Capítulo 52 - Aconselhamentos
5497 Palavras
Deitada na minha cama, encaro o teto do quarto fixamente por longos minutos, escutando o som da forte tempestade do lado de fora. Minha cabeça está explodindo em pensamentos desde ontem à tarde, quando saí da faculdade e tive aquela discussão com Ricardo.
Marina e Letícia acham que exagerei ao usar as runas... Principalmente Marina.
Talvez realmente não precisava de tanto.
O problema é que, desde aquele momento até agora, eu não me importo com o que fiz. Não me arrependo de absolutamente nada, e acho que faria tudo de novo. E só eu sei como isso me preocupa, afinal essa frieza não é de mim.
Não me reconheço naquele momento.
Me pergunto se me deixei levar pelo poder e o sentimento de indiferença.
Tentei ignorar isso e só deixar para trás, procurar não pensar mais a respeito. Tanto ontem como hoje, fiz questão de mergulhar de cabeça na aula e depois no trabalho, na tentativa de afastar essa situação da cabeça e o cansaço mental me fazer esquecer.
Por algum tempo, funcionou muito bem. Realmente deixei de pensar nisso por algumas horas, mas nos momentos que fico livre, como agora, tudo volta a minha mente, e essa sensação estranha aflora em meu peito.
Gostaria de ter me cansado o suficiente no trabalho para não querer pensar nisso agora.
Suspiro me sentando, tiro as pesadas cobertas de mim e jogando as pernas para fora da cama, fico de pé. Estou cansada, exausta fisicamente e mentalmente... Mas ainda não sinto que estou com sono, pode ser uma boa ideia preparar um chá.
O frio do quarto abraça meu corpo despido. Corro ao meu guarda-roupa e procuro por algumas roupas no escuro mesmo. Pego uma calça de moletom e uma camiseta larga do Brian, que trouxe da casa dele sem perceber. Preciso devolver ela alguma hora.
Visto as roupas e, abraçando a mim mesma para tentar me manter aquecida, saio do quarto, ao mesmo momento que ouço o som de um estrondoso trovão reverberando no céu.
Já está tarde, não ouço o som da televisão no andar debaixo, então provavelmente meus pais já foram dormir. Por isso, vou andando sem fazer barulho, não que pés descalços no chão gelado sejam ruidosos.
Paro em frente à escada e observo um instante. Além de quieta, minha casa está bem escura, por isso desço devagar para não pisar em falso e cair, isso seria horrível.
Alcanço a sala e vou à cozinha, ligo a luz e sigo para o armário. Abro e logo de cara encontro a caixa com saquinhos de chá, pego dois e deixo em uma xícara, e logo a encho com uma quantidade razoável de água.
Fecho os armários e, quando estou para colocar a xícara no micro-ondas, tenho uma sensação estranha e paro de andar. Novamente, sinto que estou sendo observada.
Fico estática encarando meus pés, tomando cuidado até com o barulho que minha respiração faz. Aperto a alça da xícara entre meus dedos e engulo seco, minha mão está suando, a aflição cresce em meu peito junto com receio da incerteza.
Respiro fundo e me viro em direção à porta que leva de volta a sala, porém não encontro nada além de um cômodo pouco iluminado... Mas continuo com essa sensação horrível.
- Ei? – Chamo, me movendo com cautela e olhando de um lado ao outro devagar – Oi? Pai?
Não tenho resposta.
Continuo encarando a mesma direção, com o som da chuva do lado de fora parecendo ficar mais intenso com o princípio de uma ventania, entrando em um profundo contraste com a absoluta quietude existente na minha casa.
Deixo a xícara sobre a mesa e caminho devagar até a porta da sala, sob o som de mais um trovão. Como por instinto paro meu caminhar ao alcançar o batente, e hesito de avançar. A sensação me parece ainda mais forte agora, o pior é que não ouço nada vindo da sala.
Com toda a coragem que me resta, agarro a pedra do meu colar, esta que permanece inalterada o tempo todo, e avanço para a sala. Não vejo nada por entre a penumbra, então sem desviar minha atenção da escuridão, tateio ao lado da porta buscando pelo interruptor, até conseguir ligar a luz do cômodo.
