Capítulo 53 - O Abismo
5822 Palavras
É hoje.
Finalmente o dia que descobrirei se estou grávida ou não.
Sei que já deveria ter feito esse teste há muito tempo atrás, mas a falta de coragem me fez fugir disso a todo custo por medo do que eu iria descobrir... Mas isso não pode mais acontecer. Já passei por tantas coisas que me levaram ao limite, não posso ter medo disso.
E uma maneira de me "incentivar" a fazer esse teste hoje é ter marcado com Brian. Ainda penso qual será a reação dele caso o resultado seja positivo. Na verdade nem sei como irei reagir, talvez meu mundo pare por um instante... Então não devo pensar tanto como Brian reagirá.
Gostaria de poder fazer o teste em casa, mas para ajudar, acabei acordando atrasada e estou me arrumando às pressas, sem dar tanta atenção assim ao meu visual. Obvio que isso me incomoda, não gosto de fazer as coisas às pressas, ainda mais se isso envolve meu visual... Mas hoje, meu atraso não me permite muitas escolhas.
Paro em frente ao espelho e vejo meu visual. Ajeito as mangas folgadas da minha blusa de moletom preta que mantenho com o zíper aberto, ajeito minha camiseta branca por baixo da blusa, bato a ponta do meu all star igualmente preto no chão algumas vezes, e passo as mãos pelo meu jeans azul escuro. Encaro meu rosto, correndo os dedos pelo cabelo algumas vezes, mesmo desarrumado ele está até bonito.
Sem perder mais tempo, pego minhas coisas e saio às pressas de casa. Meus pais já saíram para o trabalho há bastante tempo, então a casa está bem quieta. Gostaria de tomar um café antes de sair e até comer algo, mas deixo isso para depois.
Tranco as coisas e caminho apressada rumo ao metrô. Tenho certeza que o metrô já está lotado, mas comparando em ir para a faculdade de ônibus, essa é a melhor alternativa para não me atrasar ainda mais.
Em passos apressados apalpo minha bolsa, em uma tentativa de descobrir se estou trazendo o teste comigo, e por sorte consigo sentir a caixa dentro de um dos bolsos. Eu não precisava fazer isso, afinal mal tirei essa coisa da bolsa uma vez sequer, mas a ansiedade desse momento está me deixando maluca.
Ao entrar no estacionamento do shopping e ver a estação próxima, me sinto mais confortável de pegar meu celular no bolso da calça e olhar por uma vez. Não sei o que esperava ver, se são as horas, alguma notificação de mensagem ou qualquer coisa parecida, porém fico decepcionada em não encontrar nada.
Meu Deus, estou agoniada demais. Tenho que parar com isso.
Guardo o celular outra vez e tento afastar toda essa bagunça que ocupa meus pensamentos. Respiro fundo e solto todo o ar pela boca buscando me acalmar, pensar nisso agora não vai adiantar de nada. Preciso aguentar pouco mais de uma hora para saber se respirarei aliviada ou se surtarei de vez... É pouco tempo para esperar, eu consigo.
Sei que consigo.
Só espero que Brian chegue no horário combinado. Sei que posso fazer isso sozinha, mas nesse momento, o que mais desejo é ter a companhia dele para sentir conforto... E também, um pouco mais de segurança.
Observo o professor em seu entediante monólogo sobre alguma coisa que não consigo me concentrar por mais que eu queira. Algumas vezes tenho a nítida sensação de que nem ele sente vontade de ensinar certas coisas para nós, a julgar pelo seu tom de voz entediado.
Tem professores que até conseguiram prender minha atenção nos semestres passados, seja por explicarem a aula com bem mais entusiasmo, ou então por a matéria ser realmente interessante.
Mas esse em particular se supera em fazer uma aula chata. Eu não sabia que tinha "propagação intensa de tédio" na grade curricular.
É impressionante ver como Marina consegue se manter tão interessada mesmo nessas aulas mais paradas. Não seria exagero dizer que ela é a mais interessada dentre todos.
Suspiro abaixando meu olhar para o celular, tocando a tela e vendo as horas. Falta meia hora para me encontrar com Brian, mas ainda não recebi nenhuma mensagem dele, o que só ajuda a aumentar ainda mais meu nervosismo.
Isso sem falar que não cheguei a fazer o teste, e estou ficando sem tempo. Meu estomago se revira só de pensar que preciso fazer isso, mas é preciso. Coragem Ana Clara.
