Capítulo 48 - Novos envolvimentos
5815 Palavras
- Vocês tiveram resposta daquela entrevista? – Letícia questiona nos olhando curiosa.
- Não sei a Marina, mas não tive nenhuma resposta... – Respondo com um suspiro, deixando meu celular sobre a mesa e me espreguiçando – Foi tanta coisa maluca que passei que, se eles me ligaram em algum momento, eu não fiquei sabendo.
- Também não fiquei sabendo de nada. – Marina diz frustrada, apoiando o rosto sobre a mão e nos olhando de maneira preguiçosa – E já passou um bom tempo desde que fizemos a entrevista... Só acho que não passamos Clara.
- Será? – Ironizo rindo de leve, e Marina me responde com uma careta e mostrando o dedo.
- Vocês duas lembram que posso fazer indicação lá na empresa, né? – Letícia ergue uma sobrancelha, quando saca seu celular do bolso e começa a digitar algo após alguns segundos.
- Mas o seu trabalho não é estágio, será que a faculdade vai aceitar? – Marina pergunta olhando da Letícia a mim por algumas vezes.
Ergo os ombros – Não sei, acho que sim. Estaríamos entrando na área.
- É, tem esse ponto... – Marina concorda com a cabeça – Como foi com você, Letícia? A faculdade aceitou sem problemas?
Letícia, porém, não nos deu ouvidos. Sua atenção continua totalmente direcionada ao celular, ela ostenta um sorriso bobo no rosto enquanto digita algo sem parar.
Marina e eu trocamos um olhar curioso pela forma que ela está agindo, e voltamos a observá-la quando loira ri baixinho sem desviar seu olhar.
Repentinamente ela abaixa seu celular, e volta a nos olhar com o mesmo sorriso bobo. – O que?
- Nada não... – Marina comenta balançando a cabeça – A faculdade aceitou você dizer que estava efetivada na área?
- Ah sim, só precisei apresentar alguns documentos e isso abateu todas as horas que eu precisava cumprir. – Ela responde animada. – Por isso, acho que vocês podem tentar.
- Não temos nada a perder por tentar. – Concordo pensativa – Quando terão novas entrevistas?
- Vou confirmar com minha supervisora agora... Sendo por indicação, talvez marquem hoje mesmo. – Letícia diz, voltando sua atenção ao celular imediatamente.
- Mas para hoje? – Marina questiona – Será que vamos precisar apresentar alguma coisa?
Ergo os olhos pensativa sobre essa pergunta – Acho que não. Sendo só uma entrevista, não acho que vão nos pedir qualquer coisa além de currículo e um meio de contato.
- Se for só currículo, não tem problema nenhum. – Marina diz convencida – Sempre ando com uns cinco comigo.
- Eu não. – Confesso rindo. – Nem sei se tenho algum comigo.
- A amiga sensata não pode andar despreparada. – Marina diz cerrando o olhar.
Viro-me para minha mochila, puxando minha pasta e deixando sobre a mesa – Se eu não tiver uma cópia aqui, sei que tenho no meu celular... Se precisar é só imprimir.
Marina puxa sua cadeira para mais perto e, novamente apoiando o rosto sobre a mão, ela olha curiosa para minha pasta, enquanto eu começo a busca por algum currículo que eu possa ter deixado perdido aqui.
A primeira folha é justamente uma das minhas runas, e isso parece chamar a atenção da minha melhor amiga, mas ela não diz nada sobre.
Depois de procurar um pouco acabo achando uma cópia, confirmo se está atualizado e mostro para Marina – Viu? Tenho um comigo, acho que daquela entrevista que fizemos.
- Ainda bem. – Marina caçoa rindo, voltando a olhar para Letícia – Sua supervisora falou algo?
E novamente Letícia segue do mesmo jeito de antes, dessa vez com escutando algo no celular com a expressão mais feliz do mundo no rosto.
- Letícia? – Marina sacode uma mão de leve, atraindo a atenção dela em um susto.
- Ah sim, só um minuto. – Ela responde toda perdida, voltando a olhar o celular, tocando a tela por algumas vezes – Se quiserem, pode ser hoje mesmo. Tem horário disponível as três da tarde.
- E ai, vamos tentar? – Marina pergunta me olhando de canto, com um sorriso empolgado.
- Com certeza. – Assinto guardando minha pasta – Podemos almoçar no shopping, e de lá vamos direto para a entrevista. Só não podemos demorar muito para não atrasar a Letícia.
