Capítulo 50 - Aquele que domina a escuridão
9340 Palavras
De pé a nossa frente, ele continuamente nos observa sem desfazer sua expressão calma. Seus olhos vão de Tamires a mim por algumas vezes, enquanto que as sombras que suavemente correm em torno de sua mão vão desaparecendo aos poucos, seguida da densa aura obscura que envolvia todo seu corpo.
Tamires e eu trocamos um olhar e voltamos a encara-lo, mas nenhuma de nós diz qualquer coisa. Aliás, o que raios eu diria num momento desses?
Estávamos prestes a reunir tudo que pesquisamos sobre esse homem e do nada o próprio aparece bem na nossa frente. De um segundo para o outro nós saímos da tranquilidade para entrarmos nessa situação complicada, e agora não sei o que esperar.
Minhas mãos... Não, meu corpo inteiro está tremendo.
Tudo que sei é que estou tensa. Extremamente tensa.
Esse homem pode não aparentar muita coisa à primeira vista, mas sua aparência engana. Não posso esquecer que vi quanta escuridão ele consegue manifestar de uma vez, que só a presença dele foi o bastante para fazer a entidade sumir... E principalmente, não faço ideia de quanto poder ele ainda esconde.
Escuto a porta sendo fechada sem muito ruído atrás de mim. Tamires e eu nos viramos imediatamente, para não encontrarmos nada além da tranca fechando sozinha. Já vi coisas piores, mas isso ainda conseguiu me assustar.
Engulo em seco e lentamente me viro para encará-lo outra vez. Se ainda havia qualquer chance de escapatória, agora essa chance desapareceu.
- O que desejam comigo? – Ele volta a falar, levando suas mãos aos bolsos.
Seu olhar vira para Tamires e acabo acompanhando. Ela continua virada para a porta, com os punhos apertados e dentes cerrados, encarando fixamente o chão com assombro nos olhos. Não sei se é impressão minha, mas ela parece estar tremendo de tão assustada.
Tamires aperta os olhos com força, nitidamente hesitante – Temos perguntas a fazer...
Ele não responde, apenas mantém sua atenção em nós. Apesar de estar aparentemente descontraído, ele está focado em nós. Não faço ideia de quais pensamentos se escondem por trás desses olhos e esse sorriso.
Permaneço atenta nele, levando minha mão o mais perto possível das minhas runas na bolsa, e tentando reparar se meu colar está reagindo a ele, mas não consigo perceber nenhum brilho.
E para piorar, ele acompanhou cuidadosamente cada movimento que fiz e me encarou direto nos olhos, aumentando um pouco seu sorriso. Por algum motivo, isso me causou um arrepio.
Ele parece saber exatamente qual foi minha intenção.
Não tem como pegar ele de surpresa...
Tamires se vira, o encarando fixamente – O que é tudo isso?
- Tudo isso... O que? – Ele ergue uma sobrancelha e pende a cabeça levemente para o lado.
- Tudo que você anda fazendo! – Ela diz por entre os dentes. – O que você quer?
Ele salta as sobrancelhas, levando a mão ao queixo assumindo uma expressão pensativa por demorados segundos. Seu olhar vai ao teto e ele torce a boca – O que eu quero...? ... Vamos ver... O que eu quero?
Tamires bufa – Será que pode parar de brincar e me responder?
- Mas não estou brincando... – Os olhos dele vão ao chão, sem deixar a expressão pensativa. Junto às sobrancelhas começando a me irritar com essa reação dele – Não sei do que você está falando Tamires, então realmente estou pensando o que eu quero...
- Vou te dar um ponto de partida. – Digo atraindo seu olhar a mim. Até pensei em dar um passo à frente, mas minhas pernas tremem tanto que não arrisco avançar. Respiro fundo tentando me manter o mais calma possível e continuo – Você aparecendo para tantas pessoas nesses dias, que tal começar por ai?
- Isso é apenas um efeito consequente da minha presença... Não foi algo proposital. – Ele ergue seus ombros. – Bom, ou pelo menos costuma ser por isso.
Tamires e eu trocamos um olhar, e voltamos a encara-lo – Costuma? – Questiono.
- É uma explicação meio longa... – Diz caminhando devagar, me olhando fixamente – Se tiverem paciência...
- Estamos atrás de você para termos explicações. – O interrompo. – E quanto mais completa for, melhor será pra nós.
O cara do casaco sequer se abala, ele não sorri e nem nos olha diferente, e apesar de ele aparentar o mesmo cansaço de quando nos encontramos da última vez, não existe interesse em seu olhar, porém também não existe desdém. Não existe nada.
Não consigo ler nada desse homem, é como se não existisse nada além de densas trevas nele, um mar caótico onde não existem respostas coesas, e quanto mais o encaro buscando qualquer coisa, menos eu encontro... Isso me incomoda profundamente, cada vez mais a aflição toma conta de mim.
- Pois bem... – Ele começa após longos segundos – Explicarei primeiro a respeito das situações normais. O que acontece é que, quando eu "apareço", de algum jeito minha presença afeta o ambiente e as pessoas próximas por alguns dias.
- O ambiente e as pessoas... A realidade não funciona normalmente na presença dele... – Ouço Tamires dizendo de repente, mais a si mesma do que para nós.
- "Ambiente"...? – Sussurro, e algo me vem em mente – Espera um pouco... Então, nas vezes que o clima de São Paulo ficava maluco...
- Calor muito acima do normal, extremas e contínuas tempestades, frio e ventanias repentinas... Sim, tudo devido a minha presença. – Ele explica como sendo a coisa mais normal.
Recordo de todas as vezes que o clima enlouquecia por dias, e de todas as suspeitas de qual seria a causa por trás disso. Por mais que eu já tivesse pensado nisso antes, finalmente ter a certeza me atinge como um golpe.
Olho para Tamires, e ela não parece nem um pouco surpresa com essa informação. Talvez ela já sabia desse detalhe a muito tempo, afinal sabe sobre esse homem a muito mais tempo que eu.
- Mas por que isso? – Pergunto tentando me focar no que precisamos saber.
- Não tenho certeza. – Diz com uma expressão reflexiva – Meu palpite principal é que isso ocorre por eu ainda não possuir domínio completo do meu poder... E a situação piora bastante dependendo do quão fraco eu esteja...
Dou um meio sorriso – A escuridão de uma cria do Abismo é tão forte que pode fazer tudo isso?
- Não... – Ele ergue sua mão e a sacode algumas vezes – Minha escuridão em poder máximo nunca criou uma anomalia desse nível, mesmo quando passei a ser chamado de Cria do Abismo... É devido à outra coisa.
Cerro o olhar. Penso rapidamente sobre o que acabei de ouvir... Passou a ser chamado de Cria do Abismo? Então, quer dizer que ele não era uma Cria do Abismo antes?
Um dos problemas de estar na presença desse homem é que, mais e mais questionamentos surgem nos meus pensamentos a cada segundo.
