Capítulo 36 - O lado oposto
4100 Palavras
Nossos passos ecoam pelo ambiente, um longo corredor que parece não ter fim. Esse tem sido o som que escuto perfeitamente já faz algum tempo.
O lugar onde estamos agora me lembra muito os corredores de um hotel de luxo.
O corredor é bem largo e possui o teto alto. O piso é de porcelanato com cores brancas e pequenas listras pretas nas laterais. As paredes contam com uma lisa pintura cinza suave. Existem pilastras com estilo de arquitetura grega a uma distância razoável uma da outra, e no teto tem luminárias embutidas com uma suave luz branca, que proporcionam uma leve elegância ao local.
Mas diferente de um corredor de hotel, aqui não existem portas em nenhum dos lados. A distância entre cada uma das pilastras me trás a impressão de serem milimetricamente posicionadas, e não existem bifurcações nesse corredor.
Eu esperava encontrar algo diferente depois de algum tempo, um tapete, mobília, ou quem sabe janelas e cortinas... No mínimo alguma decoração, quadros, pinturas de tons diferentes ou com algum estilo variado, ou vasos encostados nas paredes... Mas não tem nada.
Apenas um longo corredor sem fim.
Isso torna esse lugar altamente claustrofóbico... Estar aqui é agoniante.
Ignoro essa sensação e levo minha atenção a quem está ao meu lado. Desde que saímos daquele quarto estranho e seguimos por esse corredor, ele não disse uma palavra que fosse.
Admito que fiquei aflita com sua presença. Uma grande parte de mim ainda não confia muito nele, e eu estou a todo momento esperando que ele inicie um ataque... Mas já faz tempo que estamos apenas andando, e ele não faz nada.
De cara, achei estranho ele andar de um lado ao outro apenas com uma calça rasgada, por isso, fiz questão de criar algumas roupas para ele. Neste momento, ele veste uma calça cinza clara, uma camiseta preta de mangas longas que acabou justa em seu corpo, e um par de all-star. Roupas que, apesar de simples, ficaram muito bem nele.
- Então... – Começo, balançando os braços e batendo as mãos nas pernas por algumas vezes. Seu olhar vem a mim com curiosidade, enquanto penso o que falar – Onde estamos indo?
- Achei que você sabia... – Me responde erguendo uma sobrancelha. – Estamos na sua mente.
- É, verdade... – Digo balançando a cabeça concordando. – É que isso é meio novo para mim.
- Não só para você Clara. – Diz com a voz contida.
- Certo, então... Estamos dentro da minha cabeça? – Questiono olhando para ele, que apenas confirma acenando – E como podemos fazer para... Sair daqui de dentro?
Ele passa uma mão pelo queixo e seu olhar vai ao chão – Nesse momento, o meu outro "eu" tem o controle de maior parte do seu corpo. Para sair, você teria que recuperar o controle.
- E como se faz isso? –Recebo como resposta apenas um erguer de ombros – Ta, essa não era bem a resposta que eu esperava.
- Desculpe, não sei muitas formas como posso ajudar. – Ele diz abaixando a voz.
Penso por alguns segundos – Bem, mas tem algo em que você possa me ajudar? Aliás, o que você consegue fazer?
- Na minha situação atual, consigo sentir se estamos perto da consciência daquele outro "eu", é um jeito de evitarmos ele... – Seu olhar abaixa um pouco – Eu não conseguia isso antes, mas agora tudo que ele enxerga e escuta com seu corpo, eu também consigo.
São poucas coisas, mas ainda assim qualquer ajuda dele será muito bem-vinda. Agora que penso melhor, uma coisa em suas capacidades me chama a atenção – Espera, você consegue ver o que aquela coisa está vendo?
- Sim, consigo. – Diz em um tom confuso.
- Então me fala o que está acontecendo! – Peço aflita levando minhas mãos aos seus braços.
Ele me olha surpreso pela minha aproximação. Ele abre a boca e gagueja um pouco – Ta eu... Eu vou tentar, espere só um pouco. – Ele fecha seus olhos por alguns segundos – Ele está parado em um lugar alto, está cheio de plantas... Acho que tem uma estrada de terra perto...
- Plantas? Estrada de terra? Que lugar estranho... – Digo em voz baixa – E você consegue influenciar as ações daquela coisa?