- Ah não, está tudo bem quanto a isso, nós teremos carona... – Ela se cala logo quando menciona a palavra "carona" e tem nossos olhares sobre ela.
Marina e eu nos entreolhamos por mais uma vez, e voltamos a olhar a Letícia, que desvia seu olhar de nós e está ficando cada vez mais vermelha de tão sem jeito. Cada vez mais me surpreendo com o quão tímida ela consegue ser.
- Então... – Ela volta a falar, deixando seu celular sobre a mesa – Iremos encontrar com alguém lá no shopping. Tem problema?
- Não que isso, tem problema nenhum. – Marina diz sacudindo uma mão de forma descontraída, e posso ver como Letícia pareceu se tranquilizar.
Aperto os olhos observando as duas conversando. Estou bem curiosa sobre Letícia estar assim, tenho meus palpites, mas prefiro deixar pra pensar sobre isso depois. Por enquanto, quero focar apenas nessa entrevista de hoje.
Ao final da nossa aula, Letícia já estava com tudo arrumado para sair antes mesmo do professor ter dado a aula por terminada. Não a julgo por fazer isso, só acho curioso ela ter feito isso uns cinco minutos antes do nosso horário normal de saída.
Enquanto caminhamos para fora do campus, Letícia seguia olhando para seu celular por algumas vezes, digitando algo rapidamente e mandando alguns áudios que, devido ao barulho de tantas vozes ao nosso redor, não ouvi mais do que duas palavras desconexas.
E isso se repetiu enquanto seguíamos pela calçada da faculdade até entrarmos no shopping bem ao lado. Logo após isso, ela seguiu na frente dizendo para irmos até a praça de alimentação, enquanto eu e Marina fomos a acompanhando mantendo alguns passos de distância.
Assim que saí da faculdade, uma sensação estranha e contínua recaiu sobre mim. Tive a impressão de estar sendo observada e até agora dentro do shopping, essa sensação não passou, e isso está me deixando bem inquieta.
Olho de um lado ao outro por algumas vezes, mas não encontro nada estranho, e só eu sei como isso está me fazendo passar da inquietação para a aflição. Não é uma simples sensação... É como se eu estivesse diante uma ameaça iminente.
Rapidamente leve minha atenção ao meu colar e tomo a pedra em minhas mãos, porém ele permanece igual, sem reagir a nada.
Mas se não existe nada de errado a minha volta, por que essa sensação não passa?
Novamente olho em volta, para os lados, atrás, procurando por entre as várias pessoas algo que possa estar causando essa sensação desagradável... Mas não importa o quanto olhe, não encontro nada.
- Percebeu que a Letícia está agindo diferente esses dias? – Marina me sussurra, me arrancando da bolha de pensamentos onde me encontrava.
- Sim estou reparando nisso hoje. – Respondo no mesmo tom enquanto sigo olhando para a loira, que novamente está falando algo no celular enquanto olha em volta.
- Isso não é de hoje. – Ela diz me erguendo as sobrancelhas – Já faz umas duas semanas que ela está desse jeito... Sempre no celular, meio aérea e toda feliz.
- Não reparei. – Digo sinceramente, não estive com tanta cabeça para notar nesse detalhe na última semana, mas agora que Marina comentou, acho que tenho vagas lembranças de ver Letícia agindo diferente. – Apesar que já imagino o que pode ser... Se for isso, até faz sentido.
- O que você acha? – Ela me pergunta curiosa, enquanto nos aproximamos das escadas que levam a praça de alimentação.
- Acho que Letícia está apaixonada por alguém. – Digo sorrindo de canto, recebendo um olhar perplexo da minha melhor amiga – Não me diga que não pensou nisso.
- Olha, eu até pensei nisso sim... – Ela responde olhando para o alto – Mas será?
- Antes ela não ficava tanto no celular, não agia desse jeito toda feliz. – Ergo meus ombros – Pra mim, é isso que está parecendo, ela está apaixonada...
- Ou adotou um animal de estimação, um filhote de cachorro, filhote de gato, sei lá... E alguém está contando cada detalhe do bichinho enquanto ela não está em casa. – Marina rebate minha teoria – Porque duvido ela ficar desse jeito com trabalho.
- É, mas quem contaria tantos detalhes criatura? – Ergo levemente as mãos.
Marina segura seu riso – Sei lá, a mãe dela talvez?