- Qual outra coisa? – Escuto Tamires perguntando, o que me puxa de volta a realidade.
O semblante dele muda para algo estranho. Não sei dizer o que ele pensa, ou o que seus olhos querem dizem nesse momento. Olhar para ele está sendo igual a encarar um profundo mar de incertezas – Uma força que ainda não entendo direito, mas que é capaz de mudar a realidade. É algo que nomeei como "vontade"... Mas talvez seja apenas o caos que emana de mim.
Vontade... É algo que definitivamente vou querer saber mais, mas não agora.
- Ta bem, na teoria isso é o que acontece normalmente. – Ele assente para Tamires, e fico atenta no que ela diz – Mas eu já passei por isso outras vezes e você sabe disso. Já vi o clima pirando e já vi você aparecendo de repente na minha cabeça desde o ano passado... Mas em nenhuma situação eu vi espectros como todas as pessoas que falamos hoje.
- É, nesse caso as coisas foram meio diferentes... – Ele da um meio sorriso jogando seus olhos para o lado. – Fui mesmo atrás dessas pessoas, eu precisava fechar as portas do Abismo.
Ergo as sobrancelhas – As mesmas portas que eu e Tamires encontramos?
- Sim, essas mesmas. – Ele olha de Tamires a mim por algumas vezes – Por alguma razão estranha, todas aquelas pessoas encontraram portas do Abismo e as abriram...
- E como você sabia disso? Foi você quem fez as portas aparecerem? – Questiono me aproximando dele.
Ele nega com a cabeça – Apesar de ter poder para isso, e também de abrir as portas, não fui eu.
- Então? – Tamires para ao meu lado. Agora as duas estamos encarando ele de perto.
Nesse momento reparo que a pressão de antes se suavizou muito, e sequer estou tremendo antes... Mas não nego, ainda estou assustada e tensa com tudo isso, controlando ao máximo cada atitude minha. Não sei qual maluquice fez com que eu me aproximasse dele, mas agora que estou perto devo redobrar meu cuidado.
Ele continua com uma expressão física relaxada, suas mãos já retornaram aos bolsos e seu rosto não entrega nenhum aparente incomodo... Acho que está tudo bem, por hora.
- Eu estava no Abismo quando fui informado das aparições repentinas de tantas portas. Então, dei um jeito de voltar para fechar elas e tentar descobrir o que estava havendo. – Ele solta um suspiro frustrado – Pena que não descobri nada...
- Então, você só fez isso para fechar as portas? Nada mais? – Ergo uma sobrancelha.
- Sim, achei prudente evitar a aparição de novas "Ana Clara" por ai. – Ele responde, me encarando de soslaio – Acredito que já imaginam o porquê disso.
Tamires e eu nos olhamos por um momento. Ela me ergue os ombros, e tudo que posso fazer é concordar com o que ele fez. Não seria uma ideia nada boa deixar portas abertas e outras pessoas acabarem passando pelo mesmo que eu.
- Mas então... – Tamires abaixa seu olhar em um semblante pensativo – O que vai acontecer com todas aquelas pessoas?
- Nada. – O cara do Casaco responde simplesmente – Aquelas pessoas apenas continuarão com suas vidas normalmente, sem interferências do Abismo. E não pretendo fazer nada com elas... Elas não me interessam.
A garota continua tensa e vejo a desconfiança nela, mas não dura muito tempo e aos poucos ela vai suavizando sua expressão. Uma parte dela parece confiar no que ele acabou de dizer, coisa que não consigo fazer...
Desconfio demais desse homem e de tudo que envolve ele, por mais que minha curiosidade me faça querer saber cada vez mais a seu respeito devido a ele ser diretamente ligado ao Abismo.
- Aliás Clara, já faz algum tempo que notei algo curioso em você... – Ele começa a falar de repente, retornando seu olhar a mim – Não estou sentindo aquela presença agressiva de antes emanando de você.
Sou pega de surpresa com ele mencionando esse assunto tão de repente. Por mais que a memória esteve bem viva em mim, não fazia nem ideia que ele iria se lembrar de algo assim.
- A entidade que havia em mim não existe mais. – Ele ergue uma sobrancelha.
- Ah... É mesmo é? – Questiona serenamente, enquanto seu olhar sombrio me estuda com curiosidade continua. Tamanha serenidade não combina com o medo que seus olhos instigam apenas por se direcionarem a mim – Se importa em me dizer como foi isso?
Estranho tamanha curiosidade dele, mas já tenho em mente o que dizer – Eu posso dizer, mas somente se você responder nossas outras perguntas.
- Vocês ainda tem mais a me perguntar? – Seu olhar vai de mim a Tamires. Diante do nosso silêncio, ele assente – Por mim tudo bem, responderei o que desejarem.
- Ta bem... – Começo a falar, o observando se virar de costas para mim e seguir até a janela fechada, a abrindo e permitindo que a brisa noturna entre na sala, voltando então sua atenção a mim – Aconteceu que a alguns dias, aquela entidade tomou posse de mim, e quando voltei ao controle do meu corpo, fizeram um tipo de ritual para que aquele ser fosse arrancado de mim.
- Só isso? – Pergunta com curiosidade nítida na voz.
Não respondo com palavras, mas confirmo balançando a cabeça de leve.
- Ele não existe mais... – O Cara do Casaco sussurra, abaixando seu olhar – Isso é uma pena, mas explica toda a agressividade ter desaparecido... Eu esperava fazer algumas perguntas a ele, mas acho que não tenho mais essa chance...
E agora me vem à dúvida. Por qual motivo ele teria perguntas para aquela criatura... E aliás, me pergunto se ele teria alguma resposta, afinal na única vez que eles se encontraram, a entidade sumiu em questão de segundos.
O homem se encosta na janela, permanecendo com suas mãos nos bolsos se mantendo em uma postura bem descontraída. Pelo que parece, ele realmente vai cumprir com o que disse e responder nossas perguntas.
- Você pode ir primeiro Tamires. – Recebo um olhar surpreso dela – Você conhece ele mais tempo e tem perguntas mais antigas que as minhas... Acho justo você começar.
- Tem certeza disso Clara? – Questiona me olhando, dando um passo a frente.
- Absoluta. Esperarei minha vez. – Concordo voltando a encará-lo.
Meu objetivo com isso, além de permitir que Tamires tenha suas respostas o quanto antes, é também tentar descobrir qualquer coisa que seja dele. Quem sabe em uma de suas respostas, eu possa descobrir algo que me é útil... Ou talvez, tenha perguntas mais certas a fazer.
De qualquer maneira que fizermos isso, tanto eu quanto Tamires sairemos ganhando.
A garota avança em passos contidos, deixando sua bolsa sobre o sofá e seguindo cada vez mais próxima dele, cruzando os braços e parando bem perto. Engulo em seco pelo arriscado jogo que ela está se enfiando, a proximidade que Tamires está desse homem a deixa em uma situação perigosa... Muito mais do que já estávamos antes, mas isso não parece incomodá-la.