Olho novamente para frente, estranhando não escutar mais a entediante voz do professor, e tenho a surpresa de não encontra-lo em nenhum lugar. Olho ao redor, mas ele não está na sala, acho que essa é a oportunidade que eu precisava para correr ao banheiro e fazer isso logo.
Pego minhas coisas e levanto, caminhando apressada para fora da sala, sabendo que falhei miseravelmente em ser discreta. Bom, isso não faz diferença nenhuma no agora.
Me encontro no corredor vazio, tudo que escuto são algumas vozes ao longe e com no máximo uma pessoa andando pelo corredor, totalmente alheia a minha presença, e mais distante consigo escutar a movimentação na rua em frente a faculdade. Aproveito e sigo apressada para o banheiro, olhando meu celular mais uma vez, já que dessa vez senti ele vibrando.
- Clara, espera. – Ouço e me viro, vendo Marina em uma corrida em minha direção.
- Aconteceu alguma coisa? – Pergunto assim que ela para perto de mim.
- Eu que pergunto isso. – Ela responde, levando as mãos a cintura.
Ergo uma sobrancelha enquanto ela me olha fixamente – Não. Por que?
- Você mal conversou hoje, não esteve prestando atenção na aula, acabou de levantar e sair andando da sala do nada, e nem desgrudou desse celular desde que chegou... – Marina encara meu celular com uma sobrancelha erguida, e então volta a me olhar. – Seja sincera, aconteceu alguma coisa Clara?
Pelo olhar de Marina, ela não vai dar o braço a torcer até que eu explique o que está acontecendo hoje. Dou um suspiro frustrado, colocando a mão na minha bolsa e puxando a pequena caixa, já levemente amassada por tanto tempo na minha bolsa – Isso aconteceu.
Ela cerra o olhar, observando da caixa para mim algumas vezes – Você ainda não fez o teste?
- Estou indo fazer agora. – Respondo já guardando novamente na bolsa para evitar que algum curioso intrometido veja – E também, marquei de encontrar o Brian hoje para contar tudo... Daqui a alguns minutos ele está chegando.
Ela acena devagar com a cabeça – Como está se sentindo em relação a isso?
- Nervosa. – Dou um meio sorriso – Não sei o que esperar.
- Vai dar tudo certo. – Ela sorri tocando meu ombro de leve – Seja lá o resultado que esse teste te mostrar, estarei aqui para o que precisar.
- Obrigada... – Sussurro abaixando o olhar, olhando para o celular e vendo que a mensagem recebida é realmente de Brian. – Eu preciso ir, antes que eu perca a coragem.
- Vai lá... – Ela diz se afastando – Nós nos falamos daqui a pouco.
Concordo com a cabeça, me viro e sigo para o banheiro sem olhar para trás, mas me sentindo bem por poder contar com o apoio da minha melhor amiga.
Entro no banheiro, que por sinal está vazio e bem quieto. Perfeito, desse jeito sei que conseguirei fazer o teste sem me sentir desconfortável.
Entro em uma das cabines e retiro o teste da mochila, o deixando sobre minha coxa, e só de olhar ele meu estomago se revira outra vez. Respiro fundo, e em uma tentativa de tentar me sentir melhor, pego o celular e olho a mensagem que recebi de Brian.
Brian: Já estou a caminho.
Brian: Talvez eu me atrase 10 minutos no máximo.
Brian: Desculpe só conseguir avisar agora.
Ana C: Tudo bem... Só vem.
Ana C: Eu estarei te esperando.
Respiro fundo outra vez, guardando o celular outra vez e voltando minha atenção ao teste. Pego a caixa e começo a ler as instruções, porém o nervosismo não me deixa concentrar e por isso preciso reler pelo menos mais duas vezes.
Nunca imaginei precisar fazer isso, e agora... Ai, melhor não ficar pensando nisso.
Quando finalmente entendo o que preciso fazer, retiro o teste e, após longos segundos o observando, tomo a coragem necessária e faço, seguindo à risca todas as instruções que praticamente decorei por ler tantas vezes.
Ao terminar, deixo o teste entre meus dedos, porém evito olhar para ele.