- A mãe? Mas a Letícia não mora sozinha? – Pergunto sem conseguir me lembrar desse detalhe.
Escutamos uma pigarreada fingida a nossa frente de repente. Quando nos damos conta, Letícia está nos olhando sobre o ombro com as sobrancelhas no alto e uma tentativa falha de conter um sorriso de diversão.
- Quanto você escutou? – Marina pergunta brincalhona.
- A maior parte, dupla de curiosas. – Ela responde bem humorada, para nosso alívio.
Letícia não nos da nenhuma resposta, acredito que seja proposital apenas para atiçar nossa curiosidade. Ela segue na frente já entrando na praça de alimentação, parando bem ao lado como se garantisse o lugar, e nós duas acabamos fazendo o mesmo.
Imaginei que nos sentaríamos, mas Letícia está passando seu olhar pelo lugar inteiro como se procurasse por algo. Estou prestes a perguntar, quando vejo alguém conhecido se levantando e acenando de leve em nossa direção. O homem vestido em uma roupa formal é Gabriel.
- Ah, lá está ele! – Letícia diz empolgada, seguindo na direção de Gabriel.
- É, ela está mesmo apaixonada. – Marina diz erguendo as sobrancelhas e balançando a cabeça.
- Viu? Eu te disse. – Comento segurando o riso, assistindo Gabriel recebendo Letícia com um abraço carinhoso e um largo sorriso.
Admito que encontrar Gabriel é algo que me deixa na defensiva. Não tenho nenhum temor a respeito desse homem. Afinal, quando ele teve chances de nos fazer algum mal lá na praia, ele simplesmente não o fez. Além disso, ele pagou pelo período de internação e todo o tratamento necessário para Letícia e Marina se recuperarem, e hoje ele parece fazer muito bem a Letícia.
Ele não é alguém ruim, isso eu tenho muita certeza.
Mas ainda assim, ele presenciou algumas coisas que eu não gostaria. Ele esteve presente quando a entidade surgiu, por duas vezes ele esteve presente e foram situações desastrosas. Tanto na praia quanto na minha casa quando acabei possuída, ele viu o que a entidade é capaz de fazer, e me pergunto o que ele deve pensar sobre isso ou a meu respeito.
Além disso, tenho uma estranha sensação quando se trata dele, é um desconforto no ponto mais profundo do meu ser, mas não sei dizer o motivo disso.
Nos aproximamos deles, e os dois se afastam um pouco enquanto trocam algumas palavras sussurradas. Aproveito e dou uma olhada na mesa onde Gabriel nos aguardava, nela estão um fichário preto aberto em uma folha repleta de anotações, nomes, valores e não sei o que mais separadas entre as cores vermelho e azul, algumas canetas, e também papeis que me aparentam ser documentos e planilhas, tudo muito bem organizado sobre a mesa.
Volto minha atenção aos dois, justamente quando Letícia se vira para nós, que Gabriel vira seu olhar a nós, me encarando diretamente nos olhos. – Marina, Clara, é ótimo vê-las novamente.
- Tem certeza? – Marina questiona de repente, fazendo o homem saltar as sobrancelhas em surpresa – Porque toda vez que você nos encontra, estamos em uma situação maluca.
Ele responde com um riso nasal, balançando a cabeça – Sim tenho certeza, essas situações malucas não são um problema.
- Isso é ótimo. – Marina me olha por cima do ombro com um sorriso travesso, e conhecendo ela, já sei que vem coisa. – Esse meu provável novo melhor amigo não é o máximo?
Respondo com uma careta – Claro, com toda certeza ele é ótimo Marina... Depois preciso lembrar que vou te tirar da minha lista, e colocar uma nova melhor amiga no lugar.
- Vai nada, você me ama. – Marina diz brincalhona me abraçando de lado, parando por um segundo e franzindo a testa – Espera um pouco Clara, lista? Você tem uma lista de possíveis melhores amigas?
Cruzo os braços e a encaro com uma expressão convencida – Talvez.
- O que?! Quer dizer que sou só mais uma para você?! – Marina me responde fingindo cara de ofendida que logo se transforma em um bico, afastando de mim e praticamente encenando, enquanto que Letícia e Gabriel seguem rindo do nosso pequeno debate – Não acredito, eu que sempre te amei como minha melhor amiga... Descubro que sou só mais uma na sua longa lista.
