Capítulo 38 - A busca pelo controle
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Minhas pernas cedem e me abaixo de uma vez, apoiando minha mão no piso amadeirado que responde com um ruído abafado. O barco onde estou agora balança forte com o impacto do meu corpo cedendo e a água a nossa volta se agita, e não sei como não fiquei enjoada com isso.
Arfo com o meu esforço de agora, está sendo mais complicado do que pensei que seria, mas torço para que isso esteja dando certo. Nunca imaginei que poderia passar por uma bizarrice desse tipo... Se bem que vendo tudo que encarei nos últimos tempos, eu já deveria estar bem acostumada com tanta anormalidade.
Passo meu olhar ao redor, vendo o tanto de bizarrice que já fiz aparecer. Fiz imensos prédios de vidro com o maior estilo moderno surgirem ao lado de casas com arquitetura clássica com grandes bandeiras hasteadas, e para completar faixas brancas com brasões dourados estampadas em seus tecidos. Como se já não bastasse tudo isso, ainda imaginei vários canais cheio de muitas gondolas e botes que fazem o lugar parecer uma versão mutante da cidade de Veneza.
Fiz questão de deixar o céu nublado, talvez uma grande quantidade de nuvens teria algum resultado, a nossa volta muitas pessoas fantasiadas de qualquer coisa maluca passeando distraídas, muito barulho de vozes e conversas incessantes unidas ao som da água.
Se no fim tudo isso for só um sonho lúcido, definitivamente eu não quero mais ter nenhum sonho por muitos anos.
- Acha que está dando certo? – Questiono olhando para a entidade por cima do ombro.
Ele está de pé na ponta da gondola, olhando para o alto em uma expressão séria. Desde que comecei a criar esse monte de coisas, ele disse que iria ficar observando seu outro lado para ter certeza que não viria atrás de nós.
Ele parou em um canto e esteve olhando para um mesmo lado fixamente. Já faz algum tempo que estou imaginando e criando coisas e mais coisas, e ele continuou da mesma forma, encarando o céu com a mesma expressão.
- Oi? Alguém em casa? – O chamo outra vez estalando os dedos, e dessa vez ele desperta virando seu olhar para mim. – O que você acha? Está dando certo?
- Não muito... – Sussurra baixo, passando os olhos ao redor e então voltando a encarar o céu cheio nublado – Está sendo o bastante apenas para distraí-lo um pouco.
- Distraí-lo? – Questiono me colocando de pé com dificuldade – O que está havendo?
- Meu outro lado está agora enfrentando seu guardião. – Ele olha para mim com preocupação estampada no rosto – Suas ações estão dividindo sua atenção e impedindo que use toda a força contra Brian, mas não estão sendo o bastante para afetar seu controle.
- Então... Isso ainda não está sendo o bastante... – Sussurro me sentando.
- Não. E ele já sabe que estamos livres, mas está nos ignorando. – Ele se vira para mim, me fitando de soslaio – Se ele se focar em nós, terá ainda mais problemas com seu guardião.
- Esse é mais um motivo para continuar tentando. – Sussurro apertando os punhos. – Talvez eu ainda não tenha feito o bastante para surtir maiores resultados... Já estamos conseguindo desestabilizar ele.
Diferente da empolgação que esperei ver nele, o que encontro é um semblante pensativo.
- Qual o problema? – Questiono.
Ele se aproxima, sentando a minha frente com o olhar baixo – Eu pensei agora, se agirmos como uma distração para que seu guardião ganhe esse confronto, o outro eu poderá se focar totalmente em nós.
- E o que tem isso mesmo? – Ergo uma sobrancelha.
- Se ele aparecer nessas circunstâncias, talvez acabemos presos do mesmo jeito que estávamos antes... – Ele ergue seus ombros – Talvez de um jeito ainda pior.
- Então, você acha que não é uma boa ideia continuar com isso? – Apoio o cotovelo no joelho e encosto meu rosto na mão.
- Definitivamente não, afinal estamos servindo como uma distração... – Ele passa uma das mãos pelo cabelo branco – E nosso objetivo é fazer com que você recupere o controle do seu corpo.
Cruzo os braços refletindo no que acabei de ouvir. Não posso negar que ele tem razão, agir como uma distração não é o que eu estava querendo. Se criar um monte de coisas que acho serem elaboradas não está dando certo, então preciso pensar em uma nova alternativa para toda essa situação que possa dar resultados.
O problema é saber o que pode ou não ser efetivo, sem falar da sensação de estar apenas seguindo por um beco sem saída.
Vamos Ana Clara. Pense, pense.
Tem que haver algum jeito que realmente seja efetivo. A entidade tem o controle do meu corpo, só que parando para pensar um pouco, ainda deve existir algum tipo de ligação comigo.
Se não houvesse uma ligação, talvez já teria me descartado a muito tempo... E isso não aconteceu, ele me manteve presa.
Esse pode ser um ponto de partida, mas ainda não é muita coisa. Por tudo que já conversei com Brian e Ferdinand, eles tem muitas informações reunidas e falaram várias coisas sobre a entidade... Porém grande parte do que eles sabem é devido a terem aprendido ao estudarem minha situação, já que seus conhecimentos anteriores eram muito escassos...
Tem muita chance de eu ter uma quantidade de conhecimento bem próxima a deles, talvez até maior por estar vivendo tudo isso.
A única pessoa que realmente pode ter mais conhecimentos que os dois, é Tamires. Por mais que ela não tenha sido perseguida e muito menos possuída por um ser do Abismo, ela teve sua dose de experiências malucas com essas coisas.
Tamires já esteve cara a cara e interagiu com pelo menos uma dessas criaturas do Abismo por mais de uma vez, e tudo isso muito antes de eu sequer sonhar que essas coisas existiam. Não quero desmerecer minha atual companhia, mas tenho certeza que em um momento como esse ela seria a melhor ajuda que eu poderia ter.
Apesar das óbvias particularidades, existem algumas semelhanças nas nossas situações. Tamires também precisou lidar com um ser do Abismo, esteve de frente a uma imensa porta de pedra que acabou aberta, esteve em um espaço vazio e completamente escuro... Espera um pouco...
- Quero perguntar uma coisa... – Sussurro ao lembrar de algo importante – O que você sabe sobre a porta do abismo?
- Que é uma passagem. – Ele cerra seu olhar para mim.
- Sabe onde está? – Levo ambas as mãos aos joelhos. – Inclusive, sabe como chegar até ela?
- Sim, a porta emana uma carga energética muito forte. Sei aproximadamente onde está, só não estou certo de como chegar nela. – Diz gesticulando – Qual sua ideia?
Fico de pé e caminho devagar pelas gondolas, buscando alcançar um piso firme não muito longe de nós. Piso devagar em cada uma das gondolas, tomando cuidado para não me desequilibrar e cair na água a qual nem sei se é profunda... Ou real.
Não leva muito tempo até eu alcançar um local firme, e logo atrás de mim ouço os passos da entidade boa, que para ao meu lado me observando com expectativas. – Não é bem uma ideia, mas sim um pensamento que me surgiu... Sei que abri essa tal porta em algum momento, mas não lembro de ter fechado.
- Está pensando em fechar a porta do Abismo? – Questiona.
- Mais ou menos isso. – Ergo os ombros – Talvez essa porta seja algo que ainda me mantenha ligada naquele bicho bizarro.
- Ligada a ele não sei, mas... – Começa a dizer, olhando para o alto – Mas com certeza é tanto a minha, quanto a ligação dele com o Abismo. Fechando a porta, a ligação irá se romper. É genial!
O encaro de canto, novamente cruzando meus braços – Parece empolgado com isso.