Olho em volta pelo cômodo por repetidas vezes, não encontrando nada que cause tamanha sensação. Suspiro e volto para a cozinha para terminar meu chá. Apesar do alívio de encontrar a sala vazia, a sensação continua.
Pego a xícara e coloco para esquentar no micro-ondas, acionando o temporizador, me encostando na pia e esperando. Olho em volta, cada vez mais agoniada com a sensação, pensando como lidar com isso.
Desencosto da pia e vou até a janela da cozinha, abro a cortina e observo, esperando encontrar qualquer coisa que seja... Mas como antes, não encontro nada.
- Ei? – Chamo de novo, olhando ao redor – Senhor sem nome... Cara do Casaco... Ou sei lá como você quer ser chamado... É você? Se for, pode aparecer?
Não obtenho nenhuma resposta.
Espero alguns segundos, passando meus olhos ao redor. Imagino que ele vá aparecer do nada como foi em outras vezes, mas não é isso que acontece.
O apitar do micro-ondas rompe o silêncio e me faz pular de susto. Esfrego uma mão pelo rosto em uma tentativa de afastar tamanho nervosismo de mim, pego meu chá e saio da cozinha.
Subo correndo ao meu quarto, dessa vez sem me importar tanto com o barulho que estou fazendo, provavelmente a chuva vai abafar qualquer ruído meu.
Ao chegar na porta do meu quarto, o som explosivo de um trovão ecoa no céu. Paro de andar e de relance vejo o que parece uma silhueta alta e esguia parada ao lado da minha cama, com olhos avermelhados se destacando na pouca luz.
A visão me assusta e vou para trás imediatamente, levo a mão a boca contendo um grito. Bato as costas na parede atrás de mim e encaro fixamente o interior do meu quarto, sem acreditar no que acabei de ver.
Respiro ofegante, encarando fixamente a porta. Sinto minha mão queimando de repente e algo escorrendo devagar até meu pulso, e acabo reparando que o susto me fez derrubar um pouco do chá quente em mim.
Resmungo baixinho, aproveitando para olhar ao meu colar. Ele continua sem emitir luz, o que indica que não existe nenhum perigo no meu quarto... Acho que aquela coisa que vi no meu quarto deve ter sido só uma alucinação por causa da pouca luz.
Mas isso não faz sentido... Agora a pouco eu senti que estava sendo observada, e agora supostamente eu vejo uma criatura no meu quarto. Não acredito que essas coisas sejam coincidência, mas meu colar sequer reage... Será que estou enlouquecendo?
Respiro fundo para ignorar tantos pensamentos, e em passos cuidadosos, ligo a luz e entro novamente no meu quarto. Ele está completamente vazio para meu alivio.
Vou a minha cama e sento na beirada, olhando fixamente a xícara em minhas mãos. Como se já não bastasse estar de cabeça cheia por causa do que houve com Ricardo, me acontece mais isso hoje para piorar mais as coisas.
Acho que o melhor será avisar Brian sobre o que está havendo, tanto por sentir que estou sendo observada como também dessa aparição de hoje. Talvez seja bom eu fazer uma visita a ele ou ao Ferdinand para descobrir o que pode estar havendo...
Isso sem falar que ainda tenho outra coisa a falar com ele.
Marina me comprou o teste de gravidez ontem, mas até agora não tive coragem de tirar ele da minha bolsa, quem dirá fazer ele. Não sei se estou preparada para a resposta desse teste, e pensar nele faz meu estomago se revirar em expectativa.
Suspiro e dou um pequeno gole no meu chá, alcançando meu celular e indo para a conversa que tive com meu antigo guardião. Digito rapidamente uma mensagem para ele, explicando a sensação e também o que vi agora a pouco, e envio sem esperar por uma resposta.
Deixo meu celular de lado e me aconchego na cama, lanço a coberta sobre as pernas, e com o controle em mãos ligo a televisão, buscando me distrair um pouco até o sono chegar.