Bem... Preciso esperar só cinco minutos para ter o resultado... Mas por algum motivo, não consigo ter coragem para ver o resultado sozinha. Gostaria de descobrir isso quando mostrasse ao Brian. Só a ideia de ver o resultado sozinha piora muito mais o que estou sentindo agora, minha cabeça está lotada de tantos pensamentos. Estou a ponto de surtar... Por que eu tenho que complicar tanto as coisas?
Olho meu celular... Três minutos...
Como será que Brian vai reagir caso seja positivo? Ele ficará feliz? Assustado? Sem reação? O que será que ele irá me dizer? Será que dirá que não é dele como muitos caras por ai fazem?
E como será que meus amigos mais próximos irão reagir a isso? O que Marina, Letícia e Tiago me dirão caso eu descubra que estou gravida? Sei que Marina iria me daria total apoio, da mesma forma que eu daria meu apoio a ela caso estivesse no meu lugar, mas e os demais?
E meus pais? O que eles dirão se esse resultado der positivo?
E eu? Como irei me sentir se esse teste der positivo? Como irei reagir? Ainda sou bem nova, não cheguei nem nos meus 25 anos. Eu estou preparada para ter um filho? Conseguirei cuidar de um bebê e ser uma boa mãe? Conseguirei lidar com tudo e todas as mudanças?
Um minuto...
De repente me dou conta de algo. Não sei se estou enlouquecendo, mas acabo de sentir um estranho tremor. Ele é fraco, mas durou alguns segundos.
Olho de um lado ao outro repetidas vezes, assustada e sem entender o que acabou de acontecer aqui. Será que foi só impressão minha?
Um estranho ruído que não sei descrever começa e ecoa por todo o lugar, e novamente essa sensação surge, porém dessa vez não é mais uma impressão. A estrutura inteira do prédio começa a tremer com muita violência.
Apoio às mãos nas laterais da cabine tentando me manter equilibrada, porém esse tremor é tão forte que não consigo me segurar e vou ao chão, me encolhendo no chão e cobrindo a cabeça para me proteger caso algo caia.
As luzes piscam sem parar, intensificando seu brilho e apagando por repetidas vezes, o tremor se intensifica, parece até que o prédio está sendo arrastado ou alguma coisa muito parecida.
Um estrondo ensurdecedor acontece, seguido de um forte impacto vindo do chão. O baque é tão forte que perco o fôlego e o controle da minha respiração, permanecendo no chão por longos segundos, sem forças para me levantar.
Meus olhos pesam e o cansaço me atinge, minha cabeça está girando, e a dor do impacto tão repentino corre por todo meu corpo, porém o chão gelado me impede de adormecer, além de um estranho brilho que me incomoda.
Após longos segundos abro os olhos, me dando conta que o repentino brilho vem do meu colar, e isso me deixa em total alerta.
Com dificuldades, escoro o corpo na lateral da cabine e fico de pé o mais rápido que consigo, estranhando a barulheira não muito longe daqui. Corro os olhos pelo chão, mas está tão escuro que não estou conseguindo enxergar muito bem. A única coisa que encontro é minha mochila caída em frente à porta.
Alcanço minha mochila, abro a cabine e saio, porém do lado de fora as coisas não são muito melhores. Continua tudo escuro, mas por sorte consigo reconhecer meu celular caído no meio do banheiro, e sem demora o pego, já ligando a lanterna para conseguir me locomover sem esbarrar em nada.
Ilumino o chão com a luz da lanterna, ele está cheio de lixo espalhado e bem molhado, acho que vazou água de algumas das privadas ou então de alguma torneira... E em nenhum lugar encontro a caixa do teste que acabei de fazer.
São tantas coisas acontecendo de uma vez, que só agora todo o barulho do lado de fora do banheiro chamam minha atenção. Me dou conta que são vozes, muitas vozes.
E contrariando a mim mesma, decido sair e deixar o teste pra lá por enquanto. Outra hora volto aqui e procuro com mais calma, ou então faço outro teste.
Agora, quero entender o que acabou de acontecer.
Saio do banheiro e dou de cara com uma multidão de alunos indo de um lado ao outro e falando ao mesmo tempo em uma barulheira terrível. Vários deles estão com as lanternas dos celulares ligadas, o que me impede de conseguir olhar em qualquer direção por muito tempo.
Abaixo o rosto e cubro os olhos para conseguir andar sem me cegar com tantas lanternas. Como consigo avanço por entre todos esses alunos, esbarrando em muitos deles e sendo atropelada por várias outros, nunca me dei conta de como esse lugar é cheio e barulhento.