- É, estou... – Ele da um meio sorriso abaixando o olhar – Desde aquele momento que me soltou, consigo sentir a porta do Abismo. Sei por onde devemos ir para chegarmos mais próximos dela, e... Agora que estou livre, existe mais uma coisa que estou sentindo...
- Que seria...? – Questiono desconfiada, erguendo uma sobrancelha.
- Eu... – Começa a falar, olhando para suas mãos – Consigo sentir o Abismo, a energia dele vindo da porta e fluindo para dentro de mim... É pouco, mas... Acho que está me deixando mais forte.
Chego mais perto dele, levando as mãos na cintura – Se isso está te deixando mais forte, então porque você está animado com a ideia de eu fechar a porta?
- De... Desculpe... – Ele sussurra se encolhendo, desviando o olhar ao lado – É que... Se um pouco desse poder flui para mim, então... Deve acontecer o mesmo com o meu lado ruim. Talvez por fecharmos a porta, ele pare de ficar ainda mais poderoso...
- E da mesma forma que ele, você também não fica mais forte. – Constato o observando, ainda desconfiada. – É isso que não entendo, você não se beneficiará com isso.
- Está enganada. Com a porta fechada, meu outro eu não ficará mais forte, com isso não irá ser uma ameaça ainda maior do que já é. Isso é o bastante para que eu me sinta satisfeito... – Ele sorri fraco – Quanto a mim, não me importo de permanecer sem poderes como estou agora.
- Certo... – Balanço a cabeça, dando um suspiro – Agora voltando ao assunto principal, como nós podemos chegar nessa porta?
Ele volta a olhar para o alto, retomando a mesma expressão séria de antes, no mesmo momento em que seus punhos se fecham. Acompanho seu olhar, mas não consigo enxergar o mesmo que ele, sei bem disso.
Me pergunto o que ele pode estar vendo que o deixa tão tenso. Seria seu lado ruim que o deixa ansioso de alguma forma? Ou quem sabe vendo o que a entidade está fazendo nesse momento? Talvez até estejam se encarando agora e eu não consigo ver... Quem sabe?
- O jeito é mudando o local que estamos, para um mais próximo da porta – Comenta sussurrando. Apesar do baixo tom, sua voz é tensa.
Chego perto tocando seu ombro em um aperto de leve, fechando meus olhos – Lá vamos nós então. Não sei como fazer isso, então vai me avisando se estou esquentando ou esfriando!
- O que?! – Seu tom confuso tão repentino me arranca uma curta risada.
Abro apenas um olho, sentindo a vontade de continuar rindo pela sua expressão – Se estou chegando ou não perto da porta... Quente ou fria, sabe? Nunca ouviu sobre isso?
- Nem sabia que isso existia. – Se justifica erguendo os ombros.
- Fique sabendo que você veio de um lugar muito chato! – Sorrio balançando a cabeça negativamente – Quando tivermos um tempo, prometo te ensinar sobre essa brincadeira.
- Desc... – Faço uma careta antes que ele termine mais um pedido de desculpas, e ele logo se cala e abaixa seu olhar. Sua expressão para mim continua sendo de confusão – Acho que não será preciso você fazer, tenho uma outra ideia... Peço que deixe isso comigo...
- E como fará isso? – Passo os olhos ao redor com atenção, decepcionada que não consegui mudar absolutamente nada a nossa volta. Continuamos em "Veneza".
Se bem que, apesar de decepcionada, quero mesmo ver como ele fará isso, e ver ele chegando mais próximo me fez entender que ele não está de brincadeira. Ele segura minha mão apertando de leve enquanto as coisas ao nosso redor se paralisam.
Pessoas param seus movimentos, as embarcações cessam seu chacoalhar suave na água, e a própria água para de se mover, cada um perdendo suas cores e deixando no lugar tons acinzentados até não existir mais cor. Tudo para como se estivessem acabado de congelar, e o mesmo acontece com os sons. O vento, a água, as vozes, tudo estava alto, barulhento, porém foram se calando um a um até estarmos mergulhados em um espaço quieto.
Cada uma das construções que fiz começa a transparecer, dissolvendo no ar como pequenos feixes luminosos que somem no ar. No lugar disso, mergulhamos em um espaço tomado de tons escuros por todos os lados, parecido com a prisão que estávamos a uns momentos atrás.
Atentamente encaro a nossa volta buscando por qualquer coisa, esperando sentir qualquer coisa, mas não consigo. Tudo permanece igual, e tenho minhas dúvidas do que está acontecendo, mas vendo como a entidade parece concentrada, eu me mantenho calada apenas esperando.
Imediatamente, o espaço vazio vai sendo preenchido em ritmo lento. O chão surge abaixo dos nossos pés, espalhando-se em uma constante lenta. As formas se unem e continuam ao nosso redor, leva um tempo mas entendo que o local onde estamos é uma rua.
Após as calçadas se formarem, cercas vivas na altura dos meus cotovelos se formam, por trás delas existem grandes roseiras com várias flores abertas, inclusive com muitas das rosas crescendo por cima da cerca. Unidas, formam uma decoração que nunca vi antes.
Atrás de nós tem um alto portão de grades de ferro, e seguindo pelas extremidades muros altos tomados por muitas plantas ganham forma, estendendo ao redor do lugar. A primeira impressão achei que o lugar seria pequeno, mas ao que vejo, os muros percorrem um espaço bem grande.
Seguindo pela rua que se estende até uma pequena colina, enxergo uma imensa mansão rústica no ponto mais alto. Pelo que consigo ver nessa distancia, ela tem dois andares. Sua base e parte da estrutura é formada por grandes blocos de pedra, já as paredes, sacada e os telhados altos parecem ser de madeira. Ela é bonita, e o melhor é que não muito longe de nós.
Tudo seria muito lindo, se não estivessem tomadas pelos tons cinzentos em cada uma das folhas tanto da cerca viva quanto da roseira, que trazem um aspecto mórbido a tudo por aqui.
- É aqui. Vamos... – Ele sussurra tenso, avançando em passos apressados rumo a casa.
- E onde exatamente é aqui? – Digo da mesma forma, olhando tudo ao redor. – Sabe, parece ser só um lugar diferente do mesmo sonho.
- Parece, só que não estamos mais em um espaço que você pode controlar. – Ele encara o alto de relance, começando a correr e faço questão de tentar acompanhar – Nesse momento, estamos em um local da sua mente que aquele meu outro lado tem maior força.
Confirmo balançando a cabeça algumas vezes – Ta bem, sendo assim a porta está aqui por perto. – Digo ao juntar os pontos.
- Sim, especificamente em algum lugar ali dentro! – Ele passa seu olhar de um lado ao outro com urgência – Precisamos encontrar e fechá-la o quanto antes!
A calma que havia em sua expressão a alguns momentos atrás desapareceu – Você ficou bem nervoso. – O encaro de canto, ofegante pela nossa corrida.
- É porque ele já sabe que estamos aqui. – Ele diz em um sorriso preocupado, e seus olhos vem a mim – E o pior, agora ele está vindo atrás de nós
Isso é o bastante para que eu me sinta convencida que não temos mais tempo a perder, se estamos nos "domínios" daquela coisa, então a vantagem é dele. Seguro sua mão e o puxo na vã tentativa de chegarmos mais rápido a casa, mas logo paro de correr ao pensar uma coisa.
- Será que consigo usar alguma das minhas runas aqui? – Questiono surrando, virando meus olhos para a entidade, que me encara confuso visto a urgência da situação.
Estou tensa, mas isso já não é mais um empecilho para mim. É algo que vale a pena ser testado.
Abro as mãos e as junto a minha frente na tentativa de usar a runa do molde, e não demora muito para eu me dar conta de algo. Não consigo sentir nenhuma das sensações percorrendo pelo meu corpo, será que é por não estar no meu corpo de verdade?
