Capítulo 07 | Cerejinha
Anne Green
Franzi a testa ao ouvir aquela voz tão familiar. Virei o rosto para confirmar, e lá estava ele, contornando a mesa com passos decididos. O rapaz puxou a cadeira e se sentou à minha frente, sem desviar os olhos. Quando finalmente nos encaramos, vi seus olhos estreitarem em reconhecimento.
— Anne?! — a surpresa em sua voz era inconfundível.
— Daniel?! — não pude esconder meu espanto.
Daniel e eu estudamos na mesma turma da faculdade. Não éramos exatamente próximos, mas compartilhamos alguns trabalhos em grupo. Nosso reencontro, no entanto, parecia pegar todos à nossa volta de surpresa, menos Isaque, que permanecia sério e calado.
— Vocês se conhecem? — Gabi, com um sorriso largo e curioso, pareceu mais aliviada do que surpresa. Talvez acreditasse que minha história com Daniel significasse que eu não representava ameaça alguma ao seu território com Isaque.
— Estudamos juntos na faculdade — Daniel explicou casualmente.
O ambiente parecia ter sido momentaneamente congelado, enquanto todos aguardavam alguma explicação ou detalhes. Isaque, no entanto, não disse uma palavra, apenas mantinha o olhar fixo, os ombros tensos.
— Lembra daquele congresso da igreja que a gente foi juntos? — Daniel perguntou de repente, com um brilho nos olhos, claramente animado com a memória.
— Claro! — exclamei, entrando na mesma sintonia. — Mas não frequento mais aquela igreja.
— Ah, é? Onde está congregando agora?
— Na igreja Aliança com Deus, perto do Shopping Central.
— Você está brincando! — Marcos, que até então estava apenas observando, interrompeu com uma expressão surpresa. Ele lançou um olhar rápido para mim e depois para Isaque, como se esperasse alguma reação dele.
Percebi que Isaque ficou visivelmente desconfortável, o que apenas aumentou a tensão ao redor da mesa.
— O que foi? — Sara perguntou, sem conseguir disfarçar a curiosidade.
— Ela frequenta a mesma igreja que Isaque — Marcos soltou a frase como uma bomba, sem nem tentar ser discreto.
— Que os meus pais — Isaque corrigiu, sua voz firme e fria. — Já não vou lá há algum tempo.
Daniel, aparentemente tentando aliviar o clima, virou-se para mim e perguntou:
— E qual o seu ministério, Anne?
— Sou líder dos jovens e também ministro a Palavra.
— Uau! — Marcos parecia impressionado. — E toca na banda da igreja também?
— Ainda não — ri, um pouco sem graça. — Mas estou aprendendo a tocar violão e guitarra.
Notei que, enquanto os outros estavam envolvidos na conversa, Isaque e Gabi mantinham-se à margem. Gabi, com o rosto inexpressivo, parecia mais interessada em observar do que participar. Isaque, por sua vez, mantinha aquele ar de mistério, impenetrável.
— Que incrível, Anne! — Sara exclamou, genuinamente entusiasmada. — Inclusive, Isaque toca guitarra. Ele poderia te dar umas dicas, não é, Isaque?
O silêncio que se seguiu foi cortante. Isaque a encarou com uma expressão dura, e a voz firme que veio a seguir deixou claro seu descontentamento.
— Sara. — Foi só isso, mas o suficiente para Sara encolher os ombros e corar de leve.
Eu tentei disfarçar o constrangimento, mas era difícil ignorar o peso da tensão no ar. E Gabi continuava calada, mas seus olhos entregavam algo mais profundo — ciúme, talvez.
— Ah, que isso, gente! — Sara tentou quebrar o gelo. — Marcos, Daniel e Melissa também são cristãos. Isaque é um pouco desviado, e a Gabi só vai pra igreja porque a Mel a obriga. Afinal, são irmãs, né?
O comentário, dito com um sorriso, provocou risadas à mesa. Todos riram, exceto Isaque, cujo olhar duro se cravou em Sara.
— Desviado? — ele perguntou, numa voz baixa e séria, lançando um olhar afiado para ela.
— E você é o quê, querido? Se desviou, é desviado, ponto final — Sara respondeu sem medo, cruzando os braços desafiadoramente.
O olhar que Isaque lançou a Sara poderia cortar vidro, mas ela parecia imune à tensão.
— E você, Sara? Fala deles, mas esquece de contar que você também anda meio perdida — Daniel alfinetou, levantando seu copo d'água, provocando risos ainda mais altos.
Enquanto esperávamos o almoço, senti um leve desconforto. Ninguém tinha perguntado o que eu gostaria de comer, mas, considerando que estávamos em um restaurante francês, eu sabia que provavelmente me agradaria. Afinal, eu adorava comida francesa.