Por alguns minutos é assim que fico, assistindo um filme debaixo das cobertas, bebericando meu chá até acabar, me encolhendo nas cobertas em cada novo trovão, e nada do meu sono aparecer... E perdi a noção de que horas são.
Suspiro e deixo a xícara ao lado da cama, e após um estrondoso trovão, minha televisão se apaga e a luz acaba. Para mim, é só um sinal para tentar descansar.
Me viro na cama e fecho os olhos, permitindo que o som da tempestade entre nos meus pensamentos, na expectativa que os leve para longe de mim e que eu possa descansar. Preciso esquecer disso e só seguir em frente.
Escuto o que parecem ser passos não muito pesados do lado de fora do quarto, mas a princípio ignoro o barulho. Provavelmente meu pai ou minha mãe deve ter saído para fazer algo, mas me dou conta de algo... Não escutei o som de nenhuma porta sendo aberta ou fechada.
Para meu desagrado, novamente a sensação de estar sendo observada retorna... Não, é diferente dessa vez.
É como se estivesse bem atrás de mim.
O medo cresce em meu peito a cada segundo. Mantenho meus olhos fechados e fico o mais quieta possível, repetindo mentalmente que não existe nada aqui comigo, por mais que eu tenha certeza de existir algo, ou alguém aqui.
Não sinto meu colar aquecido, então não existe nada aqui, mesmo assim o seguro com toda a força para tentar me manter segura. É apenas uma paranoia minha.
É apenas uma paranoia Ana Clara, não tem nada aqui.
Um novo trovão explosivo acontece, sacolejando as janelas de tão forte. Meu corpo tenciona e me encolho com o susto. O nervosismo dessa situação me deixa sem reações, não sei o que irei encontrar se me virar, isso se eu conseguir me virar.
Usando todo o meu talento teatral, puxo a coberta a ponto de cobrir minha cabeça, e permaneço escondida nas cobertas, e de alguma forma estranha, isso consegue fazer com que eu me sinta segura... Por mais que eu saiba que isso não faria diferença nenhuma.
Já passei por tantas coisas, já enfrentei tanto. Por que agora me sinto tão assustada e indefesa?
Não ouço nada além do som da tempestade, desta vez eu quero ficar acordada para não ser pega desprevenida por seja lá o que for... Mas o sono me atinge, e antes que eu perceba, caio no sono.
Desperto devagar, desnorteada pelo cansaço.
Pisco algumas vezes e esfrego uma mão pelo rosto, tentando afastar o sono, quando ouço um barulho na porta e uma música que lembra o irritante toque de um despertador. Resmungo preguiçosamente, sem nenhuma vontade de abrir meus olhos pesados.
Alguém toca meu ombro de leve, e devagar abro meus olhos. De cara me recordo da sensação de haver alguém no meu quarto, o que me faz despertar e levantar o corpo imediatamente.
Ouço um grito de susto assim que levanto, o que atraiu minha atenção, além claro, de me assustar ainda mais. Vejo uma figura feminina pouco iluminada, recuando alguns passos com uma mão em frente ao peito.
- Meu Deus Clara, que susto! – Escuto a pessoa falando, e de cara reconheço ser minha mãe.
Passo os olhos pelo meu quarto, e por fim encaro a mim mesma por longos segundos. Volto minha atenção a minha mãe, que está respirando fundo e abanando uma mão em frente ao rosto.
Apesar da pouca luz no meu quarto, consigo perceber minha mãe me encarando com uma expressão de poucos amigos.
- Desculpa mãe, é que... – Vamos lá, pensa alguma coisa Ana Clara. Pensa. Pensa. – Eu... Eu tive mais um pesadelo... E acordei assustada.
Minha mãe cerra o olhar, claramente ainda não tendo me perdoado pelo susto. Além disso, já comentei com minha mãe sobre o fato de não ter tido mais nenhum pesadelo, então não estou certa se ela acreditou nessa minha desculpa.
Dou um meio sorriso na minha melhor tentativa de aliviar as coisas. – Tudo bem... Seu despertador estava tocando, mas como você não acordava eu vim te chamar.