- Até onde sei, você quem vive cogitando outras pessoas toda semana. – Ergo os ombros, entrando totalmente na brincadeira – Eu que sou só mais uma na sua longa lista.
- Jamais, eu nunca faria isso com você! – Marina está tentando ao máximo segurar a risada, e logo se vira a Letícia – Você já me viu querendo colocar outra pessoa no lugar da Clara?
- Já. – Letícia responde rindo, se sentando e cobrindo o rosto. – E a última vez não faz nem cinco minutos.
- Que audácia, nunca! – Marina se vira para mim outra vez com um olhar sério, colocando as mãos nos meus ombros e me sacudindo bem de leve – E você senhorita, teremos uma longa conversa sobre essa sua lista de contatinhos para melhores amigas, não gostei nem um pouco de saber que sou só mais uma e você me trai com várias outras melhores amigas...
Durante alguns poucos segundos eu e Marina nos encaramos, tentando ao máximo manter uma feição séria uma a outra. Não dura muito, e nós cedemos às risadas que seguramos por segundos que pareceram uma eternidade.
- Você é maluca Marina. – Consigo dizer entre os risos, e me sento.
- Se isso fosse ruim, você já tinha se afastado de mim. – Marina se senta ao meu lado, apoiando o rosto sobre a mão e me olhando com um sorriso de canto e olhar convencido.
- Não dá, você já grudou em mim igual chiclete velho. – Rebato e ela começa a rir outra vez.
- Você foi à mesma coisa comigo. – Ela respira fundo para controlar as risadas, voltando sua atenção aos dois que apenas nos assistiram até agora – Liga não Gabriel, somos assim mesmo.
Ele mantém um sorriso divertido no rosto – Tudo bem, reparei nisso já faz algum tempo.
- Mas agora, a pergunta que não quer calar... – Marina apoia seus cotovelos na mesa, olhando de Letícia a Gabriel repetidas vezes – Vocês estão tendo algo sério?
- Marina! – Ela me olha fingindo uma cara inocente – Não seja tão indiscreta.
Letícia ri um pouco corada – Está tudo bem, e na verdade ela está certa. Desde que saímos do hospital, eu e Gabriel continuamos nos encontrando... E por enquanto, estamos vendo como as coisas vão fluir.
- Agora tantas coisas fazem tanto sentido... – Marina comenta com um sorriso de canto.
A loira pisca algumas vezes, acho que ela já juntou os pontos e sabe que Marina mencionou o que estávamos conversando agora a pouco, mas o alívio no rosto dela se torna cada vez mais nítido por Marina não ter dado mais detalhes.
- Enfim... – Gabriel começa – Espero que não se incomodem por eu estar aqui.
- Que nada, você aqui me parece ser um forte sinal que teremos carona de novo. – Marina ergue os ombros em um ar descontraído.
- Cada vez mais estou me enxergando como um motorista particular... – O homem responde brincando, também em uma postura descontraída – Letícia já me comentou a respeito. Como se sentem para essa entrevista?
- Mais ou menos, ainda não sei bem. – Marina comenta batucando os dedos na mesa – Acho que estou bem normal com isso. E você Clara?
- Tranquila, a Letícia falou que não é tão complicado por ser uma indicação... – Reflito por um momento antes de continuar – Acho que isso me deixou bem despreocupada.
- Eu disse, não é tão burocrático. – Letícia se pronuncia – Talvez eles entrem em contato com vocês na sexta, disso não passa.
- E que horas será a entrevista? – Ele questiona apoiando o queixo sobre o punho, nos observando com verdadeiro interesse no assunto.
- Só três da tarde, e agora não é nem uma ainda. – Letícia diz, ela está com um ar bem leve ao redor de si – Por enquanto não precisamos ter pressa.
- É talvez, só que também não podemos enrolar muito. – Digo olhando para ela, que responde com um riso nasal.
- Sim isso é verdade. Já vamos escolher algo? – Ela olha na direção de alguns dos restaurantes, e de imediato acompanho seu olhar – E então, o que vamos comer?
- Uns lanches? Repartir uma pizza? Uma refeição normal? – Digo, só que mais para mim mesma do que para os outros na mesa.
- Uma refeição normal, acho melhor. – Marina comenta, pegando seu celular e dando uma rápida olhada na tela o abaixando em seguida – Já comemos lanche da última vez.
- Por mim também... – Letícia concorda nos olhando, apontando a um restaurante em um gesto de cabeça – O que acham de comer ali?