- Alguém sabe o que aconteceu?! – Escuto alguém gritando próximo de mim.
- Abram espaço! Abram espaço! Ela desmaiou aqui! – Mais um grito, resultando em uma repentina bagunça de vários alunos se empurrando não muito longe.
- Ei, fica calma! Vai ficar tudo bem! – Ouço ao passar por um grupo que conforta um rapaz, que está com as mãos na cabeça com uma expressão desesperada. Coitado, ele deve estar com um ataque de pânico.
- O celular de alguém tem sinal?! Conseguiram falar com alguém?! – Ouço um novo grito vindo de outra direção, se destacando entre as várias vozes amontoadas.
Penso em voltar para minha sala para encontrar Marina e Letícia, mas a essa altura, duvido que irei encontra-las lá... E algo que acabo de ver chamou minha atenção, e faz um calafrio subir pela minha espinha.
Avanço desesperada para as janelas, empurrando algumas das pessoas no meu caminho para longe, torcendo que eu esteja enganada. Não pode ser isso.
Não pode ser isso.
Me aproximo devagar da janela, atenta a iluminação passando pelo vidro. Minhas mãos tremem, e hesitando por medo da certeza a minha frente.
Toco o vidro frio, vendo primeiro as várias arvores tapando boa parte da visão ao redor, e erguendo meus olhos ao céu, o vejo coberto por densas nuvens avermelhadas, tão semelhantes à cor do sangue.
As palavras do lado bom da entidade me vem na memória. Lembro perfeitamente do que ele me disse naquela hora.
- Escuta... Como é o Abismo?
- Não me recordo ao certo... – Ele abraça a si mesmo e aperta com certa força, e é nesse momento entendi que fiz uma pergunta bem delicada. – Abismo... O que me vem em mente é minha última lembrança, um lugar escuro e caótico... O céu sempre coberto de nuvens cinza avermelhadas, e várias vezes a luz era algo inexistente... Por causa disso, sombras profundas sempre cobriam tudo que existia, e o cinza tingia o lugar... Existe também a mata por todos os lados, uma densa e profunda floresta sem fim.
- Era tudo assim? – Questiono agora mais séria com o tom que essa conversa está tomando.
- Pelo que consigo me lembrar, sim. Era assim por todos os lugares. – Ele suspira baixo.
Nós... Nós estamos no Abismo.
Mas... Como? Como isso é possível? Como isso foi acontecer? Como viemos parar aqui?
Será que... Foi naquela hora? Aquele tremor foi por causa disso?
Espera, se acalma Ana Clara. Ficar aflita não vai ajudar nada.
Minha atenção se vira rapidamente a uma garota ao meu lado. Ela me encara fixamente com um semblante assustado, e logo um rapaz ao lado dela faz o mesmo. Acho que deve ser por causa dos meus olhos, mas agora já nem me surpreendo mais.
Volto a olhar ao céu, só conseguindo ter mais certeza sobre estarmos no Abismo, e certa de que não terei respostas aqui, me afasto e volto a andar para o meio de toda essa gente.
Não faço ideia de como viemos parar aqui é um mistério, mas tenho o palpite de ter sido alguma coisa que nos puxou pra cá... Alguma coisa que puxou a faculdade inteira e todos os alunos, jamais pensei que algo assim seria possível.
Seria o tal Cara do Casaco de novo?
De qualquer jeito, agora sair daqui que é o mistério. Nem tenho ideia de como fazer isso.
E pra piorar... Meu colar continua brilhando fixamente.
Aproximo das escadas, onde alguns alunos se arriscam em descer no imenso breu que está o térreo. Não posso dizer que são loucos, porque estou para fazer o mesmo.
Vou me guiando pelas várias luzes dos celulares dos outros alunos e consigo descer. Aqui vários outros alunos andam de um lado ao outro, alguns dão risadas, outros andam de um lado ao outro visivelmente preocupados.
Estou me perguntando como não tem ninguém enlouquecendo aqui, quando presto atenção em um detalhe. Apesar das reações diferenciadas dos vários alunos, nenhum deles está chegando perto das saídas.
A iluminação entrando pelos portões não é normal, é a mesma tonalidade vermelha de antes, e me aproximando devagar de uma das saídas, tudo que vejo ao redor são arvores e mais arvores e uma forte ventania gélida que invade todo o lugar.