Aceno com a cabeça – Obrigada mãe... Não imaginava ficar tão cansada por causa do trabalho... Já vou levantar, não quero me atrasar.
Minha mãe não se move, ela me observa fixamente por longos segundos. Ela parece estar estranhando alguma coisa, talvez até com algum receio.
- O que foi mãe? Está tudo bem? – Pergunto sem entender.
- Não, nada... – Ela responde um pouco sem jeito – É só que, vendo assim no escuro... Seus olhos ficam muito estranhos... São um pouco assustadores.
Fico surpresa com o comentário da minha mãe, e também com a forma apressada como ela saiu do meu quarto. Por um momento, tive a impressão de ela estar com medo de mim.
Aliás, meus olhos? O que tem neles agora?
Jogo as cobertas de canto e fico de pé, seguindo direto para o banheiro. Vou aproveitar que vou lavar o rosto para despertar, e já vejo o que aconteceu dessa vez.
Entro no banheiro e paro de frente ao espelho, me encarando fixamente. Não reparo nada de estranho em mim, além do cabelo bagunçado, dos olhos miúdos e o rosto amassado. Meus olhos continuam com o mesmo tom carmesim, o que será que minha mãe enxergou?
Ela disse que são estranhos no escuro... Será que...
Sem desviar minha atenção do meu reflexo, desligo a luz e percebo o que assustou minha mãe. O tom avermelhado brilha com força se destacando em meio a pouca luz, do mesmo jeito que acontecia com a entidade.
Não sei se acho isso legal, ou uma coisa ainda pior. Mesmo depois de semanas com essa mudança, é a primeira vez que reparo nisso. Pelo jeito as mudanças causadas depois da possessão foram maiores do que imaginei.
Me pergunto se ainda descobrirei mais mudanças por ter sido possuída.
Aliás, não preciso me esforçar muito para lembrar que Brian já me viu no escuro, e não foi só uma vez, então com certeza deve ter reparado essa mudança em algum momento. Me pergunto o motivo de nunca ter me contado.
Enfim, pensarei nisso uma outra hora. E também, se ainda houver mais mudanças causadas por esse incidente, acredito que elas irão aparecer com o tempo.
Sacudo a cabeça para afastar tais pensamentos logo cedo, novamente ligo a luz do banheiro e lavo o rosto para afastar meu sono, já cuidando da minha higiene matinal.
Saio do banheiro e caminho de volta ao quarto, escutando meus pais conversando algo na sala, mas não dou muita atenção. Ao entrar, vou ao guarda roupa e escolho as primeiras roupas que vejo e me visto sem muita animação.
Entre minhas coisas, reparo no largo bracelete feito de ouro que o Cara do Casaco criou do nada naquela noite. Um pouco relutante do que estou fazendo, o pego e o coloco, sentindo o peso da peça que ocupa boa parte do meu antebraço e pulso. É muito maior do que qualquer outro que eu já tenha visto antes.
Apesar do seu tamanho e peso que ainda não me acostumei... É bonito. Extremamente bonito.
Volto a me vestir, fazendo questão de vestir uma blusa que cubra todo o bracelete. Por mais que eu consiga me defender, não quero que alguém tente me assaltar só porque se interessou demais nessa minha joia nova.
Se continuar assim, em pouco tempo estarei cheia de bijuterias novas.
Pego meu celular e olho as mensagens recebidas. Sem nem perguntar, Jeniffer me enviou o endereço da loja de Amanda, acho que ela aceitou bem a desculpa que dei.
Paro de perder tempo, jogo o endereço no mapa, pego minhas coisas e saio de casa, antes mesmo dos meus pais saírem para o trabalho. Estou indo cedo demais, e talvez a loja nem esteja aberta quando eu chegar, mas não tem problema esperar alguns minutos.
Levo os olhos ao meu celular mais uma vez, me certificando do local onde estou indo. Só vim à loja de Amanda duas vezes, e já faz um tempo considerável desde a última vez, por isso não me lembro exatamente onde fica.
Tudo bem que já reconheço alguns locais daqui, todo esse comércio não me é estranho... Mas ainda é insuficiente para que eu consiga me localizar sem ficar olhando o mapa repetidas vezes.