— Não estou perdida, Dan — Sara respondeu, quase defensiva. — Estou voltando aos poucos.
— Você é cristã? — perguntei, interessada.
— Cresci em um lar cristão, mas me afastei. Agora estou tentando voltar, mas... não é tão fácil.
— Não é fácil porque você não larga o pecado — Marcos comentou sem rodeios. Sara assentiu, meio sem jeito.
— Moramos juntos, sabe? Não é tão simples como você acha só “parar de pecar” — fez aspas com os dedos, soltando um suspiro pesado.
— Então, casa logo! — Daniel sugeriu com a naturalidade de quem dá o conselho mais óbvio do mundo.
— O cara é louco por você. Se isso te incomoda tanto, conversa com ele e resolve logo essa situação — Isaque finalmente entrou na conversa, sua voz grave surpreendendo a todos.
— Isaque dando conselho de casamento? — Daniel zombou, piscando para ele. — Isso eu nunca imaginei!
— O que foi? Acha que eu iria defender a fornicação? — Isaque replicou, bebendo seu copo d'água com um olhar desafiador.
— E você é exemplo disso, Isaque? — Marcos cutucou, divertindo-se com a provocação.
— Faça o que eu digo, não o que eu faço — ele respondeu, com um sorriso travesso, arrancando mais algumas risadas.
— Essa é a minha filosofia também — Gabi comentou, erguendo seu copo de suco de maracujá, tentando entrar no espírito da brincadeira.
— Vocês dois se entendem bem — Daniel comentou, olhando de Isaque para Gabi, com um sorriso malicioso.
Isaque deu um leve sorriso de canto, mas logo balançou a cabeça.
— Estou feliz solteiro — ele disse, sem rodeios. Gabi lançou-lhe um olhar rápido, claramente desapontada.
— Não sei por que vocês não ficam juntos de uma vez — Sara comentou, sem perceber o peso de suas palavras. — Todo mundo sabe que vocês têm algo. Saem juntos pra festas, e quem sabe mais o quê...
Gabi ficou vermelha instantaneamente, enquanto Isaque lançou a Sara um olhar mortal.
— Temos uma novata na mesa, Sara. Não precisa expor nossas vidas assim — Gabi tentou soar firme, mas a vergonha e a raiva eram palpáveis em sua voz.
— Anne, eu gostei de você — Sara mudou de assunto abruptamente, virando-se para mim com um sorriso genuíno. — Você tem uma confiança que não passa despercebida.
— Ela é confiável, com certeza — Daniel afirmou, concordando. Apenas sorri, preferindo não comentar.
— Na verdade, Isaque precisa de uma mulher cristã, que leve ele pra igreja e faça ele enxergar as besteiras que está fazendo — comentou Marcos, seu olhar pousando sobre mim de forma significativa. — E Gabi não é essa mulher, venhamos e convenhamos.
Gabi ergueu as sobrancelhas, um misto de deboche e irritação tomando conta de sua expressão.
— Que besteiras estou fazendo, Marcos? — Isaque perguntou, com um tom levemente desafiador.
— Gente, temos uma novata aqui, comportem-se! — Gabi interveio, sua voz mais afiada do que conciliadora. — Esses assuntos não são para agora.
— Certíssima — Sara concordou, tentando aliviar o clima. — O assunto está indo longe demais.
A verdade é que Gabi tinha razão. Eu me sentia deslocada, como um peixe fora d'água, desconectada dos temas que rodavam a mesa.
— Você vai se acostumar, Anne — disse Sara com um sorriso simpático. — Marcos e Isaque parecem dois irmãos que vivem brigando e se reconciliando o tempo todo.
Eu apenas assenti em silêncio, ainda tentando entender as dinâmicas daquele grupo.
De repente, senti um leve movimento ao meu lado. Isaque se inclinou em minha direção, sua proximidade me pegando de surpresa. Sua voz grave soou baixa e íntima ao meu ouvido:
— Se você estiver desconfortável, podemos sair de fininho. Ninguém vai perceber — ele brincou, a vibração de sua voz causando um arrepio imediato.
Minhas bochechas esquentaram na hora, denunciando meu embaraço. Ele notou, claro. Um sorriso ligeiro apareceu em seus lábios antes que ele voltasse à sua postura normal, recostado na cadeira.
— Estou bem — murmurei, ainda constrangida. — Só estou tentando me integrar, mesmo me sentindo um pouco deslocada — confessei, mantendo minha voz baixa para que apenas ele ouvisse.
— Deixa comigo. — Ele pigarreou, chamando a atenção de todos ao redor da mesa. — Enquanto a comida não chega, que tal falarmos sobre as viagens mais emocionantes que já fizemos? Assim, a Anne pode se sentir mais incluída na conversa.