- Vai fugir de mim como fez das outras vezes? – Tamires questiona seriamente.
- Nunca fugi de você Tamires. – Pelo seu tom, é difícil dizer se ele está mentindo ou não. Na verdade, pelo pouco que já vi desse homem e do que ele é capaz, é difícil imaginar um motivo que o levaria fugir de Tamires. – Apenas tinha outras coisas a fazer naqueles momentos, e não podia dar muito do meu tempo a você.
- Ainda não tive minha resposta. – Ela diz, no mesmo tom sério de antes... Mas esse homem não parece se intimidar nem um pouco. – Você vai fugir de mim?
Ele vira seu olhar por cima do ombro por um momento. Sua atenção está voltada ao céu repleto de nuvens escuras, ou o horizonte coberto pelo véu escuro da noite. Não sei, mas com certeza ele está observando algo que não sei o que é.
Ele aumenta seu sorriso, virando-se outra vez a Tamires – Não tenho mais nenhum lugar para ir. Portanto fique tranquila, não pretendo "fugir" de você.
Tamires assente, olhando para mim de relance – Muito bem... A primeira coisa que quero entender, o que é aquele espaço vazio estranho?
- Aquele é o ponto mais próximo do Abismo. Pessoas que conseguem mergulhar até esse ponto conseguem encontrar as portas, e por elas podem entrar no Abismo. – Responde calmamente, agora ambos parecem me ignorar.
- E porque além de mim, só Anne e Edan também estiveram ali? – Ele ergue as sobrancelhas com a pergunta – É, também perguntei aos dois.
Ele apenas olha a garota por longos segundos – Com eles deve ser porque atingiram algum estado de sono muito profundo, a ponto de se aproximarem do Abismo... Já você, é porque possui uma porta do Abismo aberta.
- Se era só por isso, então me diz o motivo de os dois terem estado naquele lugar tantas vezes? E ainda por cima, por que você apareceu tantas vezes aos dois? – Tamires gesticula sem parar.
- Eu tinha assuntos pendentes com ambos. – Ele leva uma mão ao pescoço e fazendo uma pequena massagem. Neste segundo ele se faz parecer distante, resmungando algo para si mesmo enquanto estrala o pescoço – Por exemplo, me entreter, e também mantê-los vivos.
A garota não diz nada por alguns momentos. Sua expressão é de total descrença, por mais que ela pareça atordoada com o que acabou de escutar dele.
- Como assim? Mantê-los vivos? – Ela diz entredentes, enquanto a sombria figura aumenta seu sorriso – Por acaso isso é uma piada?!
Tamires grita enfurecida e agarra o homem pela gola de sua camisa. Acabo espantada com sua atitude tão repentina. Ele, porém, mal se abala, nem mesmo muda sua expressão calma.
- Edan me contou o que aconteceu em uma das vezes que você apareceu! Me contou que você tentou matar ele! – Diz numa fúria explosiva.
Num suspiro sereno, o homem tira a mão de Tamires da gola de sua camiseta gentilmente, a fitando sem desmanchar seu sorriso. – Pois bem, tenho uma pergunta a você... Por acaso Edan também lhe contou o que havia dentro de seu peito naquela noite?
Não consigo ver claramente a expressão de Tamires, mas sua irritação é palpável.
- Eram dúvidas. Medos. Incertezas. Desespero... – Ele aproxima seu rosto do de Tamires, e ela recua com a lenta aproximação – Eu consegui ouvir tudo... Mas sabe qual a coisa que gritava com mais força dentro do coração dele?
- O que? – Ela consegue dizer com a voz um pouco trêmula.
- "Eu quero morrer!" – Ele silaba num sussurro assombroso, que pelo silêncio no cômodo, foi perfeitamente audível para mim. Tamires recua com o que acabou de ouvir – Anne era a única coisa que trazia esperanças para ele, e ver sua esperança definhando abalou o garoto.
- Mas... – Tamires gagueja – Mas isso não era... Não era motivo para tentar matar ele...
- Tamires, eu não tentei matar o Edan. – Ele abaixa seu olhar por um instante – Eu apenas estava concedendo sua vontade, assim como concedi a vontade da Anne retornar a vida para permanecer com o Edan, mesmo quando seu corpo não aguentava mais.
O silêncio se vê presente entre eles por longos segundos. Tamires até tenta falar, porém ela se perde em suas palavras e nada compreensível pode ser ouvido dela.
- Naquela noite, Edan estava tomado pelas incertezas, e isso atraiu tanto o desespero quanto o caos para si. – O cara do casaco pausa por um instante – Suas vontades estavam conflitantes, mas cada vez mais, sua esperança estava desaparecendo, dando lugar ao desespero causado por todo o seu medo e a impotência que sentia por ver a Anne morrendo. Isso fazia com que ele implorasse para morrer, para que sua dor enfim desaparecesse... E sou capaz de ouvir, e conceder vontades.
- Mas... Como ele poderia... – Tamires balbucia.
- O desespero de alguém que se vê impotente enquanto seu mundo desmorona a cada dia é enlouquecedor, querer ajuda mas saber que ninguém virá... Era isso que ele sentia dentro de si, e mesmo assim Edan decidiu se agarrar na pouca esperança que ainda existia dentro de si, e continuou acreditando na Anne. – Ele observa Tamires, e por um momento é como se eu não estivesse mais aqui para eles – Foi isso que trouxe vontade para que ele continuasse vivo, e também o que fez com que eu não o matasse.
- Meu Deus... – Tamires sussurra com o olhar baixo. Sua voz foi trêmula.
- Mas voltando a questão inicial... – Ele diz de repente – É possível que o contato prolongado que ambos tiveram comigo acabou resultando nisso...
- E nós, que temos contato com você... – Ela hesita um momento – Alguma consequência vai acontecer com nós?
- Se me encontrassem alguns meses antes, sim. – Ele diz sem rodeios, de forma tão entediada que pareceu ter dito o obvio – Se uma pessoa apenas encostasse em mim, era sinal de uma doença mortal e incurável, que levaria o corpo da pessoa a autodestruição... Isso te soa familiar, Tamires?
- A doença da Anne... – Ela sussurra abaixando o olhar – Então... Então foi você...
- Exato, Anne se encontrou comigo quando era criança e acabou contraindo essa doença ao esbarrar em mim... O mesmo também ocorreu com o pai do Edan. – Ele abaixa seu olhar, perdido em seus pensamentos – A princípio, achei ser por causa da influência do Abismo, mas depois entendi que isso foi resultado do pouco controle que tinha do meu poder.
Tamires afasta devagar, olhando para mim com um semblante assustado enquanto leva as mãos ao cabelo e caminha pela sala. Eu entendo bem o motivo da sua reação, devo estar da mesma forma. Se essa Anne ficou doente só por encostar nele, o que pode acontecer com nós?