Sei que estou perto, se o endereço estiver certo, a loja fica na próxima rua.
Guardo o celular no bolso da minha blusa e apresso o passo, desviando das várias pessoas que já lotam as calçadas já nessa hora da manhã. Por sorte o lugar já é bem mais familiar, reconheço o estacionamento onde Brian deixou seu carro da primeira vez, e um pouco mais ao longe percebo a loja da Amanda, e sem perder mais tempo sigo até ela.
Entro e de cara sou golpeada por uma névoa carregada com um forte aroma de incenso, que nem me esforçando muito saberei identificar ao certo qual o cheiro. Pisco algumas vezes e tento controlar minha respiração irritada, me adaptando a esse ambiente tão diferente da rua.
- Bom dia. – Ouço uma voz masculina, e me viro para o balcão, encontrando um rapaz com um sorriso amigável limpando uma pequena estátua de buda em suas mãos – Como posso ajudar?
- Bom dia... Eu estou procurando a Amanda. – O rapaz ergue de leve suas sobrancelhas assim que menciono o nome – Ela se encontra?
Acenando com a cabeça, ele deixa a pequena estátua sobre o balcão. – Ela acabou de chegar, mas ainda não está atendendo... Certeza que não posso ajudar? Precisa ser com a Amanda?
- Preferencialmente. – Torço a boca de leve – Acho que no momento, só com ela mesmo.
Ele respira fundo e solta o ar pela boca, como se estivesse se preparando para algo – Só um momento, irei chama-la.
Ele sai detrás do balcão e segue aos fundos da loja, enquanto permaneço olhando ao redor. A loja continua com seus vários tecidos estendidos de forma caprichada chamando uma forte atenção para si, tem várias coisas que não olhei com atenção na outra vez que estive aqui, decorações que realmente eu poderia querer no meu quarto, mas ainda o que me intriga é a pequena estatua de antes.
Acho curioso vender um buda em uma loja esotérica.
- Certeza que precisa ser comigo? – Ouço a voz de Amanda vindo do fundo da loja.
- A moça insistiu, e ela é meio diferente. – Ouço o rapaz se explicando, sua voz é mais próxima.
A mulher aparece, amarrando seu cabelo em um rabo de cavalo alto, e seus olhos vem a mim. Diferente da primeira vez que vim, hoje ela está com roupas mais pesadas, o único diferencial em seu visual são as várias pulseiras em ambos os seus pulsos.
- Ela é uma pessoa com atendimento especial... Pode voltar ao trabalho, eu assumo daqui. – Ela diz e o rapaz fez uma expressão de alívio. Se aproximando de mim, Amanda leva as mãos aos bolsos de sua calça – Faz dias que não a vejo. Como está Clara?
- Estou até bem, do jeito que posso... – Respondo, pensando em como começar esse assunto tão complicado. – Eu preciso falar com você.
Ela sorri de canto, gesticulando para que eu a siga para os fundos da loja – Imagino que sim. É sobre o Brian?
Escolho bem as palavras, enquanto caminhamos devagar. – Não... Dessa vez não é sobre ele... Bom, na verdade talvez... É difícil Amanda...
- Você parece bem nervosa. – Diz me olhando sobre o ombro com uma sobrancelha erguida.
- Não só pareço. – Dou um meio sorriso a mim mesma. – Escuta, por que você vende budas na sua loja?
Foi uma pergunta nada haver, e pelo visto Amanda pensa da mesma forma, por mais que ostente um sorriso tranquilo – Pelo mesmo motivo que também vendo esculturas de santos, orixás, dragões, bruxas e algumas outras coisas variadas, com todas na mesma prateleira. Sou uma bruxa, religião nenhuma se aplica a mim, mas faço negócios com pessoas de diferentes crenças.
Ao invés da sala de antes, Amanda entra na cozinha, e senta-se em uma das cadeiras. Vejo que sobre a mesa está uma garrafa térmica vermelha e um pote com um bolo caseiro.