Suspiro frustrada. Pelo visto, não posso contar com as runas para me defender aqui.
Voltamos a andar pela rua e sequer tem ruídos, apenas o som de uma ventania fria que surge de repente e nos atinge, e fica mais forte quando chegamos a base da colina onde está a casa. O vento faz meu curto cabelo voar, e por algumas vezes preciso pender o corpo para frente para conseguir me manter andando, enquanto o rapaz de cabelos brancos cobre o rosto com o braço e segue avançando no mesmo ritmo que eu.
Alcançamos a varanda onde a ventania já não nos atinge com tanta força. O piso e paredes da entrada são formadas pelas mesmas pedras escuras mantendo o estilo rustico que vi ao longe, e as grossas colunas de pedra com madeiras talhadas sustentando um terraço logo acima de nós trazem elegância a entrada.
A nossa frente, uma pesada porta dupla de madeira escura nos aguarda, e nos dois lados existem janelas embaçadas, onde é possível ver cortinas brancas do lado de dentro.
Giro a maçaneta para entrarmos, e apesar das portas estarem destrancadas, estão emperradas. Bato a lateral do meu corpo por uma vez, mas elas se movem muito pouco. Antes que eu invista em um segundo impacto, um imenso clarão silencioso ilumina todo o ambiente por um instante, que me faz saltar de susto.
Olho para trás de relance, buscando ter certeza de que a entidade não está aqui. A primeira vista não o vejo em nenhum lugar, e isso me tranquiliza. Porém tenho a clara sensação de estar sendo observada de algum lugar, e procurando outra vez, uma silhueta enegrecida surgiu do mesmo local que viemos, porém está parada do outro lado das grades do portão.
- Ele já está aqui? – Questiono assustada, jogando todo o peso do meu corpo contra a porta. A madeira da porta reage barulhenta ao impacto, mas pouco se move.
- Ainda não, mas temos que ir rápido! – Me responde, parando ao meu lado e lançando seu corpo contra a porta ao mesmo tempo que eu.
O impacto é forte o bastante para escancararmos ambas as portas. Perco meu equilíbrio, mas consigo me manter de pé. Encaro as portas por onde a forte corrente de vento invade, corro até elas e as fecho em um barulhento impacto que ecoa pelo ambiente.
Respiro fundo endireitando minha postura e olhando o ambiente pouco iluminado. Avanço devagar, batendo meu joelho em algo duro parecido com a quina de um móvel, que imediatamente me faz reclamar de dor – Sabe dizer se aqui tem alguma luz?
Não tenho uma resposta de imediato, mas escuto alguns passos pelo piso que julgo ser de madeira. Passam-se alguns segundos até uma lâmpada finalmente ser acesa no topo do lugar, revelando a sala de estar onde nos encontramos agora.
O piso do lugar é todo em madeira com um imenso tapete de coloração creme. A mobília por inteira tem tons cinza claro, sejam o grande sofá, as poltronas, mesa de centro ou as mesinhas de canto, e apesar de serem modernos, não quebram o ambiente da casa. Bem de frente para nós existe uma grande lareira de pedras, e pendurada um pouco no alto está o crânio de um animal que não sei identificar qual seja.
A nossa esquerda está um lance de escadas com o mesmo estilo de pedras da lareira, e tem degraus em madeira como a sala. Não sei para onde essas escadas levam, e a minha direita existem duas portas, uma que parece levar para uma cozinha, e a outra não consigo dizer para onde leva.
Engraçado, eu não esperava que aquele coisa tivesse esse tipo de senso estético para casas... Definitivamente isso foi uma surpresa.
Será que essa versão que está comigo compartilha desse mesmo gosto?
Paro de admirar o lugar e volto minha atenção a entidade, que está abaixado, também olhando impressionado para o cômodo – E agora?
Ele vira seu olhar a mim como se acabasse de despertar de um estado de hipnose. Pisca algumas vezes enquanto olha em volta – Precisamos procurar pela porta... – Ele se coloca de pé e avança devagar. A madeira range de leve com seus passos – Ela está perto.
Caminho devagar, pousando minhas mãos nas costas do sofá – Perto... Ta, mas quanto?
- Muito perto. – Responde.
- Ajudou muito... – Ironizo revirando os olhos e balanço a cabeça negativamente. – Nem pense em se desculpar!
- Des... – Ele começa com a voz tímida, mas para de falar. Olho para ele com as sobrancelhas erguidas, o rapaz passa os dedos pelo pescoço e evita me olhar – Deixa pra lá...
Esse jeitinho dele me tira um sorriso. Por algum motivo acho isso muito fofo, mas também é estranho vê-lo pedindo desculpas a todo momento... Ainda mais sem ter feito algo de errado.
- Não tem problema. – Mantenho o sorriso no rosto – Sabe para qual lado devemos ir?
Ele fica em silêncio, passando seu olhar escarlate ao redor. Analítico, ele observa primeiro a porta para a cozinha, depois segue pela sala, e por fim indo a escada – Eu... Não estou certo...
- Por que não? – Me aproximo dele, pousando a mão em seu ombro – Qual o problema?
- É que... Agora a presença da porta está muito mais forte... – Ele cerra seu olhar – Isso está me confundindo... Não sei dizer com exatidão onde ela está.
Respiro fundo levando as mãos a cintura, e um riso me escapa – Isso dificulta, mas não achei que isso seria fácil... Precisaremos procurar pela casa.
- Sim... Eu havia pensado em nos separarmos, mas não é uma boa ideia... – Ele me observa, passando as mãos pelo cabelo – Não teríamos como avisar um ao outro caso encontrássemos a porta, e ficaria mais fácil para meu outro eu nos emboscar...
- E eu desconfiaria de você na hora que virasse as costas e afastasse de mim. – Sorrio de canto e olhando, que apenas encolhe um pouco seus ombros. Faço um gesto, sinalizando para que ele venha comigo. – Relaxe, por enquanto ainda não desconfio.
- Tudo bem... – Ouço ele tímido. – Acho que juntos temos mais chances de conseguir.
- Entendo... E me diga, temos boas notícias? – Tento descontrair o máximo, por mais que eu esteja ficando cada vez mais tensa. Não somente tensa. Ansiosa acho, mas não sei porquê.
- Talvez... – Ele me olha de canto enquanto entro primeiro na cozinha, que segue o mesmo padrão de visual da sala. Paredes e chão em madeira, e uma sólida estrutura de pedras em torno do fogão – Estar tão próximo da porta está me fortalecendo muito mais do que antes... O poder vindo do Abismo está me alimentando a cada segundo, e estou ficando mais forte... Você acha isso uma boa notícia?
Dou risadas olhando pela cozinha. – Nem tenha dúvidas que sim.
- Acho que mais um pouco, e será possível conseguir segurar meu outro eu por algum tempo, caso seja necessário. – Ele diz tenso, avançando pela cozinha – Mas não acho que consiga ganhar dele...
- Vamos torcer para que não precise enfrentar ele. – Digo pensativa – Como está a situação?
Por mais uma vez ele ergue a cabeça focando em algo que não sei o que é. Leva algum tempo, até ele finalmente falar algo – Ele está em confronto agora. Mas ele também está vindo em nossa direção nesse instante.
Definitivamente ele deve estar enfrentando o Brian agora, mas ainda assim está tentando vir nos impedir. Essa porta deve ser muito importante para ele, talvez mais do que eu imagine. Preciso me apressar por aqui.
- A porta não está aqui. – O puxo para fora da cozinha, caminhando apressada – Lembro da primeira vez que a vi. Ela é imensa, não caberia em lugares pequenos.