Tamires acabou de tocar nele, e me lembro muito bem que esse homem já me tocou um tempo atrás, quando fizemos a viagem até a praia. Isso significa que nós duas podemos ter contraído uma doença mortal?
Levo ambas as mãos em frente à boca e respiro fundo, sem saber como reagir. Me sinto baqueada com essa possibilidade, meus olhos correm de um lado ao outro da sala, tento encontrar palavras para dizer algo, qualquer coisa que seja, mas nada encontro.
Consegui me livrar de uma entidade, mas agora posso ter pegado uma doença sem cura vinda de um ser mil vezes pior?
A garota vai ao sofá e se senta pesadamente, desabando o rosto sobre uma das mãos e encarando o chão fixamente. Vou até ela e me sento ao seu lado, pousando a mão em seu ombro tentando conforta-la de alguma maneira... Por mais que eu também esteja sem reação.
- Meu Deus... Onde que eu fui te enfiar Clara... – Tamires sussurra sem olhar para mim.
- Calma Tamires, fui eu quem te chamou para pesquisarmos mais desse cara. – Tento acalma-la, sussurrando no mesmo tom – Você não me colocou em coisa nenhuma.
- Sei disso, mas me refiro a quão malucas as coisas estão ficando. – Ela responde, erguendo a cabeça e respirando fundo. – Não quero nem pensar no que pode nos acontecer agora.
- Quer dizer que só de encostar nele, estamos doentes. – Digo esfregando as mãos no rosto repetidas vezes – E o pior de tudo é que, seja lá o que contraímos, não tem nenhuma cura... E sabe-se lá o que vai acontecer por ficarmos perto dele.
- Tem isso também, ele ta bem aqui. – Tamires aponta ambas as mãos a ele – Vai saber o que vai nos acontecer só por estarmos tão próximas dele.
- Caramba, vocês conseguiram ir bem mais longe do que eu poderia esperar, meus parabéns por tanta criatividade... Ou por tanto medo afobado... – Ele diz de repente, atraindo nosso olhar. Ele nos observa, sem conseguir conter uma gargalhada por muito tempo. – Pelo visto, ignoraram mesmo uma coisa óbvia que acabei de falar, mas irei refrescar suas escassas memórias... Meses antes, encostar em mim resultaria em uma doença desse porte... Hoje, isso já não acontece mais, vocês podem respirar aliviadas.
- Como pode ter tanta certeza disso? – Aperto os olhos.
- Porque foi algo que aconteceu a muito tempo atrás, de quando eu ainda não tinha tanta domínio e consequências mais graves aconteciam. – Ele ergue suas mãos levemente, seguido de seus ombros saltando – Hoje em dia, tenho um pouco mais de domínio, e isso já não acontece mais.
Tamires respira fundo, olhando dele para mim por repetidas vezes. Ela junta as mãos em frente ao rosto, assumindo um semblante pensativo. Imagino o tanto de coisas que devem passar pela cabeça dela nesse momento.
- Estou esperando, tem mais algo a perguntar? – Ele diz calmamente.
- Se quiser, eu continuo daqui pra frente... – Sussurro, trazendo seu olhar a mim.
Tamires não responde por alguns segundos. Seu olhar mostra como está reflexiva, até que enfim, ela nega balançando a cabeça – Não precisa Clara, estou bem... Ainda tem mais algumas coisas que quero saber dele.
Assinto e ela volta a olhar para aquele homem. Tamires aperta as mãos enquanto o observa, para ela, estar diante dele deve ser algo extremamente complicado, ao mesmo tempo que deve trazer algum tipo de emoção maluca por estar diante da possibilidade de respostas.
- Então... – Ela começa a falar – Quer dizer que hoje, se nos aproximarmos ou encostarmos em você, não vai nos acontecer nada de mal?
- Exatamente, vocês ficarão bem. – Ele responde rindo.
Tamires respira fundo e solta todo o ar pela boca, levantando do sofá em um pulo e vai pisando forte até o homem. Tanto eu como ele olhamos surpresos para a garota, que fecha o punho e o golpeia no peito com bastante força.
Ele sequer se abalou com o golpe recebido, mas olha para ela com uma sobrancelha erguida. Acho que como eu, o Cara do Casado não entendeu nada do que acabou de acontecer.
A garota sacode a mão algumas vezes, ficando de costas para ele e cruza seus braços, com uma expressão furiosa no rosto – Estava te devendo isso há meses.
Boquiaberta observo a cena inesperada que acabou de desenrolar. Entre tantas coisas que passam pela minha cabeça, a que grita com mais força é o questionamento do que raios acabou de acontecer.
Tamires já deixou claro que tem medo dele... E do nada socou ele? O quão aleatório isso foi?
O homem abaixa o rosto e leva uma mão a testa, em uma risada que logo se transforma em uma gargalhada sincera. – Meses Tamires? Acho que te dei essa oportunidade já faz mais de um ano.
Ela continua com a cara fechada, porém não por muito tempo. Posso ver bem um discreto sorriso surgindo em sua boca – É... Isso é verdade...
Novamente Tamires fica séria, voltando seu olhar a ele. Deu a entender que ela ainda não acabou, só não sei se ela vai fazer mais perguntas, ou se irá soca-lo outra vez.
- Como soube que estávamos atrás de você? – Tamires pergunta seriamente, e essa é uma dúvida que mal passou pela minha cabeça até agora – E como nos encontrou?
- Julgando pela maneira como você vem pesquisando sobre o Abismo nos últimos meses, deduzir que estava atrás de mim não foi muito difícil Tamires... – Apesar de calmo, ele novamente fez aparentar à coisa mais óbvia do mundo – Já encontrar vocês... Você possui uma porta para o Abismo aberta, então foi fácil sentir sua presença e descobrir onde vive... A meses já sabia onde você morava.
- Espera, então... – Tamires hesita – Você sempre soube onde eu estava?
- É claro... Enquanto estou no Abismo não, apenas quando venho para este mundo. A partir daí, volto a sentir sua presença. E caso você "me chamasse", eu apareceria. – Ele responde erguendo seus ombros, e Tamires acaba boquiaberta.
- Era tão fácil assim chegar até você? – Pergunta irritada. Ele confirma com a cabeça, nitidamente se divertindo com a reação de Tamires – Se sabia que eu estava atrás de você, por que nunca apareceu pra mim antes?
- Você nunca me chamou. – Ele ergue suas sobrancelhas ao alto – E também, era bem mais divertido ver como você se esforçava para tentar chegar até mim. Não quis ser estraga prazeres.
- Você teria me poupado muito trabalho! – Ela reclama totalmente irritada.
Seu olhar vem a mim, e acabo me encolhendo no sofá. O cara do casaco me analisa alguns segundos, e confusa, Tamires também tem sua atenção em mim.
- Agora que estamos nesse assunto, até pouco tempo ainda sentia a presença da Clara, só que nos últimos tempos não consigo mais. – Ele comenta, claramente questionando o que aconteceu.
- A porta do Abismo que havia em mim foi fechada semanas atrás. – Por alguns segundos ele me encara, acho que absorvendo a informação.