Marina se ergue animada – Ta ótimo, quem fica guardando a mesa?
- Deixem que eu cuido da mesa, podem ir lá. – Gabriel se pronuncia, pegando sua caneta outra vez e segurando uma das folhas, dando uma rápida olhada na mesma.
- Não vai almoçar? – Letícia pergunta se erguendo devagar.
- Estou sem fome, mais tarde como alguma coisa. – Responde com um sorriso sincero.
Me levanto e deixo minha bolsa sobre a cadeira, enquanto que Marina e Letícia seguem na frente – Pode ficar de olho nas nossas coisas?
- Claro, sem problemas. – Ele assente me dando um rápido olhar, voltando sua atenção à folha e passando a ponta da caneta aparentando procurar por algo. – Antes disso... Poderia esperar um momento Clara? Gostaria de perguntar algo a você...
Estranho a princípio, olhando sobre o ombro para as duas que já estão longe o bastante para não nos ouvirem. Gabriel continua sem me olhar, mas é perceptível como seu olhar endureceu.
- O que quer saber? – Pergunto, apoiando uma das mãos sobre a mesa. Até mesmo imagino que pode ser algo envolvendo essa pilha de documentos, afinal ele sequer pisca enquanto continuamente analisa essas folhas.
- Creio que você ainda deve se lembrar que vi tudo que aconteceu da última vez que nos encontramos... – Ele começa a falar, encarando fundo nos meus olhos. O tom de sua voz junto ao firmeza de seu olhar âmbar mostram sua seriedade – E dessa vez você apresentou uma estranha mudança que nunca vi antes, por isso gostaria de saber... Quem é você agora?
Eu já devia ter imaginado, até agora isso tudo estava sendo fácil demais. Devia ter estranhado Gabriel não ter comentado absolutamente nada sobre a minha mais nítida mudança depois de ter sido possuída, e foi justamente a primeira coisa que ele viu em mim quando chegamos.
Se antes ele tinha dúvidas sobre quem sou, agora suas dúvidas devem estar em um nível muito maior. Talvez estivesse só esperando a primeira oportunidade para me confrontar.
Engulo em seco e respiro fundo por uma vez – Sou a Ana Clara que você conheceu... Apesar de não aparentar, e duvido você acreditar, voltei a ser eu mesma.
Gabriel permanece calado alguns segundos, apoiando o queixo sobre o punho enquanto continuamente me analisa – Quando voltou ao normal?
- Horas depois. – Respondo já decidida em encurtar a história – E também pouco depois que voltei, retiraram aquele ser de mim. A entidade não existe mais.
- Não existe? – Ele aparenta surpresa, então abaixando seu olhar por um momento – Difícil acreditar... Como tem certeza disso?
- Talvez porque já fazem duas semanas que voltei ao normal, e de lá pra cá, nunca mais houveram incidentes ou aparições da entidade. – Apoio ambas as mãos fechadas sobre a mesa, pendendo meu corpo para frente.
Ele ergue uma sobrancelha, me olhando desconfiado – E o que são esses olhos?
- São uma consequência. – Respondo direta – São mais uma das várias marcas que tenho, desde que tudo isso começou na minha vida.
Após isso, nenhum de nós diz mais nada. Mergulhamos em um confronto silencioso onde nossos olhos são nossas armas, e assim permanecemos por longos segundos.
- Você pode não acreditar em mim Gabriel... – Digo em baixo tom – Mas sou eu.
Ele assente de leve, porém não diz mais nada. Seu olhar continua em mim, e novamente começo a me sentir estranha em relação a esse homem. Não sei explicar como ou o motivo disso, mas quanto mais olho para ele, mais estranha me sinto.
Ergo o corpo, me viro e afasto em passos apressados sem olhar para trás. Existe alguma coisa com esse homem, algo na presença dele que não me parece nem um pouco normal.
Vou me aproximando do restaurante onde Letícia e Marina estão, com um questionamento ecoando em mente... Quem realmente é Gabriel?
Caminho em passos lentos, quase chegando em casa. Me sinto leve e tranquila, a entrevista fluiu muito melhor do que eu estive imaginando, tanto que nem Marina e eu esperávamos sair já admitidas daquele prédio.
Se bem que, por ter sido tão fácil, fico imaginando se eles estão desesperados para contratar gente nova, ou se o trabalho é tão ruim que não conseguem manter o pessoal por muito tempo.