Todos assentiram, parecendo concordar com a proposta de Isaque. Um por um, começaram a compartilhar suas histórias. Gabi, com um ar de superioridade, descreveu sua viagem a Paris, destacando cada detalhe de suas compras glamourosas. Porém, Isaque ainda não tinha compartilhado nada.
— E você, Anne? — Daniel perguntou, com um sorriso animado. — Qual foi a sua viagem mais emocionante?
Hesitei por um momento, sentindo o olhar de todos em mim. Respirei fundo, deixando de lado a timidez.
— Bom… — fiz uma pausa, buscando as palavras. — A viagem mais emocionante que fiz foi uma viagem missionária para a África do Sul.
— Sério? Conta mais! — Marcos estava visivelmente interessado, inclinando-se para frente, ansioso por detalhes.
Olhei para Isaque antes de continuar, e notei que ele também estava me observando de forma intensa, como se quisesse captar cada nuance do que eu diria a seguir. Ele se inclinou levemente, aproximando-se de mim, atento.
Ajeitei a postura, deixando de lado o nervosismo, e comecei a contar minha história.
— Minha mãe é missionária. Hoje em dia ela serve mais na igreja, mas, até a minha adolescência, ela fazia viagens em missão, e algumas vezes eu ia com ela. Outras, ficava com meus avós ou com meu irmão mais velho, quando ele já era maior de idade — disse, sentindo uma pontada de angústia ao me lembrar de Gabriel, mas preferi não demonstrar. Não queria entrar nesse assunto.
— E por que foi emocionante, Anne? — Sara perguntou com entusiasmo, inclinando-se um pouco para frente.
— Conta o restante — Isaque insistiu, a voz grave e baixa, provocando um frio na barriga.
— Foi sobrenatural. — Sorri, enquanto a lembrança tomava forma em minha mente. — Ver aquelas crianças sorrindo quando as alimentamos, entregamos brinquedos, roupas e cestas básicas para suas famílias foi algo que jamais esquecerei. O brilho nos olhos delas... mesmo diante de tanta dificuldade, havia uma alegria genuína. E no culto, então... — meus olhos começaram a marejar. — Eles louvavam, dançavam, clamavam a Deus com todo o coração. Nunca tinha visto um povo tão sedento por Ele. Foi comovente.
Meus olhos se encheram de lágrimas, uma delas escorrendo antes que eu pudesse impedir. Passei a mão discretamente pelo rosto para enxugá-la.
— Eu me senti tão pequena diante de tudo aquilo. Percebi o quanto eu estava sendo superficial na minha busca por Deus. Mas, ao mesmo tempo, senti como se Ele estivesse me resgatando ali, naquele momento, enquanto Sua Presença inundava aquele lugar. Foi... transformador — completei, tentando conter mais lágrimas.
Todos à mesa estavam em silêncio, visivelmente tocados pela história. Até mesmo Gabi, que sempre exalava uma certa arrogância, parecia estar refletindo. Olhei para Sara, e seus olhos também brilhavam, molhados pelas lágrimas contidas. E Isaque... seu rosto sério, maxilar travado, mas havia algo em seu olhar distante, como se estivesse mergulhado em suas próprias lembranças.
— Quando voltei para casa, sabia que não era mais a mesma pessoa. Decidi viver para Deus, de corpo e alma, sem reservas — finalizei, um sorriso tímido se formando em meus lábios. — Acho que falei demais — brinquei, soltando uma leve risada.
— Você não falou demais, Anne, falou exatamente o que tinha que falar — disse Marcos, trocando um olhar com Isaque.
O garçom, com movimentos suaves e precisos, depositou os pratos sobre a mesa. O aroma das batatas gratinadas, misturado ao leve toque de ervas e queijo derretido, envolveu o ambiente, provocando uma onda de desejo em meu paladar. O cheiro era irresistível, cada vez mais difícil de ignorar.
— Por que essa reação, Mark? — Sara perguntou, intrigada.
— Você e o Isaque têm a mesma idade, certo? — Marcos comentou, sem esconder o sorriso.
— Como você sabe? — perguntei, surpresa, mas com gentileza.
Marcos hesitou por um momento, parecendo sem jeito de admitir como sabia, mas estava claro para mim que Isaque tinha contado a ele.
Enquanto todos começavam a se servir, eu hesitei. Embora estivesse faminta, ainda me sentia um pouco tímida para me entregar completamente à comida. Não queria parecer exagerada, mesmo com toda a minha paixão por culinária francesa.
— Isaque também estava lá — disse Marcos de repente, lançando uma bomba. Meu coração acelerou, e engoli em seco, torcendo para que ninguém tivesse notado minha reação.