- Isso já explica muita coisa. – Sem deixar a sua calma, ele aproxima-se de mim em passos curtos – Como conseguiu fechar a porta?
Olho dele para a garota, que concorda discretamente com a cabeça. – Não tem outro jeito de contar, eu estava na minha cabeça tentando recuperar o controle do meu corpo. Cheguei a encontrar a porta, mas não fui eu quem a fechou.
- Não? – Ele ergue uma sobrancelha – Então... Quem foi? Aquele ser que residia em você?
Nego com a cabeça. – Foi alguém que surgiu da porta do Abismo...
Sei que alguém atravessou aquelas pesadas portas, mas sua aparência tornou-se nebulosa entre minhas lembranças. O que lembro daquele ser é o temor que ele causava apenas com seu olhar e com o quão ameaçadora era sua presença.
Na verdade, recordo-me de pouquíssimas coisas daquela experiência que tive ao ser possuída. Os locais que passei, as coisas que fiz, muito já foi esquecido... A única lembrança que permanece intacta é aquela visão do Ibirapuera, aquele ambiente tão tranquilo...
E principalmente, do rosto daquele rapaz que me acompanhou desde o momento que me libertei até a hora que voltei ao controle do meu corpo... Um lado puro da entidade que nunca imaginei existir e que hoje, tento não pensar no quanto sinto falta.
- Por acaso... – O cara do casaco volta a falar, me arrancando dos meus pensamentos – Era alguém com escamas em torno do corpo?
Junto às sobrancelhas, hesitando em responder. – Eu... Eu acho que sim. Não me lembro direito.
Ele leva uma mão ao queixo e dando um suspiro entediado – Ai... Provavelmente foi o Alaarn...
- Alaarn? – Tamires se pronuncia, atraindo nossa atenção.
Volto ao dia que a conheci na casa de Ferdinand. Ela citou esse mesmo nome, mas nenhum de nós sabia qualquer coisa.
- É, acho que não lembra, mas você o viu quando entrou no Abismo. – Ele diz para Tamires.
- Não, eu não me lembro dele. Quem é Alaarn? – Tamires questiona abrindo as mãos. Pisca algumas vezes, e então diz – Espera um pouco, eu já estive no Abismo? Quando foi isso?
O homem solta uma risada – Sim, apesar de não terem lembranças muito nítidas, vocês duas já estiveram dentro do Abismo antes.
Pulo do sofá, e Tamires e eu trocamos um olhar. Eu realmente não me lembro se já estive no Abismo. E quando tento me lembrar disso, nada me vem em mente.
- Enfim... – Digo sacudindo a cabeça – Nós duas estivemos lá e não lembramos, agora voltando à pergunta principal... Quem é Alaarn?
- O dragão negro do Abismo. – Responde nos olhando.
Qualquer coisa que Tamires e eu poderíamos dizer agora acabou de se dissipar. Um dragão?
Depois de tudo que já passei e vi nesses últimos tempos, já achava não ser mais possível me impressionar com algo. Nesse segundo vejo o quanto estou enganada.
- Um dragão... Acho que já tive o bastante por hora... – Tamires diz, indo até a janela e apoiando as mãos no batente, abaixando seu rosto devagar – Se quiser, pode fazer suas perguntas Clara... Eu não sei se consigo mais...
- Tem certeza? – Questiono, e ela balança a cabeça silenciosamente.
Diante da falta de palavras de Tamires, sua atenção finalmente se vira para mim. A quietude nos envolve, e neste momento que nos encaramos por longos segundos, aos quais parecem eternos. Tenho a impressão do mundo e o tempo terem parado por completo.
Agora que estou aqui, novamente me dando conta dessa situação, reflito quantas vezes quis estar diante dele. A Cria do Abismo que acredito ter alguma resposta sobre a entidade dentro de mim, que só com sua presença conseguiu assombrar Amanda, Tamires e a própria entidade.
E nesse instante consigo me lembrar das várias vezes que o vi. Desde a primeira vez quando ainda estava com Ricardo, na balada, nas duas vezes que o vi na praia, e também naqueles locais estranhos que apareci... Aquele bosque e também na praia... Lembro perfeitamente.
Antes que perceba, estou tremendo diante dele. Tremendo pelo medo e pela ansiedade.
Foi como das outras vezes que o vi... Ele não aparenta ser nada demais a julgar apenas pelo seu rosto jovem ou pelas roupas pouco chamativas que usa, ele parece ser só mais um rapaz comum sem nada de especial ou interessante...
Mas as coisas que vi e sei a seu respeito dizem o total oposto. E por isso, apenas olhar em seus olhos nesse instante é o bastante para me fazer temer pela minha vida.
- Eu... Começarei com algo simples... – Minha voz falha. A tensão dentro de mim está maior do que eu esperava. Aperto os punhos, tentando me manter firme – É uma curiosidade minha. Sempre que ouço a seu respeito, te chamam de "Cara do Casaco"... Qual seu nome?
Percebo o espanto surgindo em seu rosto. Sua momentânea ausência de palavras me faz acreditar que não terei uma resposta dele.
Aos poucos seus lábios curvam-se para baixo – Não tenho um nome.
- O que? – Sussurro surpresa. Estava esperando por qualquer resposta... Menos essa.
- Exatamente o que ouviu Clara. – Seu olhar perde força e cai aos nossos pés. Novamente, ele leva as mãos aos bolsos, e continua a falar – Abandonei meu nome quando me tornei "eu".
- Mas... Mas por quê? – Questiono incrédula.
- Não havia sentido manter um nome que apenas remetia a uma vida já acabada... – Ele sorri novamente, porém dessa vez seu sorriso é melancólico. Seus poucos sorrisos anteriores tinham um ar calmo, ou estavam carregados de alguma superioridade implícita, indiferença, ou até mesmo aparentavam ser sorrisos vazios... Apenas esse pareceu melancólico – Meu antigo nome apenas causava problemas, intensificava o caos que existe em mim hoje... Por isso, simplesmente decidi que era hora de abandonar meu antigo nome e tudo que ele carregava.
Pisco repetidas vezes, boquiaberta com ele. É incrível como ele conseguiu fazer ainda mais perguntas pipocarem dentro da minha cabeça, e nem tenho ideia de qual pergunta fazer a seguir.
- Não era bem isso que eu esperava... – Digo baixinho, apesar de ter certeza que foi alto o bastante para ele conseguir ouvir. Limpo a garganta e continuo. – Tudo bem então senhor "sem-nome"... Minha primeira pergunta, em algumas conversas que tive com Tamires, ela me contou que você costuma observar pessoas e parece nem fazer questão de ser discreto, e nos últimos dias estou tendo a impressão de estar sendo observada... Por acaso é você?
Ele me encara, erguendo uma sobrancelha – Não sou eu. Não tenho como saber onde você está.
Não respondo, mas faço uma cara de quem anseia por mais explicações.