Enfim... Tudo que precisamos fazer agora, é levar alguns documentos solicitados, e poderemos iniciar já na semana seguinte, o que pra mim está ótimo.
Olho meu celular rapidamente, esperando qualquer mensagem de Jeniffer me dando alguma boa notícia, mas ainda não recebi nada. Assim que receber as informações que preciso, na hora irei marcar um dia com Tamires para irmos investigar mais a fundo toda essa história.
Gostaria de chamar Ferdinand para ir junto, provavelmente ele adoraria a oportunidade de descobrir muito mais coisas... Mas quando penso no fato que isso colocaria o emprego de Jeniffer em risco, percebo como essa é uma péssima ideia.
O melhor é manter tudo isso em segredo. Sei como isso interessa Tamires, apesar de ainda não ter a menor noção do porque ela realmente está atrás do Cara do Casaco ou o que ela quer descobrir. Só espero que ela concorde em manter isso em segredo, pelo menos por enquanto.
- Clara! – Ouço quando estou a poucos passos de casa.
Meu corpo inteiro gela ao ouvir essa voz e os passos apressados logo atrás de mim, mas não ouso parar de andar.
- Por favor, espera! – O homem entra na minha frente, praticamente se jogando, me impedindo de continuar. Evito o contato visual e tento desviar dele, mas ele insiste entrando novamente no meu caminho.
- O que você quer Ricardo? – Digo ríspida, apertando os punhos.
- Precisamos conversar. – Diz ofegante. Tento desviar mais uma vez, mas ele continua entrando na minha frente – Por favor, me escuta!
- Não tenho nada para falar com você, muito menos tenho que te ouvir! – O encaro irritada.
Nesse instante tenho a certeza de algo. Se antes ainda havia em mim qualquer tipo de sentimento ou carinho por ele, agora isso não existe mais.
Ele coloca suas mãos nos meus ombros com certa força, me prendendo no lugar e impedindo que eu tente desviar mais uma vez – Clara, você tem que me ouvir... Aquilo que aconteceu foi...
Ergo os braços com toda a força atingindo os braços dele, conseguindo me soltar do aperto e recebendo um olhar surpreso de Ricardo. – "Aquilo que aconteceu" coisa nenhuma! Não quero saber das suas desculpas!
- Mas... – Ele tenta falar, mas o impeço.
- "Mas" nada!... Por sua culpa, eu fui possuída! Por sua culpa meus amigos mais próximos ficaram em perigo! Por sua culpa uma pessoa querida para mim quase morreu! Por sua culpa eu poderia ter morrido! – Digo batendo o indicador no peito dele, com força o suficiente para fazê-lo recuar alguns passos. – Preciso voltar mais no tempo para lembrar mais coisas que fez, ou será que isso já é o bastante para você Ricardo?
- Mas Clara, você sequer sabe meus motivos. – Ele insiste e se aproxima.
Começo a rir em total deboche pelo que acabei de ouvir – Você estava bêbado e, de novo, cheio de ciúme. É obvio que sei seus motivos e eles meu caro, não justificam nada.
Ele não me responde. Seu olhar vai ao chão e assim permanece por alguns segundos.
Respiro fundo, tentando me controlar para não ceder à vontade de usar a runa de impacto e o mandar voando para longe daqui. – Já acabou? Será que da pra sair do meu caminho, ou ta difícil? – Digo cerrando o olhar.
- Não... – Ele balança a cabeça várias vezes – Você precisa me deixar te explicar tudo Clara. Eu não estava pensando direito, mas não quis que nada daquilo acontecesse.
- Claro, não quis nada daquilo. Acho que foi exatamente a mesma coisa que você me disse na outra vez. – Bato a mão em seu peito abrindo passagem, dando os poucos passos até chegar em casa. Já saco a chave do bolso para entrar e acabar logo com isso – A diferença que agora, não existe mais sentimento nenhum que me faça te dar novas chances.
Estou destrancando o portão, quando percebo sua mão em meu ombro e me virando para ficar de frente para ele de uma vez e meu olhar se encontra com o dele. A distância que Ricardo está de mim é mínima, seu corpo está bem junto e seu rosto quase colado ao meu, tanta proximidade repentina me assusta.
Aperto a mão acumulando uma força extrema, preste a lançar a runa de impacto para afasta-lo de mim, mas me contenho no último segundo. Não vou recorrer a essa força, a menos que seja realmente necessária.
