaurado e a alegria instalada em minha alma.
— Eu te amo, filho! Na sua dor, Eu estive com você. Você não é um erro nem acaso. Eu o escolhi desde antes de ser gerado no ventre de sua mãe, e o farei cooperador do meu evangelho.
Olhei para o dedo anelar esquerdo e vi o mesmo anel de ouro puro que Anne usava. Sorri à sua procura, mas me lembrei de que havia algo mais importante naquele momento: voltar para Cristo, que estava esperando-me de braços abertos.
Dei um passo à frente, ajoelhei-me e proferi:
— Eu aceito!
Minha voz audível, já na realidade, me fez despertar do sonho e eu percebi que "aceitei" em voz alta.
Abri os olhos devagar e cocei, percebendo que tudo não passava de um sonho. Sentei-me no sofá, passando as mãos pelos cabelos com os cotovelos apoiados sobre os joelhos, e refleti sobre tudo, tentando me lembrar da última vez que algo semelhante aconteceu comigo. Mas percebi que nunca tive um sonho desse tipo, nem mesmo algo tão intenso.
Olhei para frente e admirei Anne dormindo em outro sofá. Na noite anterior, ela dormiu em meu peito e a deitei no sofá retrátil, para ficar mais confortável. Além disso, a cobri com uma manta de lã para a aquecer. Deitei-me em um sofá mais estreito e acabei adormecendo, enfrentando um sonho estranho que não saía da minha mente.
Levantei-me do sofá, percebendo o meu estado de cansaço, fazendo o possível para não acordá-la. Observei as horas pelo celular que estava em meu bolso e percebi que já se aproximavam das oito horas. Anne estava dormindo como um anjo, mas não quis despertar o seu sono. Dessa forma, tomei a decisão de não trabalharmos hoje.
Observá-la dormindo aquecia o meu coração, fazendo-o pulsar com mais intensidade. Seus cabelos bagunçados caindo sobre o seu rosto me provocaram risos. Delicadamente, tirei as mechas que cobriam sua linda face e coloquei-as para trás. Eu me sentia um bobo apaixonado observando-a e sorrindo ao mesmo tempo, até que me dei conta disso e fechei meu semblante, saindo do lugar.
Fui ao banheiro lavar o rosto e escovar os dentes. Após o sonho, percebi que não estava em um estado completamente normal. Todas as palavras ditas pelo Maligno, Anne e Deus ficaram gravadas na minha mente, o que me deixou atordoado. Ter dito: "Eu aceito!", me deixou confuso.
Eu realmente aceito? — pendi a cabeça para o lado, olhando-me no espelho, pensando nisso.
Voltei para a sala e percebi que Anne não estava mais deitada no sofá. Franzi o cenho, a procurando pela casa, mas não a vi. Fiquei preocupado em ela ter ido embora sem se despedir. Pensei em procurá-la no andar superior, mas, quando eu estava me aproximando da escada, Anne apareceu no primeiro degrau de cima para baixo com sua roupa social da empresa e cabelos molhados, aumentando ainda mais a minha ansiedade ao vê-la.
— Isaque? — proferiu em tom de pergunta, mas percebi que ela estava surpresa em me ver... Talvez.
Ela desceu os degraus e não pude tirar os meus olhos dela. Meu coração batia forte e um frio tomou conta da minha barriga ao olhar para a sua mão esquerda e lembrar-me da aliança de casamento que ela usava no sonho, que, coincidentemente, eu também usava.
— Bom dia — disse, chegando ao último degrau, ficando próxima a mim.
Minha boca curvou-se em um sorriso ao olhar em seu par de olhos azuis que brilhavam como o amanhecer. Cada vez que eu a admirava, mais bela e agradável aos meus olhos, ela se tornava. Eu estava perdidamente apaixonado por ela e não conseguia esconder.
— Bom... — pigarreei com o punho fechado na boca. — bom dia.
— Está diferente — ela estudou o meu rosto, com o cenho franzido.
— Como assim diferente? — segui seu olhar tentando lhe entender, mas falhei. Não imaginava sobre o que ela estava falando.
— Seu semblante... Deixa pra lá — deu de ombros.
Será que é por causa do sonho?