Ele parece entender de imediato – Você mesma já deu o motivo. Não consigo te localizar, porque você não tem mais uma porta do Abismo aberta.
- Então não é você... – Digo em voz baixa, sem deixar de olhar ele.
- Deixei de sentir sua presença a alguns dias, e quando isso aconteceu, eu não estava te observando em nenhum momento. – Explica me observando.
- E antes? Já teve outras vezes que você aparecia do nada e ficava me observando, e de repente você não está mais atrás de mim? – Questiono erguendo as mãos.
- Você era alguém que tinha uma presença diferente em torno de si, e eu te observava para descobrir mais. Depois que me dei por satisfeito, você fechou a porta e não sentia mais sua presença... – Ele ergue seus ombros – Se existe alguém, ou alguma coisa te observando... Tenha certeza de que não sou eu.
O Cara do Casaco não pareceu estar mentindo. Tenho minhas dúvidas quanto a ele, e também se posso acreditar em cada palavra que ele disse... Darei um voto de confiança nisso.
Suspiro e ergo meu olhar ao teto, contando até dez lentamente. Baixo meus olhos e volto minha atenção a ele – Próxima pergunta... Quando eu estava possuída, havia um lado bom da entidade, era um ser consciente e separado do lado ruim... Ele me disse que estava fugindo do Abismo, mas não se lembrava de muita coisa... Você sabe dizer o que estava havendo lá?
Seu olhar volta a se erguer, e a princípio acho que ele não vai me responder. É horrível olhar para ele e não saber qual resposta terei, ou se terei uma resposta – Sei. Foi no dia que aquela dimensão se tornou um verdadeiro campo de guerra.
Aperto as sobrancelhas – O que? Mas os seres daquele lugar não são pacíficos, ou quase isso?
- Você está certa Clara, eles não costumam ser agressivos. Aquilo não era um conflito iniciado entre criaturas do Abismo... – Ele diz seriamente, e sem perceber estou tão tensa que prendo a respiração – Aquilo era uma caça às bruxas.
A esse ponto, até Tamires ergueu sua cabeça e está nos olhando sobre o ombro. Pelo visto, esse assunto também chamou sua atenção.
- O que...? – Sussurro abaixando o olhar. – Mas... Quem estava fazendo isso? Você?
- Não. Foram dois opostos. – Seu tom está ainda mais sério do que antes – Anjos e demônios.
O choque da informação me atinge em um forte baque. Por mais uma vez esses seres são mencionados, e volto ao dia que Ferdinand disse sobre eles... Que até mesmo os anjos podem ser problemáticos.
Hesito por um instante, tentando mensurar o nível do problema que aconteceu naquele lugar e conseguir absorver essa informação. Se isso for verdade, então as últimas lembranças da entidade serem de estar fugindo do Abismo por estar sendo perseguido fazem total sentido.
- Isso é estranho... – Sussurro – Não entendo... Por que um conflito no Abismo?
O cara do Casaco afasta-se de mim devagar – Tenho uma hipótese...
- Já serve. – Respondo, tendo em mente o lado bom da entidade e tudo que deve ter passado antes de encontrar a porta que o levou a minha mente.
- Esses dois grupos possuem uma rivalidade antiga, mas não vão entrar em conflito em seus próprios territórios... E o Abismo é um lugar neutro, não responde a nenhum dos dois lados, e alguém me contou que eles não são muito queridos. – Ele solta um suspiro. – Talvez só tenham decidido unir os pontos. Resolverem as diferenças, ao mesmo tempo em que realizaram uma limpeza no lugar.
- Se tudo isso for verdade, eles só usaram esse desentendimento como pretexto... – Tamires questiona, atraindo nossa atenção – Mas depois, o que houve?
- Quando cheguei ao Abismo, às guerras tinham começado já a algum tempo. – O cara do casaco volta a me olhar atentamente – Eu estranhei porque tudo estava muito quieto, e não demorou muito para notar uma grande movimentação longe de onde estava. Fui atrás para investigar, quando aquela sua entidade esbarrou em mim. Perguntei o que estava acontecendo, mas ele estava tão assustado que nem conseguiu responder, então só o deixei ir embora. Depois disso, fui parar aquela briga.
- Você sozinho? – Pergunto surpresa.
- As únicas três crias do Abismo foram assassinadas, e as poucas criaturas que ainda restavam sequer conseguiam se defender. – Ele para um momento – Não havia mais ninguém ali além de mim e uma companhia exausta... E Alaarn ainda não pertencia ao Abismo.
- Ta, mas como foi isso? – Tamires se aproxima de nós.
Ele solta uma curta risada, daquelas de quando se está inconformado com algo – Acho que posso resumir tudo em "dialogo estava fora de cogitação".
Ergo as sobrancelhas bem ao alto em pura surpresa. Tamires gagueja algo baixinho, mas nenhuma palavra coesa sai de sua boca.
- Enfrentei os dois grupos e consegui expulsar a todos... Só que naquela altura, o estrago já estava feito e a maior parte das vidas foram perdidas. – Ele suspira frustrado. Ele obviamente se sente bem afetado pelo que ocorreu naquela dimensão – Esse incidente foi a cerca de cinco meses atrás, mas o tempo no Abismo corre diferente, lá já se passaram mais de um ano, e as consequências ainda permanecem.
- Nunca pensei que as coisas por lá pudessem estar tão sérias... – Tamires diz em baixo tom.
- Eu imaginava o Abismo sendo um lugar mais calmo do que bestial... – Sussurro de volta para ela, cruzando meus braços – Descobrir isso torna as coisas bem mais tensas...
- Vocês tem mais alguma pergunta? – Ele diz após alguns segundos, nos olhando fixamente.
- Ainda não entendi uma coisa... – Digo depois de breves segundos – Você deixou claro que não era uma cria do Abismo antes, o que fez você se tornar uma?
- "Me tornei" porque começaram a me chamar dessa forma. – Ele ergue seus ombros, levando as mãos a cintura – Depois do incidente com os anjos e demônios e a expulsão deles do Abismo, os seres que estavam ali próximos assistindo todo o conflito, começaram a me chamar assim alegando que sozinho eu já tinha bem mais poder que as antigas três crias reunidas... Acho que isso só foi por eu tê-los protegido e queriam me bajular, não tenho certeza...
- Então... Você nunca... – Tamires balbucia, e ele ergue seus ombros.
- Sim, nunca pertenci ao Abismo e nem sei ao certo como as crias do Abismo surgem. Tudo que aconteceu foi eles me chamarem dessa forma até hoje. – Ele salta as sobrancelhas – Como disse antes, originalmente sou apenas um humano.
- Apenas um humano que fez muita coisa grande... – Digo revirando os olhos, e recebo uma expressão confusa dele. Resolvo esclarecer o que acabei de mencionar, unindo a mais uma das minhas perguntas – Aliás, o que foi aquilo da AACD que você esteve envolvido meses atrás?