Entramos na porta ao lado, e vejo ser a sala de jantar, e do outro lado da sala tem mais uma escada. Acredito que todas darão no mesmo lugar, então sigo correndo e a subo, saindo em corredores muito bem decorados com vasos de plantas e muitas pinturas nas paredes. Para um lado segue para uma outra sala com alguns sofás, e para o outro mais corredores.
- Vai me avisando se estamos perto ou não. – Peço olhando por cima do ombro, e a entidade confirma balançando a cabeça e olhando em volta.
Seguimos apressados para os corredores. Faço um gesto para que ele vá para a porta de um lado do corredor, que irei ver a outra, e assim fazemos. Abro a porta, revelando um imenso banheiro com ducha e banheira de coloração branca. Pisos e paredes são de pedra cinza e uma imensa janela está ao lado da banheira.
Mas nada da porta que procuramos, nem tem nada parecido com isso.
Volto ao corredor, e o rapaz me olha fazendo um gesto negativo com a cabeça, e assim seguimos com nossas buscas. Chegamos as próximas portas e fazemos o mesmo, e quando abro não vejo nada relevante, e de imediato bufo irritada.
Do nada ouço um forte estrondo ecoando pela casa que me faz pular de susto. Tenho a sensação que o impacto foi o suficiente para que as estruturas da casa estremecessem.
- Clara! – Ouço me chamando em tom desesperado pelo estrondo que acabou de acontecer, e vou apressada até ele. – Ele está aqui, já está dentro da casa!
- Como ele chegou tão rápido? – Sussurro, praguejando em voz baixa. Pego o rapaz pela mão e o trago para perto. De imediato, todas as luzes se apagam, e a única coisa que resta é a iluminação vinda das janelas – Não importa o que aconteça, não vamos nos afastar.
Ele acena para mim uma vez, olhando de um lado ao outro e avançamos com cautela. A situação acabou de ficar mais complicada, e o silêncio profundo que ronda a casa vai me causando cada vez mais nervosismo.
Engulo em seco me encostando em uma parede, deslizando as costas até estar abaixada. Solto o ar pela boca e volto a caminhar, dessa vez tomando cuidado com cada um dos meus passos para fazer o mínimo de barulho possível. Só agora dou atenção a como o piso de madeira antiga range a cada movimento, e meu coração dispara em cada barulho.
Vou me escorando na parede até chegar na curva do corredor, tomado pela penumbra. Apesar da janela um pouco atrás, sua luz não chega nem perto de iluminar o próximo corredor. Onde estou agora já está bem escuro.
Me concentro, tentando primeiro escutar passos ou qualquer ruído que seja que entregue se existe algo nos esperando, mas não ouço nada. Está tudo quieto.
Respiro fundo, reunindo coragem o bastante, e olho para o corredor escuro.
Está vazio.
Sem esperar, faço sinal para o rapaz me seguir e então avanço pelo local. O novo corredor está bem escuro e é difícil enxergar qualquer coisa a minha frente. Vou tateando a parede tentando evitar de esbarrar em qualquer coisa, até alcançar uma próxima porta.
Encaro sobre o ombro, vendo somente a silhueta do rapaz bem atrás de mim e principalmente seus olhos escarlates que se destacam em meio as trevas.
Tomo um susto ao escutar rangidos e passos pesados do corredor de onde viemos. Levo a mão a boca para conter qualquer grito e prendo a respiração pelo medo, olhando fixamente para o lado iluminado no corredor.
Está ali. Eu sei, aquela coisa está bem ali.
Os passos cessam por alguns segundos, tempo o bastante para que meu coração bata com toda a força dentro do meu peito. Quero ir recuando, mas tenho o receio de esbarrar em alguma coisa e chamar a atenção dele diretamente para nós. Se isso acontecer, tudo o que fizemos até agora será perdido.
Ouço novos passos e fecho os olhos de medo, porém esses os rangidos são cada vez mais distantes de nós. A entidade seguiu na outra direção.
- Clara... – Ouço ao meu lado, e um som bem baixo de uma maçaneta. O rapaz está em frente a uma porta entreaberta no outro lado do corredor, gesticulando apressado para mim – Vem!
Encaro de relance na direção onde escutei os passos, e sigo abaixada até onde ele está. Me vejo em um quarto pouco iluminado com uma imensa cama de casal no centro, pesadas cortinas escuras e um grande armário ao nosso lado.
- Ele veio direto para nós... – Resmungo irritada, andando pelo quarto. – Mas como não nos encontrou ainda?
- Talvez a situação seja a mesma para ele... – O rapaz encara o chão – Consegue sentir que estou aqui nessa casa, mas não sabe exatamente onde... Acho que seja por ele estar em confronto.
- E a situação piora cada vez mais... – Aflita, passo as mãos impacientemente pelo rosto.
- Desculpe Clara, meu outro lado sabe de você por causa da minha presença... – Ele lamenta apertando os olhos. – Você não deveria ter me trazido junto, só estou atrapalhando...
Irritada, o seguro pelo ombro e o sacudo de leve. Seu olhar surpreso crava em mim – Não começa com isso! Você me ajudou muito até agora, e só cheguei aqui com a ajuda que você me deu. E aliás, a culpa não é sua.... Você mesmo disse que ele sabia sobre nós assim que chegamos... Se você quer se lamentar de alguma coisa, faça isso depois que sairmos daqui, porque definitivamente eu não vou ficar aqui muito tempo.
Ele não hesita como pensei que faria. Balança a cabeça concordando de imediato – Você tem razão...
- Eu vou sair daqui, e você vai vir comigo! – Sentencio cruzando os braços. Sem esperar que ele diga qualquer coisa, continuo a falar ao ver que não tem outra porta aqui – Seja como for, percebeu que estamos encurralados?
Ele não me responde, mas caminha pelo quarto olhando ao redor sem parar. Já eu, volto para a porta, encostando a orelha para tentar me situar do que está havendo do outro lado. Está quieto, porém ouço o ruído de algo sendo fechado, e novos rangidos vem do corredor.
- Ele está vindo. O que faremos? – Sussurro sem me afastar da porta.
O rapaz está ao lado do guarda roupa, aproximando de onde estou encarando a porta fechada. Ele para no ponto cego atrás da porta e, pegando minha mão, me puxa para perto de si passando seus braços ao meu redor, me deixando bem próxima dele.
- Ficou maluco? – Digo em um fio de voz, juntando as sobrancelhas – Isso não vai funcionar.
- O armário não tem espaço, e não da para entrar debaixo da cama. – Responde na mesma altura, me apertando mais em seu corpo – Não temos outra opção, além de arriscar isso.
- Se isso der errado, eu vou bater tanto em você... – Resmungo apertando os olhos, encostando meu rosto em seu ombro e passando as mãos pelas suas costas.
Apesar da situação que estamos, por algum raio de motivo gosto de ficar assim. Ele é quente, e apesar de não ser tão definido fisicamente como Brian é, e de aparentemente não ter tanto poder, consegue me passar um pouco de segurança, diferente de sua contraparte que durante todo esse tempo só me instigou medo.
Ele respira devagar, passando uma de suas mãos devagar pelo meu cabelo e a outra mão envolvendo minha cintura com firmeza, me mantendo próxima a ele. Eu poderia ficar relaxada se continuasse nesse silencio todo, porém ouvir a maçaneta girando bem ao meu lado me puxa de volta para a situação que estou.
Prendo a respiração e encolho o máximo que consigo, enquanto seus braços me seguram com mais firmeza perto de si. Minhas pernas fraquejam e meu corpo treme cada vez mais enquanto a porta ao nosso lado é aberta devagar.
Silêncio.
Nenhum ruído.
Nenhum movimento.
Nada acontece.