Agora entendi, por mais que estejam disfarçando, todos estão assustados.
Seguro meu colar com força tentando me sentir segura, e avanço rumo a um dos portões para olhar melhor o que pode existir a nossa volta. Se existir alguma passagem que possamos atravessar, já será um avanço... Mas só de passar os olhos por essa densa floresta me faz descartar essa ideia no mesmo instante. Sair daqui não parece ser nem um pouco seguro, mas também não podemos ficar aqui.
Um grande estalo acontece de repente e ecoa pelo lugar, diversos gritos em conjunto vem do andar superior logo após esse ruído, e de repente as luzes do prédio ligam outra vez.
De luzes acesas consigo ver mistos de espanto, confusão, e medo no rosto de várias pessoas espalhadas pelo campus. Vários andam de um lado ao outro encarando seus celulares ou tentando ligar para alguém, outros estão conversando com pessoas ao lado de forma apreensiva.
Alguns funcionários e pessoas mais velhas gesticulam freneticamente pedindo calma a todos, porém a tentativa de conter os ânimos de todos falha completamente. Difícil conseguirem, as coisas fugiram do controle no momento que chegamos aqui.
Apesar de algo me dizer que não vai dar certo, pego meu celular e dou uma rápida conferida, porém tudo que encontro é uma mensagem de Brian, e que estou sem sinal.
- Eu juro, não estou enlouquecendo! – Ouço uma garota gritando, se debatendo e apontando uma direção enquanto algumas pessoas tentam contê-la – Eu vi! Eu vi uma coisa passando ali!
Ah não, só falta dizer que já estamos atraindo as coisas desse lugar.
- Clara! – Uma pesada mão toca meu ombro, me viro no susto e vejo Tiago ofegante.
- Você está bem? – Pergunto vendo como ele está.
- Estou, é que estou indo de um lado ao outro... – Ele olha ao redor, passando ambas as mãos pelo rosto – Mas esse lugar está um caos.
- Sabe onde estão as meninas? – Questiono sem rodeios.
- Não faço ideia. – Ele se explica – Estava procurando por elas até agora, mas não tive sorte.
Uma gritaria começa próxima de nós, atraindo nossa atenção. Pela quantidade de gente na frente não consigo ver direito, mas parece ser uma briga entre muita gente.
Tiago coloca o braço na minha frente e seguimos ao lado oposto da briga – O pessoal está se descontrolando desde que aconteceu aquele tremor. Já é a terceira briga que vejo. – Ele diz olhando para trás de relance.
- Eles estão assustados, isso nunca aconteceu... Talvez mais brigas aconteçam. – Digo, parando Tiago e segurando seus braços com firmeza, o fazendo olhar para mim – Tiago, você precisa achar a Marina e a Letícia.
- O que? Mas e você Clara? – Pergunta preocupado.
- Eu vou ficar bem, conseguirei me defender se for preciso. – Insisto, e posso ver como ele continua relutante – Minha preocupação é com elas. Com todo mundo doido desse jeito, não sei o que pode acontecer.
- Tá, e o que você vai fazer? – Pergunta sem se mover.
- Vou descobrir o que está acontecendo e como viemos parar aqui. – Não sei como vou fazer isso. Falar é sempre tão mais fácil do que fazer.
- Você tem certeza disso? Promete que vai se cuidar? – Ele me encara no fundo dos olhos.
- Absoluta, e eu prometo que irei me cuidar. – Gesticulo com a cabeça – Acho que elas estão lá em cima. Vai!
Ele hesita alguns segundos, mas logo balança a cabeça confirmando, se vira e correndo para as escadas, desaparecendo por entre as pessoas.
Respiro fundo passando as mãos pelo rosto nervosamente, torcendo para que Tiago as encontre e que elas estejam bem. Agora preciso pensar no que fazer. O tanto de situações que já passei antes me permitem manter um pouco de calma nessa situação, e é assim que preciso me manter.
A barulheira está terrível, todos falando ao mesmo tempo está sendo agoniante. Isso está parecendo o centro de São Paulo de tão movimentado.
- Ali! Olha ali! – Ouço alguém gritando perto de mim. Vejo uma garota em meio a um pequeno grupo apontando na direção de uma das janelas, com uma expressão assustada. – Eu juro que vi alguma coisa passando ali!