Não posso me fazer de tolo! Quando a pessoa se entrega a Deus, sei que seu rosto muda refletindo o brilho de Cristo. Não posso negar esse fato, já vi acontecendo várias vezes, inclusive comigo quando aceitei a Jesus. Mas eu não me entreguei a Deus. Foi apenas um sonho!
— Não vamos para a empresa, Isaque? — ela olhou as horas pelo smartwatch no pulso. — Estamos muito atrasados! — pegou a bolsa em cima do sofá, apressando-se.
— Calma — soltei um sorriso abafado. — Não precisamos trabalhar hoje.
— Como não precisamos? Hoje é um dia norm... — ela bateu com a mão na testa. — esqueci que estou com Isaque Campbell — revirou os olhos. — Ou seja, Sr. Campbell — franziu os lábios. — Mas não quero que pense que, só porque estou aqui com você, vou me aproveitar para faltar ao trabalho. Então, se ainda der tempo, eu acho melhor eu ir.
— Já falei que sou funcionário igual a você — proferi. Ela bufou. — Mas também gosto de usufruir da minha vantagem de ir para a empresa quando eu quiser. Você pode trabalhar de casa, assim como eu — dei o meu melhor sorriso travesso, vendo-a corar.
— Depois não diga que estou mal acostumada — ela sorriu, indo em direção à porta.
— No caminho a gente toma café, não quero arriscar ter que lidar com uma mulher com fome — peguei minha carteira e o controle do carro, seguindo-a até à porta.
A saída de casa com a carteira na mão e Anne ao meu lado mexendo no celular me fez sentir-me um homem casado. Restavam apenas as crianças correndo até o carro na ansiedade de irmos passear.
Que pensamento idiota, Isaque. Recomponha-se! Foi apenas um sonho, não significa que vocês realmente tenham uma aliança de ouro.
Abri a porta para ela, como de costume, e em seguida entrei no carro, dando partida.
Estávamos em silêncio até que, antes de seguirmos viagem, em meio à paisagem verde e pastosa, com algumas casas de campo, fomos interrompidos por um rebanho de ovelhas que atravessavam de um lado para o outro, acompanhados por um senhor de cabelos brancos.
— Olha só, Isaque! — Anne exclamou admirando as ovelhas, com um sorriso no rosto.
— O quê? — ergui as sobrancelhas.
— Lembrei-me do que Jesus disse em Lucas 15:4: “Qual de vocês que, possuindo cem ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no campo e vai atrás da ovelha perdida, até encontrá-la?”.
Fiquei olhando as ovelhas sob os óculos escuros, com o cotovelo apoiado na janela e esfregando a barba. Senti um frio na barriga ao recordar que também sonhei com Jesus falando sobre as ovelhas.
Certo, isso está indo longe demais.
Respirei fundo e procurei uma música para colocar na multimídia do carro, mas, antes disso, Anne demonstrou-se animada e pediu para colocar. Já tinha consciência de que seria mais uma das suas playlists gospel.
Enquanto ela procurava a música, segui o caminho após as ovelhas nos deixarem partir. O dia estava com sol entre as nuvens, mas continuava agradável. Fiquei refletindo mais uma vez sobre o sonho, em silêncio, tentando entender o porquê de eu ter dito "Eu aceito!" em voz alta, sendo que eu não aceitei coisa alguma.
De repente, a minha atenção foi captada pela letra da música escolhida por Anne, como se ela soubesse exatamente o sonho que tive e a escolheu para me atingir. Se essa ligação entre Deus e ela foi para despertar o meu coração, Ele conseguiu. Eu já estava com os olhos cheios de lágrimas, recordando-me de quando eu tinha uma profunda sede pelo Messias.
Junto ao poço estava eu
Quando um homem judeu
Viu a sede que havia em mim
Sem me ouvir, conheceu
E me ofereceu uma água que jorra sem fim
Dá-me de beber, pois tenho sede
Não quero mais buscar em outras fontes
Não precisarei aqui voltar pra minha sede saciar
Uma vez que eu já ouvi Teu falar
Tu és por quem a minh'alma esperou
A fonte da vida que me encontrou
És o dom de Deus, o Messias
O meu Salvador
Quero beber do Teu rio, Senhor
Sacia a minha sede, lava o meu interior
Eu quero fluir em Tuas águas
Eu quero beber da Tua fonte
Fonte de águas vivas.
Sim, eu tenho sede!
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