Sequer me movo agora, e faço tudo ao meu alcance para não fazer mais nenhum mínimo barulho que seja. Gradualmente a porta é fechada, e só após alguns segundos os rangidos vão se afastando novamente até que eu não consiga mais escutá-los. Demora um pouco, mas respiramos aliviados.
- Não acredito que isso funcionou... – Suspiro encostando a testa no peito dele.
- Não só você. Achei que seríamos pegos... – Ele sussurra calmo. Levo meus olhos a ele, que está com um pequeno sorriso no rosto, voltando a mexer no meu cabelo.
- O que foi? – Sorrio junto.
- Não sei... Acho que não é nada. – Ele me responde.
Um barulho explode do outro lado da porta. Parece que algo acabou de ser arrombado, seguido de vários barulhos de impactos, deixando claro que são coisas sendo arremessadas com toda a força pelo chão e paredes.
- O que foi isso? – Sussurro recuando um passo.
- Será que... – Ele pausa assim que escutamos mais um estrondo – Ele está destruindo as coisas?
Um novo barulho acontece, ainda mais forte que o anterior – Talvez por não nos encontrar, ele esteja destruindo tudo sabendo que estamos escondidos... Se queremos sair, tem que ser agora.
- Agora? – Mais um barulho vem dos corredores. – Ele pode nos ver.
- E se ficarmos, ele vai nos achar mais cedo ou mais tarde. – Rebato indo até a porta, girando a maçaneta e hesitando antes de abrir a porta – Vamos sair, e torcer para não o encontrarmos no corredor.
Avanço pelo corredor escuro, atenta aos ruídos de objetos arrebentados violentamente a poucos metros de distância de nós. Chego próxima à curva do corredor, encarando sobre o ombro para me certificar que o rapaz está me seguindo, e ali estava ele com uma expressão apreensiva estampada no rosto.
Ele está nervoso, tanto quanto eu ou até mais. A julgar pelo seu rosto, eu diria que ele poderia sair correndo a qualquer instante, mas agradeço muito por ele estar permanecendo firme... Ou pelo menos tentando.
Quando estou prestes a continuar, de repente os barulhos param, permanecendo apenas o silêncio pairando sobre nós. Meu corpo por inteiro se tenciona, e a madeira volta a ranger em impactos pesados, indicando que a entidade voltou a se mover.
Engulo em seco e aperto os olhos, aguardando o inevitável encontro com a criatura, e tudo que fizemos até agora indo por água abaixo.
Um novo estrondo me faz pular, abrindo os olhos desesperada pelo estrondo, e antes que eu dê por mim, uma mão está tampando minha boca. Respiro apressada pelo medo, reparando bem que quem tapa minha boca é aquele que me acompanhou até agora, e diferente do que esperei, não tem ninguém a minha frente.
- Desculpe... – Ele sussurra, e um novo estrondo ocorre de repente. Meu corpo salta de susto, e ele imediatamente envolve minha cintura em um abraço, acho que em uma tentativa de me acalmar. Devagar, remove a mão da minha boca e me olha nos olhos – Ele entrou em outro quarto, é nossa chance.
Assinto balançando a cabeça repetidas vezes, por mais que eu quisesse, não sei se conseguiria falar alguma coisa compreensível. O rapaz toma a frente segurando minha mão e me puxando pelo corredor iluminado. O quarto de onde os barulhos estão vindo ainda é depois da escada, então seguimos apressados para a mesma e descemos sem olhar para trás.
Chegamos à cozinha pisando devagar, e os barulhos de antes agora são apenas ruídos distantes. Nos entreolhamos, e seguimos de volta para a sala onde chegamos. Por sorte, a entidade não nos notou, acho que ganhamos alguns minutos de vantagem.
- Certo, sabemos que a porta não está pra lá. – Digo em um sussurro, caminhando para a escada do outro lado da sala – Você não consegue sentir nada dela?
- A mesma coisa de antes. – Ele responde com o olhar baixo – Não teve uma variação, a presença parece ser contínua.
Chegamos a um novo corredor, muito parecido com o que estávamos a momentos atrás, e mais algumas portas fechadas. – É... Temos que continuar procurando – Digo frustrada.
Olho para trás um segundo, e os barulhos continuam ecoando pela casa. Demos muita sorte daquela coisa não ter nos percebido. Suspiro, avançando para a primeira porta, e o rapaz segue pelo lado oposto no corredor, indo fazer o mesmo que eu.
A primeira porta que abro, porém, não me leva a um cômodo de uma mansão como eu estava esperando. O outro lado da porta abriga uma escadaria pouco iluminada, diferente de tudo que existe nesse lugar.
- Ei! – Sussurro sem desviar o olhar das escadas – Vem cá ver isso!
O rapaz para ao meu lado, olhando fixamente para as escadas. – Será que... – Ele murmura, erguendo uma mão devagar em direção as escadas – É aqui, a presença está mais forte... Você encontrou!
- Finalmente! – Dou um meio sorriso, o pegando pela mão e o puxando comigo – Encosta essa porta pra não deixar obvio que entramos aqui.
Tudo bem que falei apenas em brincadeira, mas ele levou a sério e realmente fez o que pedi. O resultado disso é um breu quase que total. Acho que em situações normais, eu até daria risada, mas nem de longe essa é uma situação normal.
Tateio as paredes, descendo devagar com cuidado. Está escuro, então agora todo cuidado é pouco, além disso o ambiente parece ter mudado. Apesar de tudo ser tão fechado, ar aqui é mais frio, um pouco sufocante também. Só torço para que ele esteja certo sobre o lugar para onde estamos indo.
- Tem certeza que é por aqui? – Questiono baixo, e mesmo assim minha voz parece ecoar.
- Sim, só por estar aqui eu consigo sentir a energia com muito mais intensidade. A porta para o Abismo está lá embaixo. – Ele sussurrando.
Apresso meu passo, indo o mais depressa que posso e tomando cuidado para não cair. É apenas um lance de escadas, mas ele é extremamente longo, tanto que já perdi minha noção do quão fundo estamos indo nesse lugar.
Devido à pouca luz, acabo pisando em falso em um lugar plano. Vou tocando o piso com a ponta do pé, me certificando se o espaço a minha volta por inteiro é plano, e por sorte é. O problema agora é conseguir me localizar aqui.
Levo as mãos em frente ao corpo, tomando cuidado para não bater em nada. Diferente de antes, agora existe um som a nossa volta, é parecido com uma corrente de vento, e está perto.
- Ela está aqui, bem a nossa frente. – Ele diz baixo.
- Onde? – Questiono.
- A proximidade com a porta está me fortalecendo mais a cada segundo, consigo fazer esse lugar se iluminar... Mas... – Ele suspira – É provável que na hora que eu fizer isso, minha contraparte saberá que já estamos aqui.
Penso por apenas um segundo – Então só precisamos fechar a porta antes que ele chegue.
- Tem certeza disso? – ele sussurra.
- Só faz! – Reclamo me segurando para não bater o pé.
Levam alguns segundos, e fortes luzes surgem repentinamente, iluminando o lugar por inteiro, que agora vejo se tratar de um amplo salão com teto alto e bem extenso, e apesar de não haverem janelas, esse lugar é tão grande que não é claustrofóbico. Pedras negras irregulares revestem todo o piso, e pilares enormes sustentam corredores de um andar acima de nós.
Ao redor existem apenas algumas portas de madeira. Bem a nossa frente está uma escadaria bifurcada que levam a corredores discretos.
Estendido no centro do salão está um tapete de cores cinza escuro e várias linhas amarelas simetricamente distribuídas se estendendo por todo o tecido. Olhando para cima, vejo alguns longos tecidos finos, de cor semelhante ao tapete, inertes e presos ao parapeito do andar acima.