- Para agora, isso não tem graça nenhuma! – Uma outra garota a repreende. – Olha a nossa situação, e você fica inventando essas coisas?
- Eu não estou inventando! Eu vi uma coisa passando! – Ela insiste para seus colegas, voltando a olhar para a janela.
- Alguém pode dar um jeito nela? Essas mentiras não estão ajudando. – Um rapaz balança a cabeça negativamente.
- Não sei, tive a impressão de ver algo passando sim... – Um outro rapaz diz.
- Estão vendo? Não estou mentindo, juro pela minha vida que vi algo passando! Vocês tem que acreditar em mim! – Ela parece perder o controle, porque se desvencilha de todos e começa a correr assustada, empurrando algumas pessoas e desaparecendo em poucos segundos.
- Ela não está normal, vamos atrás dela. Só falta essa maluca fazer alguma besteira. – Outra garota comenta, e o grupo segue correndo atrás da primeira.
Uma outra gritaria começa no andar superior, dessa vez gritos incessantes que parecem ser de euforia e incentivo a algo, atraindo olhares de todos. Ruídos do que parecem coisas sendo quebradas podem ser ouvidos das escadas.
Ignoro todos esses ruídos e sigo em direção a um dos portões. Sei que os gritos vem da mesma direção que Tiago seguiu, e no mesmo lugar onde Marina e Letícia podem estar. Tudo que posso fazer é torcer que nenhum deles esteja envolvido em mais essa bagunça, e principalmente que estejam bem.
Chego perto das catracas, e repentinamente os portões se fecham sozinhos em um estrondo ensurdecedor que ecoa por todo o lugar. E antes de qualquer reação nossa, todas as luzes começam a explodir, uma a uma, até o lugar inteiro mergulhar em profunda escuridão.
A barulheira que havia até segundos atrás, agora parece nunca ter existido. Todos se calaram e o silêncio se vê presente em todos os lugares. Estou apreensiva com essa sequência de acontecimentos, e fico ainda mais por meu colar continuar brilhando sem parar.
Ao que ele está reagindo? Será ao próprio Abismo?
Gradualmente algumas conversas voltam a acontecer, novamente lanternas de celulares são ligadas, mas dessa vez são bem menos que antes, e percebo que vários alunos começam a vir na minha direção. Me assusto a princípio, mas respiro aliviada quando passam por mim e seguindo as pressas na direção dos portões trancados.
Alguns rapazes começam a correr e começam a golpear os portões aos chutes, e logo na sequência algumas garotas estão fazendo o mesmo. Em questão de segundos uma multidão se reuniu nas saídas, todos tentando forçar a passagem desesperadamente.
Me afasto dessa baderna toda para evitar de me envolver, seguindo para perto das pessoas que apenas observam assustadas o que se desenrola nos portões. É como o Tiago falou, todos estão se descontrolando, e o pior é que isso não ajudará em nada.
Por um instante meu colar pulsa com mais força, e ao segura-lo, percebo que alguma coisa está emergindo do chão e espalhando ao redor... Não, já está espalhada por todos os lados.
O lugar inteiro está repleto de nevoa, que está ficando mais densa.
Um barulho de várias coisas sendo derrubadas vem da secretaria, imediatamente calando a todos e atraindo olhares, confusos e assustados. Alguns alunos viram as luzes de seus celulares para a secretaria, e um vulto saltando rapidamente pode ser visto, seguido pelo som do que parecem correntes arrastando pelo chão.
Vozes podem ser ouvidas apenas nos andares superiores, porque aqui no térreo, todos se calaram com o que acabamos de ver. Os poucos que se atrevem a falar, conseguem pronunciar apenas sussurros incompreensíveis.
Um estranho ruído pode ser ouvido de uma das paredes, e olho imediatamente juntamente com alguns outros alunos. O celular de alguém ilumina a parede, revelando marcas estranhas, que parecem ser furos nas paredes... E algo que pareceu uma cauda mergulhando na escuridão.
Um barulho que parece ser de vidros estourando pode ser ouvido no andar superior, seguidos de gritos de pânico. Mal tenho tempo de pensar o que pode ter causado isso, e algo imenso salta da secretaria, atravessando o vidro divisório e caindo muito próximo de mim.
Muitos cacos espalham ruidosamente pelo chão, e com os braços protejo o rosto de alguns cacos que vieram em minha direção. Sem demora, ignoro tudo a minha volta. Sejam os gritos e as várias palavras atropeladas dos demais alunos, sejam dos que estão atrás de mim, nos lados, ou caídos na minha frente, e foco apenas nessa criatura.