Amanda me sinaliza uma cadeira, e me sento sem demora – Está servida? – Me oferece tanto o bolo quanto o que parece ser um café fresco, e apesar de não ter comido nada quando saí de casa, eu nego – Pois bem... O que deseja conversar?
Junto às mãos em frente ao rosto e encaro a mesa por longos instantes. Pensei muito o que dizer enquanto estava no ônibus, repassei essa conversa repetidas vezes, mas agora as palavras não saem da forma como eu gostaria.
As coisas ainda pioram se pensar no fato que irei comentar sobre o Cara do Casaco, responsável direto por aquele trauma intenso que Amanda teve. Por mais que ela aparente ter superado, não faço ideia do que pode acontecer ao mencionar sobre esse homem para ela.
- Bem... – Finalmente começo, respirando fundo. – Esses dias eu tive um... "Encontro" com um "ser" em particular, e ele me disse uma coisa que ficou na minha cabeça.
- Um "encontro" com um "ser" em particular? – Amanda questiona, cortando um novo pedaço de bolo e mordendo, tendo uma sobrancelha erguida. – Essa história já começou muito bem.
- É, não sei dizer o que ele é de verdade... Nem ele parece saber. – Quero evitar o máximo de detalhes possíveis sobre ele. Não sei o que o Cara do Casaco fez, mas com certeza não quero que os traumas que ela tinha retornem.
Amanda balança a cabeça, atenta ao que digo – E o que ele disse que a deixou assim?
- Que existe algo dentro de mim. – Amanda assume uma expressão séria. – Eu não sabia como falar disso com o Brian ou com Ferdinand, e decidi recorrer a você.
Prestes a dar mais uma mordida em seu bolo, Amanda para seu movimento quando se dá conta de algo. Ela cerra seu olhar em um semblante pensativo, apoiando o queixo sobre a mão e encarando uma direção fixamente, e por fim volta a me olhar, agora surpresa – Por acaso é o que eu estou pensando?
- Se o que você pensou foi um bebê, eu mamãe, e Brian papai... Então sim, foi à primeira coisa que me passou em mente. – admito erguendo os ombros.
- Uau... – Ela diz sem me olhar. Pelo jeito, isso pegou a bruxa totalmente desprevenida – Você já conversou com o Brian sobre isso?
- Nem sei o que falar para ele, ainda nem cheguei a fazer o teste. – Me explico, passando uma mão pelo rosto. – E também, nem tenho certeza se realmente é isso.
- Porque não? – Ela ergue uma sobrancelha.
- Porque eu tive uma criatura dentro do meu corpo durante meses, e talvez naquele exorcismo, podem ter restado vestígios... E aquele ser falou que sentiu uma presença fraca... – Apesar das minhas palavras, continuo pensando novamente na possibilidade de estar grávida – Eu queria... Sei lá, saber se ainda resta algo da entidade em mim.
Pensativa, Amanda deixa seu bolo sobre a tampa do pote e se levanta – Entendi onde quer chegar. Posso fazer isso.
- Sério? – Questiono mais pela surpresa de como isso foi fácil.
- Sim, não é algo difícil de fazer, mas demorará um pouco. – Ela se aproxima de mim – Tudo que preciso é checar se ainda existe alguma anomalia dentro do seu corpo... E não se preocupe, não irei cobrar.
- Precisarei fazer algo? – Sigo a observando.
Amanda toca minha cabeça com uma mão, e com a mão livre ela pega uma pequena faca, a girando no ar algumas vezes, de onde emana uma luz levemente azulada. – Sim, apenas feche os olhos e tente não pensar em nada.
A luz se aproxima do meu rosto e, antes que me toque, fecho meus olhos. Fiz isso com grande relutância pelo fato de Amanda estar apontando uma faca com algum feitiço em minha direção.
Uma onda fria toca meu rosto e desce pelo meu corpo lentamente. Prendo a respiração com o frio repentino que me invadiu, e tento resistir ao desconforto momentâneo que ele me causa.
Calafrios profundos percorrem minha espinha, sinto meu corpo tremer, chegando ao ponto da sensação ser tão agoniante que é difícil respirar. Aperto as mãos tentando resistir.