- Estava entediado e muito afim de me divertir um pouco, cumpri uma das minhas vontades e nada mais... – Ele responde calmamente.
- Como assim? – Tamires questiona erguendo uma sobrancelha.
- Enquanto estava me recuperando após meu retorno do Abismo, passei um tempo observando algumas pessoas e lugares, e aqueles hospitais me chamaram a atenção. – Ele caminha devagar até a janela, apoiando os cotovelos na beirada – Não costumo me importar com as pessoas, principalmente com vocês adultos e os velhos, e odeio fingir que me importo. Apenas alguns poucos tem certa afeição da minha parte... Mas ver tantos jovens presos em macas hospitalares devido a doenças e deficiências me incomodou, então tomei a atitude que julguei a mais sensata.
- Você faz isso tudo parecer pequeno. – Rebato juntando as sobrancelhas.
- E não é? – Responde sem sequer olhar para nós. – Apesar da minha irmã pensar o contrário, não existe nada de especial no que fiz...
Não consigo encontrar palavras para responder ao ver como ele trata isso com tamanha insignificância. Por acaso esse homem não tem noção do tamanho da coisa que ele fez naquela noite? Ou será que ele simplesmente não se importa nem um pouco?
- Ta bom... E o que foi aquilo dos orfanatos e todas as crianças desaparecidas? Você também esteve observando elas? – Acuso o encarando, mas ele me olha com estranheza.
- Orfanato? – Questiona – Sinto muito, mas não faço a menor ideia do que você está falando. A única coisa que tenho envolvimento foi o incidente dos hospitais.
É difícil para mim acreditar nele, mas não tenho nenhuma prova ou argumento que ligue ele ao desaparecimento de várias crianças... Acusar que foi um ato paranormal não é o bastante, afinal tenho noção que ele não é a única criatura com capacidade para tanto.
- Voltando no assunto da AACD então... Como conseguiu fazer isso? – Tamires questiona e trocamos um olhar – Foi por causa daquela tal "vontade" que você disse?
- Sim, no momento em que me recuperei por completo. – Ele continua sem nos olhar.
Tamires leva as duas mãos aos cabelos, descendo os dedos até sua nuca em um suspiro pesado e cansado – Apesar de ainda não ter mudado de ideia... Começo a pensar que posso ter julgado mal ao chamá-lo de "monstro"... Por mais que você pareça um...
Nos calamos por um momento. Um longo momento, que talvez se um alfinete caísse no chão, conseguiríamos ouvir com perfeição.
Não sei dizer como ou o porquê, mas a energia a nossa volta acabou de ficar muito pesada de um segundo ao outro.
- Ei... Calma, isso não é necessário... – Ouço ele sussurrando como se fosse um pedido a alguém, esfregando a mão lentamente em frente aos olhos, seguido de um profundo suspiro. Ele disse tão baixo, que deu a impressão de estar falando com outra pessoa, e não conosco.
Sacudo a cabeça, e nesse momento uma ideia me vem em mente. Desconfio sobre esse tal poder dele, então acho que posso fazer um teste para descobrir a veracidade de suas palavras... Será mais como uma brincadeira – Quero tentar uma coisa.
Tamires me olha, e o Cara do Casaco me encara sobre o ombro. Sequer sei o resultado disso, mas acho que vale a tentativa para descobrirmos mais coisas a respeito dele... E principalmente, ver esse tal poder na prática.
Estico uma mão em direção a ele, e sorrio de canto – Faça uma barra de ouro aparecer bem aqui.
- O que? – Tamires questiona incrédula – Clara, o que é que você está pensando?
- O que foi? Só estou... – Paro de falar ao sentir um repentino peso sobre minha mão. Tamires é a primeira a olhar, e sua expressão de surpresa me deixa em choque – Por favor, me diga que não tem uma barra de ouro na minha mão...
Viro meus olhos para minha mão, e vejo a barra dourada que surgiu do nada entre meus dedos. Acabo boquiaberta com o que vejo, tentando encontrar palavras para descrever meu espanto.
Ele aproxima de mim com as mãos nos bolsos. Seu olhar para a barra entre meus dedos é tranquilo, quase entediado – Uma barra de três quilos já está bom para você, ou prefere uma mais pesada?
- Mas... Mas eu... – Gaguejo – Eu estava brincando... Como você conseguiu fazer isso? Ela... Ela é verdadeira?
Ele segura minha mão devagar, encarando fixamente a barra de ouro que fez surgir totalmente do nada na mais absoluta calma. – Toda e qualquer vontade minha irá se realizar imediatamente, não importa o tamanho e sua complexidade, com a única consequência do grande desgaste que recai sobre mim pelo seu uso... Esse é o poder da vontade.
Permaneço calada, olhando fixamente a barra. Consigo sentir bem o frio do metal em meus dedos. O dourado reluz com a luz da sala e seu brilho é quase hipnotizante, acho que nunca vi algo assim em toda minha vida.
Ele segura minha mão devagar, e com a ponta do dedo ele toca na barra. Devagar ela começa a mudar para uma forma estranha. Ela vai se moldando em torno do meu pulso, assumindo o formato de uma pulseira com detalhes que a fazem se assemelhar a uma coroa, além de fazer surgir uma correntinha que dá seguidas voltas em torno do meu braço.
Ergo meu olhar a ele, sem acreditar no que acabei de ver – Sim... É ouro de fato. Se quiser verificar com algum especialista, fique à vontade.
- Mas... – Começo a falar, mas me perco em minhas palavras.
- Você queria uma prova de como meu poder funciona, e aqui está a prova... Viu com seus próprios olhos pela segunda vez. – Ele vira seu olhar a Tamires – Você já está familiarizada com isso Tamires, afinal já viu outras vezes.
- É... Me lembro muito bem... – Ela diz, e eu estou sem reação pelo que presenciei.
- Pois bem... – Ele diz preguiçosamente, bocejando e se espreguiça em seguida – Vocês tem mais perguntas?
- Só tenho mais duas perguntas... – Tamires diz cautelosa. – Hoje... O que você é?
Ele nos olha sobre o ombro – Originalmente fui um humano como vocês, mas abandonei minha vida e perdi aquilo que me tornava humano... Hoje sou chamado e visto por todos como uma Cria do Abismo... Mas no fundo, já não sei mais quem ou o que sou.
Sua resposta nos silencia. Do mesmo jeito que ocorreu quando o vi naquela praia, consigo sentir um peso muito grande em suas palavras. Apesar de sérios, seus olhos escondem algo, que com certeza é relacionado à vida que ele diz ter abandonado.
Mas se questioná-lo, terei alguma resposta?
Da última vez, ele desconversou e tratou tudo como não sendo nada importante. Tentar uma segunda vez pode acabar dando no mesmo resultado.
- Qual a segunda pergunta? – Questiona de repente, encarando Tamires fixamente.
Ela caminha em passos vagarosos, apertando a boca e levando seu olhar ao chão. Ela ergue seu olhar vacilante e foca nele – O que você almeja? Quais seus objetivos?