E aquilo que estivemos procurando desde que saímos daquelas correntes está ali, bem no centro da bifurcação da escada. A imensa estrutura de pedra cinzenta encostada na parede, abrigando uma profunda escuridão em seu interior.
A porta do Abismo. Finalmente a encontramos.
Devagar, avanço seguindo em direção a porta, alcançando os primeiros degraus sem desviar meus olhos dela. Da primeira vez que a vi, eu sequer tinha noção do que ela era ou o que significava. Agora é diferente, eu entendo a magnitude do que está a minha frente.
Estou bem próxima, encarando diretamente o que existe dentro dessa porta, ou tentando. Do outro lado é profundamente escuro, por mais que eu me esforce para enxergar algo do outro lado, não consigo.
Toco a pedra rústica da porta enquanto sinto algo no meu corpo... Um tipo de pressão, como se essa porta, ou o que existe do outro lado dela, estivesse me atraindo para dentro, ao mesmo instante que uma força parece invadir meu corpo, me renova, encanta de uma forma que nunca imaginei acontecer.
Com certeza, essa é uma verdadeira passagem para uma outra dimensão.
De repente, um barulho de algo sendo arrebentado com toda a força pode ser ouvido da direção que viemos, e isso me tira do transe que estive até agora e puxa de volta a realidade de antes.
- Olá olá... – A voz estrondosa da entidade ecoa no lugar, tão forte que faz o lugar inteiro tremer.
- Ele já está chegando! – O rapaz comenta, agora sem tom de voz é mais sério do que antes. Somente agora percebi que ele não me acompanhou, mas sim permaneceu parado na base da escada, de costas para mim – Se apresse e feche a porta Clara!
- Mas e você? – digo encarando dele para a porta de onde viemos – O que irá fazer?
- Irei segurá-lo e ganhar algum tempo para você. – Ele avança alguns passos – Apesar da minha atual proximidade da porta, ainda não sou forte o bastante para vencer... Mas consigo contê-lo por algum tempo. Por isso se apresse!
Relutante, balanço a cabeça por vez, me virando para a imensa porta – Tome cuidado.
- Farei o possível... – Respiro fundo, tentando acreditar na resposta que tive.
Corro para um dos lados da imensa porta. Olhar essa imensa estrutura me faz duvidar se conseguirei mesmo fechar essa coisa, mas preciso tentar. Apoio as mãos na pedra fria e tento empurrar com toda a força do meu corpo, mas a porta mal se move.
- Você já foi longe demais Clara! – A voz agressiva da criatura que conheço tão bem ecoa novamente pelo salão, parecendo muito com o rugido ensurdecedor de alguma besta.
Ruídos fortes vem do corredor que viemos, e algo se choca em um pesado impacto contra o chão, erguendo uma densa nuvem de poeira que de imediato se espalha pelo lugar.
Ergo os braços, protegendo o rosto da poeira e também da forte rajada de vento causada pelo impacto. Os tecidos presos no parapeito se agitam descontrolados, toda a estrutura do lugar parece ter sido abalada com esse choque, rachaduras se espalharam pelo piso e algumas pedras saltaram de leve, tornando o piso visivelmente irregular.
A poeira abaixa vagarosamente, e o brilho avermelhado de seus olhos por trás da nuvem é a primeira coisa que ganha destaque. A agressividade é nítida nesse olhar, o anseio pela destruição, a perversidade e a completa loucura deixam claro sua essência.
- Não esperava ver essa sua cara nojenta outra vez, farsa imunda... – Sua voz grossa ecoa forte no lugar, avançando em um passo pesado, forte o bastante para esmagar o chão afundar. Seu corpo esguio repleto de feridas e estacas presas nas costas se revela, e ele carrega seu largo sorriso macabro no rosto – Não sei como vocês se libertaram... Mas vou me certificar que não volte a acontecer!
A criatura pende seu corpo para frente, saltando em um impulso contra sua contraparte em uma extrema velocidade. A entidade acerta a contraparte com a lateral do corpo com tamanha força, que ambos batem contra a base da escada.
O chão treme de leve com o impacto, e o rapaz que me acompanhou por todo esse caminho arfa com o pesado golpe, jogando a cabeça para trás e cruzando seu olhar com o meu – Clara! A porta! – Me grita tenso.
Antes que eu possa responder, o vejo recebendo um golpe no rosto, escutando ele agonizando pelo novo golpe mas sem reagir. Aperto os olhos sem conseguir ver mais, voltando minha atenção para a porta e tentando fechá-la.
Preciso confiar nele, do mesmo jeito que confio em Brian.
- Não entendo... – A entidade sussurra se erguendo devagar – O que ganham fechando a porta?
- Isso não é da sua conta! – Olho de relance para eles ao escutar a voz do rapaz.
Chamas queimam em seu punho esquerdo que dispara contra o rosto da criatura em um golpe certeiro, fazendo cambalear para trás. Aproveitando da brecha que conseguiu, ele segura firme o rosto do ser com a mão direita, e uma explosão flamejante surge jogando a aberração para trás.
- Fogo? – Questiono arfando o olhando de canto, encostando as costas na pedra fria da porta e usando toda a força das pernas para tentar mover a porta.
- É novo para mim também, deve ser graças a porta. – Me responde, e seus punhos são cobertas por intensas labaredas.
- Faz o que conseguir por aí! – Digo arfando, apertando os olhos com toda a força, me esforçando para empurrar a maldita porta que mal se mexe.
Os sons de um combate começa ao meu lado. Golpes, tremores, risadas, tudo explode bem próximo de mim unido a uma intensidade que invade meu corpo. Não quero ver, por mais que minha curiosidade peça por isso, eu não quero. Preciso me focar em acabar com tudo.
Arfo voltando a abrir meus olhos, focando no chão. Apesar de todo o meu esforço, não consegui mover a porta o mínimo que seja. Me afasto, olhando para o interior da porta, encarando o Abismo a minha frente, e imediatamente o temor toma conta do meu corpo.
Esse lugar, do outro lado dessa porta. É imenso, posso sentir ele atraindo meu corpo para dentro em uma força descomunal. A pressão vinda de dentro da porta é esmagadora, invade meu corpo em intensos e seguidos baques, me puxando para dentro a cada segundo, convidando para invadir seus domínios.
Minhas pernas falham e caio de joelhos, encarando perplexa toda o que está a minha frente, sentindo meu corpo inteiro tremendo de medo por estar diante disso. Uma outra dimensão.
Isso é o Abismo.
A entidade veio desse lugar?
Aquele homem que Tamires busca vive dentro desse lugar?
Como é possível que exista vida dentro de tamanha escuridão?
- Clara! – Um grito me faz despertar.
Olho para trás, encarando a cena do rapaz sendo projetado contra uma pilastra, com os dedos da entidade em torno de seu pescoço. Ele se debate, tenta socar o braço da criatura, porém ela mal se abala, e por um segundo, seu olhar se encontra com o meu.
A entidade abre seu punho livre, ao mesmo momento que seu sorriso aumenta lentamente até atingir proporções macabras, avançando seu punho através do corpo do rapaz, transpassando seu peito arrebentando parte da coluna atrás de seu corpo.
Observo assombrada toda a cena a minha frente, assistindo seu corpo estremecendo e seus olhos vermelhos chocados com o golpe recebido.
A entidade retira seu punho do corpo inerte, o jogando contra o chão e avançando sobre ele como um animal, desferindo um pesado soco que parece ter sido em mim, tamanha a força que foi usada. A criatura não para, ele agarra o rapaz outra vez, jogando seu corpo pelo salão que logo vai de encontro ao chão já destruído.
- Sua vez... – A entidade sussurra sem se virar para mim. Ele encara satisfeito o corpo sem reação do rapaz.