Após um tempo que pareceu ser longas horas, a sensação diminui lentamente, e quando não a sinto mais me permito abrir os olhos outra vez, aliviada por finalmente ter acabado.
Amanda tem um semblante pensativo, afastando-se de mim em passos curtos – E então? – Questiono.
- Recomendo você fazer o teste. – A forma direta como ela responde me espanta – Não consegui sentir nada de estranho.
- Nada? – Insisto e me levanto um pouco aflita – Nem mesmo muito fraco?
Sua resposta não vem em palavras. Ela me olha, aperta seus lábios e nega com a cabeça.
Respiro fundo esfregando uma mão pelo rosto. Meus olhos voltam a minha bolsa onde está o teste que Marina comprou para mim, novamente imaginando a possibilidade de fazê-lo na primeira oportunidade.
- Clara... – Amanda me chama, e volto a olhar para ela – Fica calma, pode não ser nada demais, e essa tal coisa que você encontrou tenha se enganado.
- Será? – Acabo falando mais a mim mesma do que para Amanda.
- É uma possibilidade... – A mulher cruza os braços e ergue seus ombros – Muitas dessas criaturas não são assim tão confiáveis, essa criatura pode apenas ter pregado uma peça em você. Por acaso vem acontecendo algo que te faz acreditar ainda existir alguma coisa?
Abaixo os olhos por um momento, e só uma coisa vem em mente – Sim. Algumas vezes sinto que estou sendo observada, e essa sensação está cada vez mais frequente...
- Estranho, algo assim não deveria acontecer. – Ela responde pensativa – Como disse, não senti nada anormal. Meu palpite é que essa sensação é uma autodefesa que sua mente criou.
- Uma autodefesa que funciona até dentro da minha casa? – Ergo as sobrancelhas.
- É possível. Você já foi atacada dentro de casa, não é? – Admito que aqui ela tem um ponto muito forte. A feição de Amanda se suaviza, e ela aproxima de mim, pousando a mão sobre meu ombro – Mas não se preocupe Clara. Pode ser apenas impressões que você vem tendo, mas não parece passar disso... Mas recomendo que faça um teste o quanto antes, e converse com Brian.
O que Amanda diz faz sentido. Talvez seja apenas impressões que venho tendo, mas que no fim não passa disso. Por meses fiquei com a entidade presa dentro de mim, e hoje ainda tenho a desconfiança de que as coisas ainda não acabaram e continuo correndo o risco da entidade continuar existindo e vir atrás de mim.
De certa forma, tudo acabou. Já fazem semanas que voltei para minha vida normal.
Mas sei lá... Algo ainda me deixa receosa.
Talvez seja as incertezas que essa situação me causou. Incertezas de ser uma criatura paranormal, ou então de uma gravidez, e isso vem me estressando cada dia mais.
Em uma coisa posso concordar com Amanda sem nenhuma dúvida... Não só com ela, mas também com Marina. Preciso conversar com Brian o quanto antes. Contar o que venho sentido, a impressão de ser seguida e... E da possibilidade de estar grávida.
Isso eu gostaria de dizer se sim ou não de uma vez, ou nem mesmo dizer qualquer coisa. Não quero plantar uma dúvida em sua cabeça. As coisas poderiam ser bem mais fáceis.
- Bem... – Volto a falar, olhando para Amanda – Obrigada por sua ajuda. Quanto preciso pagar?
- Não se preocupe com isso, não é o tipo de coisa que costumo cobrar, é a primeira vez que uso meu poder para isso, então nem sei como taxar algo assim... E já disse que não precisará pagar... Além disso, você é namorada do rapaz que vejo como meu pupilo. – Ela diz com um sorriso.
Solto uma risada sem jeito, desviando o olhar dela – Não namoramos...
Amanda faz uma cara de surpresa com minha resposta. – Desculpa por isso, eu não fazia ideia... É que ele ainda fala bastante de você, então pensei que estavam juntos.
Sorrio cruzando os braços – Ele fala de mim?
- Mais do que você deve imaginar, e menos que o suficiente para me tirar a paciência... – Ela sorri e nós duas acabamos rindo de seu comentário – Eu imaginava que vocês iriam ficar juntos.