A baixa luminosidade e a nevoa me impedem de enxergá-lo muito bem, mas consigo ver bem sua silhueta que lembra muito o de um cachorro. Ele é imenso, acho ter o dobro do tamanho de um cão de grande porte, no mínimo. Ele é magro, tendo apenas o peito e pescoço de maiores proporções, parece ter o corpo inteiro coberto por pelos eriçados.
Posso ouvir seu rosnado incessante, essa criatura está em uma clara postura de ataque. Apesar disso, ele não se move, ele permanece onde está, mesmo quando os vários alunos se arrastam para longe dele às pressas.
Mesmo com a névoa e estando tão escuro, consigo ver perfeitamente ele movendo sua cabeça de um lado ao outro, observando cada um dos alunos se afastando, parecendo avaliar cada reação... Até que sua cabeça se volta para mim.
Recuo alguns passos, sem desviar meus olhos desse cão gigante. Seu rosnado parece ainda mais hostil do que estava antes. E logo atrás dele, acho que vejo outras silhuetas avançando dentro da secretaria, e segundos depois, outros dois iguais saltam pelos vidros, parando próximos ao primeiro... E ainda escuto um rugido, seguido de passos pesados e o ruído de correntes.
Um ser muito maior que os anteriores atravessa as paredes da secretaria em um impacto estrondoso. Estilhaços de vidro e madeira voam por todos os lados, cadeiras, computadores e outros equipamentos são arremessados, estraçalhando pelo chão.
A criatura sacoleja seu corpo monstruoso e muito mais ameaçador do que os demais. Ele tem coisas cravadas pelo seu corpo peludo, parecem lanças, e existem várias correntes envolvendo suas patas e seu corpo.
Se destacando na penumbra, dois pares de olhos vermelhos se abrem, focando diretamente em mim. Só agora me dou conta que, diferente dos menores, esse possui duas cabeças.
Mas claro, se a situação já não estava ruim o suficiente, ela acabou de ficar.
Apreensiva, recuo mais um passo, observando atentamente cada um desses cães monstruosos, principalmente o maior deles, enquanto tateio minha mochila tentando alcançar minhas runas, qualquer uma das duas pedras me servirá nesse momento, só preciso alcançar uma delas... Qualquer uma delas.
O maior deles da um passo em minha direção, ambas as cabeças rugem com tanta força que sinto atravessar meu corpo, e ele avança contra mim em uma corrida esmagadora, atropelando e estraçalhando várias das fileiras de bancos sobre suas imensas patas, junto de uma coluna que existe entre nós. Atrás de mim consigo escutar os diversos gritos de desespero. Sua aproximação tão súbita me assusta por completo.
Não vai dar tempo de pegar minhas runas.
Fecho o punho com toda a força e, ativando a runa do impacto, golpeio na direção do imenso cão. A névoa é rompida, várias coisas são afetadas pelo poder da runa e são arremessadas contra a criatura, batendo com força contra seu corpo. A onda é poderosa o bastante para que ele cesse sua corrida e acabe levemente para trás, mesmo cravando suas garras no chão.
Aproveito essa brecha para golpear uma segunda vez na mesma intensidade, dessa ver erguendo o punho e fazendo com que a onda venha por baixo. A criatura tem seu corpo erguido de forma que apenas suas patas traseiras toquem o chão, ele fica tão alto que suas costas batem violentamente e atravessam parte do teto, fazendo ceder boa parte sobre si e também sobre os seres menores.
Tenho a impressão de que ele irá cair, porém ele consegue se equilibrar sobre as patas traseiras e fica ereto, pendendo o tronco um pouco para frente. Ambas as cabeças estão com seus olhares cravados em mim, mostrando seus imensos dentes e rosnando sem parar.
Ele bate suas patas dianteiras no chão de forma que consigo sentir o chão tremer pelo impacto do seu pesado corpo, e lançando um rugido ameaçador. Como se acatassem uma ordem, os três menores disparam contra mim.
Eles se espalham de modo a me cercar, preciso dar um jeito de me defender deles. Os dois primeiros cães gigantes me atacam juntos, e balançando o braço ativo novamente a runa de impacto, a força é o bastante para jogar ambos contra o chão e afastá-los de mim.