Agora que me dou conta, essa mesma distância que aconteceu da última vez... Não, ele está mais próximo agora. Minha respiração se altera por nervosismo da situação que me encontro.
- Por favor Clara... – Ele sussurra olhando profundamente nos meus olhos, correndo a ponta dos dedos pela minha mandíbula até a ponta do meu queixo, erguendo de leve meu rosto – Não faz isso comigo... Com nós... Eu te amo... Sabe que eu te amo, não faria nada para te prejudicar.
Ele se aproxima e quando está prestes a me beijar, viro o rosto – Não... Você diz uma coisa, e faz outra completamente diferente.
Ele permanece calado sem deixar de me olhar. Pelo visto, sua ficha ainda não caiu, mas não pretendo ceder as suas tentativas. Já tive demais de Ricardo por uma vida.
- Se me amasse de verdade, teria ficado comigo desde o início... – Torço a boca e balanço a cabeça negativamente – E principalmente, não teria me prejudicado como fez.
- Não diz isso. Não fiz aquilo por mal, eu... – Ele tenta, mas o interrompo.
- Será que você ainda não entendeu Ricardo? – Digo ríspida – Eu não mais quero saber, só quero que me deixe em paz.
- Por favor, não... Me da uma nova chance... Clara, eu te amo! – Ele insiste.
- Mas eu não te amo Ricardo! – Rebato de imediato, consegui evitar um grito de raiva, mas foi explosivo o bastante para assustá-lo e fazer se afastar de mim. O olhar dele é incrédulo, parece atordoado com minhas palavras – Eu não te amo... Não mais.
- Nós... – Ele diz com a voz fraca – Nós não podemos conversar mesmo?
- Não. – Respondo seca soltando um suspiro – Vai embora, e não me procure mais.
Sem olhar mais para meu ex, entro apressada em casa e fecho o portão em um estrondo, trancando rapidamente para o caso de Ricardo ainda não ter entendido o recado e tente entrar aqui para me encher ainda mais.
Escoro as costas no portão e suspiro pesadamente, enquanto o silêncio me rodeia por alguns momentos. Não ouço nada do outro lado do portão, passos, suspiros, absolutamente nada. Tudo está quieto, mas sei que Ricardo ainda continua ali, do outro lado desse portão.
A porta de repente se abre, e minha mãe aparece com uma expressão de estranheza – Filha? Escutei o portão batendo, o que houve?
Balanço a cabeça apertando a boca – Só uma última chateação antes de chegar em casa... Não se preocupe mãe... Não é nada importante.
Minha mãe me encara, parecendo já ter entendido tudo o que acabou de acontecer. Sem dizer nada, ela se vira e entra novamente em casa, e a mim vem à certeza de que quando entrar, terei que explicar o motivo de ter batido o portão da maneira que fiz.
Ouço um soluço e uma fungada do outro lado do portão, seguido de alguns passos arrastados. Meu olhar vai ao chão e uma sensação estranha cresce em meu peito. Me dói ter dito todas aquelas coisas ao Ricardo. Não sei se foi o certo, mas com certeza precisava ser dito, e não me arrependo de nada.
Não queria que as coisas fossem desse jeito, de forma alguma queria que fosse assim... Infelizmente, não teve outro jeito.
Sem ousar olhar para trás, desencosto do portão e entro em casa.
A discussão que tive com Ricardo essa tarde perdurou na minha mente até agora à noite. Em nenhum momento me arrependi, mas fiquei pensativa sobre tudo, tanto que por um tempo isso ofuscou um pouco da minha animação com o trabalho novo.
Agora estou na cama encarando o teto, tentando esquecer tudo que aconteceu essa tarde para finalmente poder descansar. Por sorte está chovendo bem forte desde o final da tarde, então pude dedicar parte da minha concentração e energias para reclamar do clima que tanto desgosto, o que com certeza ajudou a esquecer do assunto "Ricardo" por algum tempo.
O som estrondoso de um trovão ecoa no céu, e minha janela chacoalha sem parar pelas fortes rajadas de vento. O barulho repentino me assusta novamente, e por mais uma vez me encolho debaixo das cobertas, reclamando da "sorte" de estar chovendo.
Algo me fez refletir agora. Desde bem nova nunca gostei do clima chuvoso, porém nunca tive medo de chuva ou raios... Mas dessa vez, desde que essa chuva começou, eu me sinto estranha. Estou profundamente assustada, meu coração bate acelerado, e para piorar estou com a desagradável sensação de estar sendo continuamente observada.