— Você tem mania de falar o que não deve, não é? — Isaque o repreendeu com o olhar, sua voz carregada de uma irritação contida. — Eu sempre quis fazer missões. Meus tios me convidaram para ir à África, e eu aceitei. Simples assim — declarou, sem querer entrar em detalhes.
— Sua missão agora é focar na gerência, querido — Gabi disse, enrolando o macarrão no garfo, claramente tentando suavizar o clima.
— Gabi já é desconcertada e quer complicar mais ainda a vida do rapaz — Daniel brincou, arrancando algumas risadas da mesa.
— Não quero complicar a vida de ninguém. Complicada já sou eu — Gabi respondeu com um sorriso travesso.
— E coloca complicada nisso — Isaque zombou, recebendo um olhar duro de Gabi.
— Então vocês dois estiveram juntos na África do Sul e nem sabiam? — Daniel perguntou, intrigado.
— Eu realmente não sabia — respondi, ainda surpresa. — Acho que estávamos em lugares diferentes, porque com certeza me lembraria de você.
— Provavelmente — respondeu Isaque, sem dar muita importância.
— Ou talvez vocês se cruzaram, mas o tempo passou e não se reconheceram — Sara sugeriu, lançando um olhar perspicaz entre nós.
— Acredite, eu tenho boa memória — falei, tentando manter a calma enquanto Isaque me observava com uma intensidade que me deixava desconcertada.
— Eu não lembro de ter te visto — ele disse, direto.
Nossos olhares se prenderam por alguns segundos, um silêncio pesado pairando entre nós, até que, finalmente, voltamos a nos concentrar no almoço.
O assunto à mesa mudava a cada instante, e eu me esforçava para me enturmar, mas, sinceramente, o único que me fazia sentir uma espécie de “conforto” era Daniel. Mesmo assim, ele estava tão envolvido nas conversas do grupo que, em alguns momentos, parecia distante.
Minha mente vagava, pensativa sobre a revelação de que Isaque estivera no mesmo lugar que eu anos atrás, numa missão na África do Sul. Como era possível que eu não o tivesse visto? Ou, pior, será que o vi e simplesmente não o reconheci? Essa dúvida rodopiava em minha mente, inquieta, enquanto o almoço prosseguia.
Quando o garçom trouxe a sobremesa, um Crème brûlée, senti um alívio discreto, pois era uma das minhas favoritas. Saboreei cada colherada com apreço, mas, no canto dos meus olhos, notei que Isaque me observava. Ele disfarçava, desviando o olhar cada vez que eu percebia, o que apenas me deixava mais nervosa e consciente de sua presença.
Após o almoço, saímos para esperar o manobrista trazer os carros. A brisa lá fora ajudava a acalmar a tensão que crescia em mim, mas não por muito tempo.
— Daqui vou direto para uma reunião externa com Gabi, Marcos e a equipe de Negociações — Isaque falou casualmente, mas com um tom de comando. — Não vou te levar hoje porque é seu primeiro dia e não quero te sobrecarregar, mas, nas próximas, será crucial você participar.
— Se for necessário, não tem problema — me ofereci, disposta a mostrar que estava pronta para o que viesse.
— Já combinei com Sara e Daniel para te ensinarem os sistemas que você vai usar no trabalho. — Seu tom era firme, mas não rude.
— Tudo bem, então — respondi com um sorriso de aceitação.
— Até amanhã, Cerejinha. — Sua voz grave acariciou o apelido, e o impacto foi imediato. Minhas bochechas esquentaram, e senti como se meu coração fosse pular pela boca. As borboletas em meu estômago se agitaram como nunca.
Por um segundo, perdi as palavras. Como se todo o meu fôlego tivesse sido sugado pela surpresa. Mas, antes que ele se afastasse, juntei o que restava da minha coragem e perguntei, com a voz ligeiramente trêmula:
— Como assim, Cerejinha?
Ele parou, virou-se, com um sorriso travesso nos lábios, e respondeu sem pressa:
— Você acha que não percebi todas as vezes que suas bochechas ficaram vermelhas como uma cereja? — E, sem esperar resposta, piscou para mim antes de se afastar com um sorriso largo, deixando-me paralisada por um momento.
Respirei fundo, tentando recuperar a compostura. Olhei ao redor, aliviada ao perceber que ninguém havia testemunhado o pequeno momento entre nós.
Algo em mim já sabia: será impossível ignorar a presença constante de Isaque. Por mais que eu tente ocupar minha mente com o trabalho ou qualquer outra coisa, parece que ele já encontrou um espaço em mim... um espaço que, rapidamente, preciso fechar.
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