- Está tudo bem. Foi algo que nós conversamos e decidimos que seria melhor assim... Continuarmos sendo apenas amigos. – Esclareço e estendo a mão a ela – Mais uma vez, obrigada Amanda.
- Sem problemas... – Ela sorri apertando minha mão, porém seu olhar muda para estranheza e seu aperto fica um pouco mais forte – Nossa... Mas o que é isso?
Não entendo o que ela fala, quando me dou conta que é nesse pulso que uso a pulseira que o Cara do Casaco criou. Puxo a manga da blusa e mostro a ela – Só uma pulseira que ganhei...
- Não é isso, é que... – Ela olha fixamente para a pulseira, aproximando-se devagar – Essa pulseira emana uma energia residual assombrosa... Onde conseguiu isso?
Entro em um impasse se digo a verdade para ela. Qual seria a reação se eu falasse que consegui isso com o Cara do Casaco? Provavelmente eu não poderia sair dessa loja, aliás, nem sei se poderei sair daqui agora.
Olho de um lado ao outro, recuando um passo – Meu pai me deu de presente já faz alguns anos. Eu nem estava na faculdade quando ganhei.
Por longos segundos ela me olha desconfiada, e me pergunto se deveria ter pensado em uma desculpa mais convincente. – Tudo bem... Só tome cuidado com isso, e recomendo que não a use com frequência... Com toda certeza isso está longe de ser uma bijuteria normal.
Concordo com a cabeça e já pegando minha bolsa – Ficarei de olho... Qualquer coisa estranha, irei avisar.
Seguimos de volta para a loja, e antes que eu saia, Amanda toca meu ombro – Se algo acontecer, se precisar conversar sobre aquele assunto ou sobre qualquer coisa, pode vir até mim... Farei o possível para ajudar.
Sorrio para ela, feliz por poder contar com sua ajuda – Obrigada Amanda.
Ela me sorri de volta, e sigo para fora da loja, quando ouço a mulher novamente – Mande lembranças minhas ao Brian quando falar com ele.
- Claro, pode deixar. – Respondo animada e saio da loja, e toda minha animação some.
Suspiro enquanto me afasto da loja em passos apressados, refletindo sobre o que conversei com Amanda. Ela não sentiu nada, o que joga fora a possibilidade de ser algum vestígio da entidade, mas isso faz a outra possibilidade ganhar mais força.
Chego ao ponto de ônibus e sento-me no banco, sacando meu celular sem espera e abrindo o aplicativo de mensagens. Procuro por poucos segundos e acho a pessoa que preciso conversar.
Ana C:Brian?
Ana C: Precisamos conversar sobre uma coisa.
Ana C: E se possível, pessoalmente.
Brian: O que houve?
Ana C: Até agora nada.
Ana C: É que...
Ana C: Nos últimos dias estou com a sensação de estar sendo seguida por alguma coisa.
Ana C: E também, estou com a impressão de uma coisa... Mas só posso falar pessoalmente.
Brian: Quando quer se encontrar para falarmos disso?
Brian: Se preferir, podemos nos ver hoje mesmo... Dou um jeito de sair daqui do trabalho.
Ana C: Hoje já não dá... Já estou indo para o trabalho.
Ana C: Podemos conversar amanhã cedo, na frente da minha faculdade.
Ana C: Que tal?
Brian: Tudo bem... Que horas?
Ana C: 9h em ponto, naquele mesmo lugar que você esteve na primeira vez.
Brian: Combinado, estarei lá.
Respiro fundo, guardando meu celular no bolso e passando a mão pelo rosto repetidas vezes. De amanhã não pode passar, contarei tudo que anda acontecendo, e acima de tudo, farei esse teste e mostrarei ao Brian.
Meu peito bate descontrolado pela ansiedade do momento, pelo resultado desse teste e também por qual será a reação do Brian caso seja dê positivo. Simplesmente não sei o que esperar para amanhã cedo.
Mas não posso esconder isso para sempre, preciso falar com ele.
Irei resolver as coisas amanhã... De amanhã não passa.
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