Seus olhos vem a mim, enquanto suas íris pulsam em um forte brilho de tom avermelhado. Ele ergue seu rosto sorrindo enquanto o ar pesa a cada segundo devido a sua força.
Seu corpo treme, as estacas em suas costas saltam ainda mais para fora de seu corpo, algumas sendo arremessadas para longe. Algumas fincam nas paredes de pedra escura, outras caem ao chão, e no lugar, imensos ossos surgiram.
Ele tem espasmos enquanto caminha para mim, e seu corpo parece crescer, tornando-se cada vez mais magro, esguio e alto, dedos se esticam, afinando até se transformarem em verdadeiras lanças. Corpo, braços e pernas estão extremamente magros, anoréxicos, tremendo sem parar.
Sua pele antes cinza clareia ainda mais até ficar completamente pálida, os olhos afundam como se entrassem em seu crânio, até não ser mais possível de serem vistos, apenas seu brilho avermelhado se destaca. Os dentes se afiam como navalhas, destacados em um sorriso sinistro.
Seu punho direito ergue tremendo, movendo vagarosamente até a altura do ombro. Seus dedos envolvem um dos vários ossos em suas costas, segurando firme e puxando de uma vez. Sangue negro cai de suas costas e espalha pelo chão, e ele curva seu corpo para frente, fincando a ponta do imenso osso arrancado no chão. Esse osso é tão grande que é quase do meu tamanho.
A característica névoa começa a surgir emergindo do chão, profundamente enegrecida, tomando todo o espaço onde estamos. Porém, diferente de outras vezes, ela é profundamente mais escura, e é muito mais intensa ao redor de seu corpo...
Espera, isso é diferente da névoa da entidade... Eu... Eu já vi isso antes, com o Cara do Casaco.
Isso... Isso é escuridão!
Sua mão treme outra vez, apertando o osso com cada vez mais força causando rachaduras no chão, e a cada segundo o ar fica mais pesado.
A criatura rosna abaixando sua cabeça, cada vez mais agressiva, ainda mais do que todas as vezes que já vi. A névoa concentra cada vez mais, e um estrondoso grito de pura insanidade vem da criatura, repelindo toda a escuridão a sua volta em uma explosão que atinge meu corpo e me desequilibra.
Ele bate seu punho no chão com força o suficiente para rachá-lo, investindo em um pulo extremamente alto vindo em minha direção. Forço minhas pernas, me lançando para o lado, esquivando do golpe estrondoso que acabou de acertar o chão.
Respiro fundo apoiando uma mão no chão e encarando sobre o ombro. Ele se ergue, rodeado pela escuridão que se dissipa no ar. Seus olhos vermelhos vem para mim junto a sua expressão que sequer muda, permanecendo fixa no sorriso assombroso de antes.
A entidade balança o osso em sua mão como uma lâmina, a deixando sobre o ombro bem rente as costas, avançando contra mim em mais um pulo direto.
Me lanço para o lado, desviando de mais um golpe que passou muito perto. Encaro por cima do ombro, e ele está com o osso erguido, descendo contra mim com toda a velocidade. Desvio rolando no chão sentindo o impacto no chão como se tivesse sido no meu corpo de tão pesado que foi e já me erguendo, porém a criatura já balança o osso mais uma vez, o erguendo de uma vez como se aplicasse um corte.
Não posso ficar de costas para ele, preciso estar atenta e com os olhos focados nessa coisa, e em cada movimento feito. Um vacilo, e com certeza acabarei partida ao meio por esse osso imenso.
Como lidar com isso? Como?
Tudo apaga de repente, voltando a clarear de uma vez. Diferente de antes, o lugar está tingido com várias manchas vermelho clara e outras escuras, tanto pelo chão quanto nas paredes, e um cheiro estranho invade minhas narinas. Estranho isso e olho em volta rapidamente, entendendo que aquilo não são simples manchas, são poças de sangue.
Gotas vermelhas caem do teto e o cheiro forte do sangue e putrefação me enjoam, mas ainda atrevo a encarar o alto, e a visão que tenho embrulha meu estomago. Corpos estão pendurados no telhado, alguns cravados nas pedras, outros presos em imensos ganchos suspensos no ar, e para piorar ainda existem partes de corpos cortados em outros ganchos.
Somente agora me dou conta dos gemidos agonizantes ecoando no ar. Alguns dos corpos se contorcem em espasmos, gorgolejam e sacodem, ecoando o ruído de correntes no ar. Alguns dos rostos são familiares, mas não me atrevo a olhar demais para eles. Aqueles rostos... Eu não aceito ter visto Marina, Tiago, Letícia e Brian em meio aqueles corpos no teto.
Mas o que mais me assombra e faz meu estomago revirar, são as duas pessoas que tem seus corpos mutilados e atravessados por partes do imenso lustre no centro desse lugar... Seus rostos estão virados na minha direção, seus olhares e expressões sem vida estão direcionados a mim.
Não podem ser meus pais... Não podem ser eles.
Não... Isso não é real... Isso não é real... Nada disso é real.
São ilusões, todas essas pessoas são apenas ilusões. Brian é apenas uma ilusão. Meus amigos são apenas ilusões. Meus pais são apenas ilusões!
Meus olhos pesam e lagrimas correm pelo meu rosto, meu peito se enche pelo medo e todo o desespero pelo que acabei de ver. Minha atenção retorna a entidade, que caminha devagar em minha direção, erguendo o osso em sua mão, avançando contra mim em uma nova estocada.
Só que dessa vez, não tento me esquivar... Não tenho forças para desviar desse ataque, meu corpo não me obedece mais. Ver meus pais, meus amigos e meu guardião dessa forma retirou todas as minhas ultimas forças, não aguento mais isso...
Algo pesado atinge a lateral do meu corpo, e vou de encontro ao chão duro. Pisco algumas vezes, percebendo ser a contraparte da entidade, que me olha tenso – Você está bem?
- O que? – Sussurro piscando algumas vezes, sem entender como ele está de pé.
Ele olha para trás – Vem! – Grita se levantando apressado me puxando para o lado, e algo cai bem no local onde estávamos.
Nos levantamos, observando a entidade se erguendo outra vez com seu rosto abaixado. Por mais uma vez a escuridão se concentra em torno de seu corpo, e novamente sua mão aperta o osso o esmagando contra o chão. Um rugido vem dele, e logo um grito ainda mais selvagem que o anterior ecoa pelo lugar, explodindo a escuridão ao redor de si, nos empurrando para trás.
Minhas costas batem contra o chão, tateio em volta percebendo o molhado ao meu redor. Encaro minhas mãos, e os tons vermelhos do sangue cobrem meus dedos. Novamente olho em volta, enxergando todos os corpos pelo lugar, e por último meus pais, que mesmo estando em um lugar diferente, eles continuam me observando com seus olhos vazios.
Não consigo conter as novas lagrimas, e um soluço me foge. Por que as coisas tinham que chegar a esse ponto? Por que?
- Clara, olhe pra mim! – O rapaz ao meu lado diz ofegante enquanto se ergue, atraindo minha atenção com um susto. – Não acredite em nada disso... Nada do que está vendo é real...
- Mas... – Sussurro.
- Vamos, falta pouco para conseguirmos. – Ele segura minha mão, encarando sua contraparte com uma expressão séria – Não pode desistir agora, senão tudo estará perdido... Vem!
Não consigo responder, não tenho palavras. O rapaz se ergue, e logo estou de pé junto dele. Gostaria de saber como ele está depois de ter tomado aquele golpe, mas ver ele com a mão no peito me dá uma resposta.
- O outro eu está bem de frente a porta. – Diz respirando fundo – Se quisermos fechar a porta, parece que precisaremos passar por ele.