Me viro para o terceiro, porém, não tenho tempo para reação. Ele já saltou contra mim, com os dentes a mostra prestes a morder meu ombro, e nesse instante um clarão surge no meu colar, o afastando bruscamente de mim.
Respiro aliviada pelo meu colar ter me salvado, olhando de relance para onde os demais alunos estão. A maioria deles estão se amontoando nas escadas, alguns poucos estão estáticos me olhando fixamente, até dá a impressão de estarem hipnotizados.
Um rosnado logo atrás de mim atrai minha atenção, e ao me virar, encontro o maior deles com seus olhos cravados em mim, apertando os dentes com força e prestes a me atacar. Ambas as cabeças abrem suas bocas e avançam para me morder ao mesmo tempo.
A surpresa me impede de reagir, meus braços e pernas tremem pelo medo que me consome nesse instante. Tudo que consigo é gritar diante do perigo iminente, e algo que parece ter sido arremessado acerta o imenso cão.
É imenso como o cão de duas cabeças, porém muito mais esguio e completamente preto, o pior de tudo é que também parece estar vivo, e os imensos seres entram em combate, causando ainda mais destruição com seus imensos corpos. Pela quantidade de olhos, imensas presas e corpo comprido, consigo distinguir a criatura que se trata de um tipo de aranha gigante.
Meu Deus, o Abismo só tem monstros?
A aranha recebe uma mordida de uma das cabeças, ela solta um ruído estridente e crava duas de suas imensas patas nas costas do cão. Ele ruge de dor e tem uma de suas cabeças agarrada pela boca da aranha.
Os cães menores abocanham as patas da aranha e a puxam de forma que a criatura desequilibre e tombe numa queda pesada. O maior dos cães fica sobre duas patas, descendo ambas as patas frontais na aranha. Ela grita novamente, cravando todas as suas patas no cão.
Assisto o embate das criaturas, sem conseguir ter a menor reação. Quem eu ataco? Ataco ambos ou fujo daqui? O que eu faço?
O cão abocanha a aranha com ambas as cabeças de forma que consegue ergue-la, e antes que qualquer um dos combatentes realize qualquer novo ataque, algo vindo da mesma direção que a aranha surgiu atinge ambos.
Uma gigantesca rajada flamejante vinda do alto atinge uma das cabeças do cão, o obrigando a soltar a aranha e recuar vários passos. O ataque cessa e a cão fica de pé, rugindo enfurecido para seja lá o que tenha o atacado, enquanto que a aranha recua alguns passos, chiando de forma que me assusta, quando uma nova rajada agora totalmente enegrecida atinge o cão, o fazendo se desequilibrar para trás e sofrer uma pesada queda que faz o chão tremer.
Espera um pouco, por acaso... Isso foi escuridão?
A segunda rajada cessa, e a energia escurecida dissipa no ar, e do alto, outro rosnado pode ser ouvido... Porém esse me parece familiar.
O imenso cão fica de pé, sacudindo ambas as cabeças e olhando o alto alguns segundos. Sem desviar seu olhar, ele rosna agressivamente sem parar, porém ele recua devagar de volta para a secretaria e para bem em frente à passagem.
Os três cães menores correm primeiro para dentro do buraco, e somente então o maior se vira e entra correndo, mergulhando no local escuro e sumindo da minha vista. Quando volto meus olhos para a aranha, que já está saindo pelo portão da faculdade, seguido de alguns vultos na parede indicando aranhas menores.
Não é exagero dizer que todos eles foram fugiram... Mas isso não é motivo para alivio, muito menos de comemoração, afinal, seja lá o que assustou eles, agora está aqui.
O silêncio recai no local inteiro. Não escuto a voz de palavras ou gritos de mais ninguém, todos realmente se calaram nesse instante. Novamente névoa passa a surgir serpenteando o chão, e o silêncio é rompido apenas pelo novo rosnado vindo do alto.
Hesitando viro na direção da criatura, e o encaro parado no alto de uma coluna. Reconheço as imensas placas ósseas em seu corpo e costas. Seus olhos avermelhados pulsam em total intensidade, se destacando em meio as sombras, e ele ostenta o mesmo sorriso retorcido.
Novamente estou diante de seu olhar e de seu sorriso macabro.
Novamente... Estou diante da entidade.
E com o propagar de um novo e devastador rugido, tudo a sua volta treme de desespero...
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