O Cara do Casaco fita Tamires, e logo seu olhar vai ao chão. – Antes de responder a essa pergunta, gostaria de levá-las a um lugar...
- Que lugar? – Pergunto, aproximando e parando ao lado de Tamires.
- Um onde poderei responder a pergunta de Tamires. – De repente sinto como se meu corpo estivesse sendo carregado, e tudo ao redor escureceu completamente.
Corro os olhos ao redor repetidas vezes, tentando encontrar qualquer coisa que me faça crer que ainda estamos no apartamento de Tamires, mas não. Estamos realmente em outro lugar.
O lugar tem um forte vento, um odor desagradável, e uma energia muito pesada, de uma forma estranhamente agoniante. Meu coração bate aflito, não por ter sido trazida, mas sim por causa desse lugar em si.
Apesar da noite e o céu carregado por densas nuvens, aos poucos, vou identificando a silhueta de algumas coisas ao redor. Estamos no que parece ser uma colina, o gramado daqui é baixo, com poucas arvores ao redor, além de uma construção próxima... Mas tudo está tão escuro que é impossível dizer o que é.
Um intenso clarão no céu, seguido de um longo trovão ecoando no ar, me permite ver tudo a nossa volta por um curto instante. O choque me tira as palavras.
Isso... Isso é um cemitério?
- Não se preocupem, será rápido. – Ele volta a falar, caminhando devagar. – Venham comigo.
Tamires e eu trocamos um olhar receoso, mas mesmo assim o acompanhamos.
Nossos passos ecoam no gramado, e vez ou outra meu olhar é atraído para alguns dos túmulos ao nosso redor. Poucos são aqueles com grandes lápides, a maioria são discretos, mas não torna as coisas menos mórbidas do que já estão.
- É aqui... – Ele diz, parando de caminhar. Tamires e eu paramos uma de cada lado. O cara do Casaco encara fixamente uma placa no chão, com quatro nomes escritos – Este é o lugar onde tanto eu, como meu nome, e meus objetivos foram enterrados.
Meu olhar permanece na lápide, observando cada um dos nomes e as datas, absorvendo todo o peso do que estou vendo agora... Pelas datas, são dois adultos e duas crianças.
Tamires avança devagar, sem desviar seu olhar da lápide. – Quem eram? – Sua voz sai totalmente vacilante.
A figura sombria abaixa devagar, passando a mão pela placa lentamente sob a luz de um novo clarão, e assim permanece. – Pessoas que um dia foram minha família, e por não ter sido rápido o suficiente, agora descansam... Quem fui antes, está enterrado junto dessas pessoas.
Ele fecha seus olhos e abaixa a cabeça devagar, mantendo sua mão sobre a placa por longos segundos, quando por fim, o Cara do Casaco torna a ficar de pé.
A sensação de momentos antes se repete, e quando dou por mim, estamos de volta ao apartamento de Tamires.
- Não tenho mais um objetivo, nem um propósito... – Ele diz tendo um pequeno sorriso no rosto. Seu tom foi neutro, mas a sinceridade em suas palavras foram nítidas – Eu apenas existo.
Pela cara de Tamires, acho que ela se sente satisfeita com essa resposta... Ou talvez, ficou sem saber o que dizer, da mesma forma que eu fiquei em vários momentos.
- Acredito que vocês não tenham mais nada para me perguntar... Se não se incomodam, acho que já vou indo. – Ele se vira, passando ambas as mãos pelo pescoço e massageando – Fiquei com vontade de visitar alguns lugares...
Mal temos tempo de protestar. Ele balança sua mão em um movimento ao alto, e a sua frente uma fenda de tons azuis escuros nas bordas e preto no centro surge a sua frente.
Estou boquiaberta com o que ele acabou de fazer. Essa é mais uma das coisas que me pegam completamente desprevenida, e sequer sei como reagir devido à surpresa.
A fenda cresce até atingir um formato esférico, e ter espaço mais que suficiente para a travessia de uma pessoa. A presença dela parece puxar suavemente meu corpo para seu interior.
- Antes de ir, gostaria de dizer algo a vocês... – O cara do casaco se vira para nós – A você Tamires, não se preocupe com seus tios, eles despertarão na manhã seguinte acreditando que tiveram um dia cansativo... E também, você possui uma porta do Abismo aberta. Por isso não é mais necessário ficar me procurando... Basta me chamar, que em pouco tempo aparecerei para você...
- Então... Nos encontraremos de novo...? – Tamires sussurra espantada.
Ele sorri de canto – Se assim desejar, então talvez sim... E quanto a você Clara...
Recuo um passo por ele me mencionar tão de repente.
- No momento em que segurei sua mão, tive a certeza que a porta do Abismo que havia em você foi fechada, por isso deve ter sido só impressão minha, mas... – Ele se cala, juntando as sobrancelhas e me olhando fixamente – Por um segundo senti algo bem fraco... Acho que existe algo adormecido dentro de você...
O que?
Dito isso, ele se vira e caminha para dentro da fenda, que se fecha poucos segundos depois. Permaneço boquiaberta com o que acabei de ouvir dele, mesmo se eu quisesse perguntar o que ele quis dizer, o choque foi tão grande que eu não conseguiria reagir...
Aliás, eu já não consigo reagir, então o que é que eu estou falando?
O baque da informação foi tão grande que essa última coisa me fez esquecer momentaneamente todo o resto que descobri essa noite, e estou tentando inutilmente processar todos os meus pensamentos que viraram uma verdadeira bagunça.
Existe algo adormecido dentro de mim... Será que ele quis dizer o lado bom da entidade ou...
- Clara? – Tamires me chama, tocando meu ombro de leve – Você está bem?
Gaguejo algumas vezes, meus pensamentos de agora levam muito tempo até finalmente se organizarem em palavras compreensíveis – Eu... Acho que sim...
Tamires me encara, talvez não acreditando em meia palavra que eu tenha dito. Não a julgo por isso, vendo a maneira como respondi, é difícil confiar que eu realmente esteja bem.
- Hoje foi um dia produtivo... – Volto a falar após me recuperar um pouco – Conseguimos bem mais do que esperávamos.
Quero mudar o rumo da conversa na tentativa de conseguir colocar minha cabeça no lugar o máximo que eu puder...
- É, nem em sonho eu esperava tanto... Mas agora, acho que preciso de um dia inteiro pra processar tanta coisa... – Tamires se lança no sofá, apoiando o rosto sobre a mão e olhando fixamente para frente.
Sento-me ao seu lado, pendendo a cabeça para frente e apoiando a testa sobre a mão, buscando controlar essa bagunça na minha cabeça. De tudo que ouvi do cara do casaco, suas últimas palavras são as que ecoam mais forte em meus pensamentos.
Não sei como reagir e nem sei o que pensar disso...
Talvez eu deva fazer uma visita a Ferdinand o quanto antes... Ou talvez, passar em uma farmácia e comprar um teste de gravidez...
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