- Então temos um problema... – Digo secando o rosto com as costas da mão – Não consegui fazer nada com a porta.
- E eu não consegui ser páreo para ele. – Responde, e trocamos um olhar de canto de olho. Por algum motivo, damos um sorriso – Realmente, temos um problema.
- Temos mesmo, dos grandes – Respondo.
Não faço a menor ideia de como podemos resolver isso. Chegamos longe mas nenhum de nós consegue enfrentar essa coisa em igualdade, e a porta continua bem aberta atrás dele. Estamos os dois encrencados, e mesmo assim continuamos sorrindo.
Vemos a criatura se abaixando, dando um novo salto em nossa direção. Corro por uma direção, e olhando de relance, o rapaz também está correndo, e logo o forte impacto ocorre no chão. Apesar de irmos por lados diferentes, nós seguimos rumo a porta do Abismo.
A poucos passos da escada, sinto algo atravessando meu ombro direito, e meu cabelo sendo puxado para trás. A dor se espalha, e antes que eu possa gritar, meu corpo é erguido e jogado de volta contra o chão com muita força. Aperto os olhos pelo impacto, e meu pescoço é segurado com força, lentamente me erguendo do chão. Sacudo os pés, tentando alcançar o chão ou chutar a entidade, mas não consigo nada.
Seus dedos frios apertam meu pescoço cada vez mais, me sufocando sem me dar chances de escapar. O ar desaparece, tudo começa a apagar, mas ainda encaro a porta... Preciso fechar ela, mas como fazer isso?
Sinto algo atravessando minha coxa esquerda e prendendo meus movimentos, a dor avassaladora se espalha e sinto algo escorrendo por ela. Olho para baixo como posso, notando o imenso osso cravado na minha coxa, a atravessando por inteira.
Quero gritar, mas me falta forças. O olhar e sorriso dessa coisa permanece inalterado, cravado em mim. Aos poucos ele solta o osso e na minha perna e ergue o punho, atravessando entre meu estomago e peito.
Meus braços caem e minha consciência começa a desaparecer devagar, enquanto ele retira seu braço do meu corpo e solta meu pescoço, me permitindo voltar ao chão em uma queda abafada.
Tão perto... Estive tão perto, e não consegui...
Novas lagrimas escapam dos meus olhos, molhando meu rosto devagar. A dor atravessa todo o meu corpo, meus pensamentos se partem e são levados para longe. Não consigo me mover direito, meu corpo mal me responde...
Meus olhos vão para a porta, onde o rapaz ainda tenta fechar a mesma... E a entidade caminhando devagar em sua direção, parecendo estar desfrutando das tentativas da sua contraparte, e antes que perceba, o rapaz é jogado na mesma direção que eu estou.
Ao perceber meu estado, o rapaz corre até mim, erguendo minha cabeça devagar e me olhando assustado. Ele até tenta falar, mas não entendo nada que ele me diz.
O brilho avermelhado em seus olhos fundos se destaca, pulsa tornando sua expressão congelada ainda mais macabra.
A entidade caminha lentamente, pisando forte e arrastando a ponta do osso no chão. Ele recua o osso e avança contra nós em uma estocada. Só que agora, não temos mais como nos defender ou escapar dele.
Algo me chama a atenção... Por acaso... Havia aquela silhueta imensa dentro da porta?
Por um momento, os dois param, e viram seus olhares assustados para a porta. Pisco devagar, tentando entender o que está acontecendo, até tento me mexer, mas a dor no meu corpo é tanta que não consigo.
Respirar é difícil, e apesar de complicado, consigo enxergar e distinguir algumas coisas. Alguém está saindo da porta, avançando devagar e parando, nos olha do topo das escadas.
É alguém alto, muito alto, de corpo extremamente forte. Ele tem uma pele parda, longos cabelos repicados bagunçados e jogados para trás. Seu corpo está envolto por grossas placas enegrecidas que parecem uma pesada armadura, sejam nos ombros e braços, nas laterais do tronco nú e pelas pernas... Não parecem placas, parecem até... Escamas. Sem falar do imenso par de asas se abrindo em suas costas.
Sua presença e postura são agressivas, isso fica ainda mais nítido pelo seu olhar ameaçador, os lábios curvados para baixo, os punhos fechados, o poder e tamanha hostilidade em torno de si. Ele nos encara de cima em uma expressão de pura fúria implacável e desprezo absoluto.
Apenas encarar seus olhos é o bastante para um calafrio me atravessar.
Ele nos observa alguns momentos, como se estivesse nos analisando em cada detalhe. Não sei quem, ou o que ele é, muito menos o que ele veio fazer... Mas sua presença aqui tornou as coisas muito piores, estou sufocando só por estar aqui, e ele não fez absolutamente nada.
Ele não se pronuncia, se vira e caminhando de volta para dentro da porta. Após alguns passos, ergue suas mãos e, como se obedecessem sua vontade, as imensas portas reagem estrondosas, movendo-se ruidosas e fechando lentamente a passagem.
Ele desaparece ao entrar novamente por aquela passagem e as portas seguem fechando até perto de se tocarem. Com o impacto das portas, uma forte luz surge, e de repente, tudo se silencia.
Aperto os olhos um pouco mais, e toda a luz desaparece.
Tudo ao meu redor está quieto, e gradualmente meu corpo parece pesado. As dores que sentia momentos atrás não existem mais, mas meu corpo está muito mais pesado.
Repentinamente começo a escutar alguns barulhos que não haviam antes, e um golpe de vento frio bate no meu corpo, causando um calafrio pela minha espinha e arrepios se espalhando por toda minha pele.
Pisco algumas vezes, me encontrando em pé em um local muito diferente, e bem mais escuro, o único foco de luz aqui vem de pequenas chamas queimando sobre alguns objetos espalhados, mas isso é insuficiente para iluminar o lugar.
Não é mais o salão de antes, não é o gelado do piso de antes, mas sim cócegas nos meus pés nús. Olhando melhor, percebo estar em um local aberto, e o céu noturno é o motivo de toda essa baixa luminosidade.
Todo o local é coberto por um alto gramado, e os sons do que acredito serem grilos entregam que estou em um campo, ou algo muito próximo disso. Ao longe acho que consigo ouvir sons de carros, ou talvez seja só uma impressão minha.
Um pouco de luz ajudaria muito em uma hora como essas.
Encaro minhas mãos, elas não possuem mais as manchas de sangue que haviam momentos atrás. Algumas dores me afligem, mas muito mais leves do que antes.
Algo me vem em mente, lembro de tudo que estive enfrentando momentos atrás, e olho ao redor por mais uma vez, procurando tanto o rapaz que esteve me acompanhando por todo esse tempo, e também a entidade.
Corro os olhos em volta, tanto aflita por não encontrar nenhum dos dois, quanto confusa por ter surgido aqui tão de repente, mas não encontro nenhum dos dois.
Não encontro nenhum dos dois. Me sinto tanto aliviada quanto nervosa por isso. Devagar, viro meus olhos para baixo, encontrando meu guardião bem ferido caído no chão, me encarando com um semblante surpreso.
- B... Brian? – Sussurro sem acreditar.
Eu... Eu estou de volta?
Antes que eu possa me abaixar para abraçar ele, perguntar o que houve para ele acabar nesse estado, ou então realmente me certificar que estou de volta a realidade e ao controle do meu corpo, Brian agarra minha perna, apertando com força e uma intensa descarga elétrica me invade.
Grito com toda a força pela intensidade que me percorre, até a energia ceder de uma vez. Sinto meus olhos embaçar, meu corpo fraquejar, e não consigo mais me manter de pé.
Perdendo completamente minha consciência desabo para trás, e tudo apaga.
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