Seguro meu colar com força na expectativa que ele afaste qualquer coisa que pode existir ao meu redor, porém ele segue inalterado a todo momento. Seu brilho continua igual, o que significa que não existe nada hostil à minha volta...
Mas se não existe nada, por que não consigo me acalmar?
Devagar tiro a coberta do rosto e me sento, correndo meus olhos ao redor. Meu quarto está escuro, não vejo nada de anormal por aqui... Mas continuo apreensiva.
Ergo a mão direita com a palma virada para cima e me concentro. Poucos segundos bastam para que eu sinta o calor correndo em fios por dentro do meu braço até minha mão, e então uma esfera luminosa surge pairando suavemente.
Não é muito grande, mas produz luz mais que o suficiente para iluminar todo meu quarto. Por mais uma vez olho ao redor, e não existe absolutamente nada aqui.
Respiro fundo e fecho a mão quando me sinto satisfeita, fazendo a esfera desaparecer na sua característica pequena explosão silenciosa. Acho que estou imaginando coisas demais.
Ouço o toque do meu celular a cabeceira da minha cama, e a tela ilumina com uma notificação de mensagem. O pego e leio o nome de Jeniffer na tela.
Jeniffer: Lista de Pacientes.pdf
Jeniffer: Consegui esses nomes hoje... Não são muitos, mas acredito que já te ajuda.
Ana C: Com certeza. Eles já serão um ótimo ponto de partida.
Ana C: Obrigada Jeniffer.
Jeniffer: Disponha.
Ana C: Você se arriscou muito... Isso não te trará nenhum problema mesmo?
Jeniffer: Sinceramente, torço que não.
Jeniffer: Fiz isso enquanto estava sozinha, tomei todo o cuidado para ninguém perceber.
Jeniffer: Acho que passei despercebida.
Jeniffer: Só espero que o sistema não tenha nenhum serviço de rastreamento...
Ana C: Vamos esperar que não tenha nada que te acuse.
Ana C: Quando descobrir algo novo, irei te contar.
Comemoro com um sorriso enquanto abro o arquivo e passo os olhos pela lista de nomes, existem onze pessoas, perfeito para começarmos as nossas pesquisas. Aqui tem de tudo, nome completo, idade, telefone, endereço, o nome do psicólogo responsável junto da data da consulta, todos os detalhes possíveis.
E o melhor é que está tudo muito bem organizado, cada página do arquivo está focado em um único paciente, e ela conseguiu reunir bastante coisa bem rápido. Uma coisa posso dizer sobre Jeniffer, ela não brinca em serviço.
Sem perder mais tempo, vou avisar Tamires apressada. Só espero que ela ainda esteja acordada.
Ana C: Tamires?
Ana C: Já tenho alguns nomes.
Tamires: Oi.
Tamires: Falando assim, parece até que vamos liderar uma investigação policial.
Ana C: É...
Ana C: Mais ou menos isso... Só ignora a parte da legalidade.
Tamires: Ok, agora pareceu que vamos agir na clandestinidade.
Ana C: Será bem isso mesmo.
Tamires: Como faremos isso Clara?
Ana C: Pensei em fazermos do jeito clássico... Ir atrás das pessoas e fazermos perguntas.
Ana C: Usamos a desculpa que estamos visitando a mando de alguns dos psicólogos.
Ana C: Só precisamos marcar um dia.
Tamires: Me parece uma boa ideia. Tenha certeza que eu topo.
Tamires: Fico livre a partir das 14h... Nos sábados estou livre o dia inteiro.
Ana C: Vamos nesse sábado, escolhemos alguns nomes e começamos a pesquisar.
Recebo a confirmação de Tamires, e acertamos os últimos detalhes para começarmos nossas buscas. Uma emoção vai crescendo no meu peito à medida que vamos acertando os detalhes.
Não sei se é porque estamos para fazer uma verdadeira maluquice, por eu novamente estar correndo rumo ao sobrenatural sem sequer hesitar, ou por estar ajudando Tamires com seu objetivo de encontrar o tal Cara do Casaco, que supostamente é uma das Crias do Abismo.
Talvez seja uma junção de tudo isso... Seja como for, a emoção toma conta de mim.
E não penso em voltar atrás com minha decisão.
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