- Infelizmente não. – Ele diz erguendo uma mão – No meu estado atual, estou fraco demais para conseguir fazer qualquer coisa.
Cerro o olhar – E quais tipos de coisa você faz no seu "estado normal". – Faço questão de fazer aspas com os dedos. Acho que conversar e descobrir mais sobre ele pode ser a melhor escolha.
- Se refere à quando eu estava no Abismo? – Questiona.
- É, pode ser isso. – Digo e volto a olhar para frente, na vã expectativa de que algo mudou.
Ele cruza seus braços e seu olhar novamente vai ao chão. Sua expressão é pensativa, e por um segundo duvido que ele saiba fazer mesmo alguma coisa – Pelo que consigo me lembrar... Sou capaz de ficar intangível por alguns poucos momentos, consigo criar um espaço para ocultar minha presença e que permite me mover com total liberdade... E além disso, consigo compartilhar minha energia com outros seres e posso mudar minha aparência... E acho que é isso...
O observo de soslaio, pensando em como ele tem justamente as mesmas habilidades que a entidade possui... Claro, algumas poucas diferenças, mas algumas apenas se repetem.
- Algum problema? – Ele questiona.
- Apenas pensando que já vi algumas dessas habilidades na sua contraparte. – Digo balançando a cabeça algumas vezes – Me deram muita dor de cabeça.
Ele torce a boca e encolhe os ombros. Presto atenção nele, que desvia seu olhar para baixo parecendo estar tímido – Desculpe...
- Ei, calma. Está tudo bem. – Dou um meio sorriso olhando para ele – E também, não precisa se desculpar a toda hora.
- Des... – Para de falar antes de terminar mais uma de suas desculpas, e me seguro para não rir. Seu olhar continua para baixo – É que... Me incomodo por essa situação Clara. Você está passando por problemas por minha causa.
- Acha isso? – Ergo as sobrancelhas, levando as mãos ao bolso da minha calça.
- Estou certo disso! – Exclama e sua atenção volta a mim – Se não fosse minha presença aqui, aquele meu outro lado nunca teria surgido...
- É, talvez você esteja certo. – Digo rindo e ouço ele suspirar – Mas agora, ficar pedindo desculpas não é algo que irá mudar muita coisa, não acha?
Não tenho uma resposta com palavras, apenas um aceno positivo. Apesar de sua aparência de um jovem rapaz que se destacaria por ser diferentes dos demais e que talvez traria alguma autoconfiança, com os ombros encolhidos dessa forma e com o olhar baixo fazendo parecer estar tímido de tão acuado, o fazem parecer muito fofo. Não sei porque estou pensando isso de um ser do Abismo, mas é o que aparenta.
Continuo sorrindo, balançando a cabeça negativamente – Se sente culpado?
- Muito. – Ele responde baixinho.
- Relaxa, até que não foi de todo mal... Apesar de todos os problemas, tive a chance de ver muitas coisas boas. – Digo sorrindo de canto, refletindo no lado bom de toda essa situação.
Sua expressão para mim é de desconfiado, e me encara de canto com os olhos cerrados. Essa íris avermelhada antes me assustava, agora que posso encará-la de perto e com mais calma, até consigo ver beleza nelas... Por mais que me lembre um pouco os olhos de pessoas albinas.
- Quero saber uma coisa meio boba... – Volto a falar ao pensar no detalhe que ele é um ser de outra dimensão – Você já saiu da sua dimensão alguma outra vez?
- Essa está sendo minha primeira vez fora do Abismo. – Responde contido.
- Entendi... E já encontrou outras pessoas antes? – Pergunto curiosa.
Seu olhar curioso fica em mim – Outras pessoas?
- É sabe, outros humanos além de mim. – Digo erguendo os ombros.
Tenho minha resposta quando ele nega com a cabeça – Nunca.
- Isso é sério? Nem no Abismo? – Digo surpresa.
Ele me confirma erguendo seus ombros – Não existem vocês pessoas no Abismo... Não consigo lembrar se já vi alguma pessoa lá.
- Então, eu sou a primeira humana com quem você interage? – Pergunto animada.
- Ao que tudo indica, sim. – Responde erguendo uma sobrancelha.
Dou um sorriso de canto – Fui sua primeira experiência com uma humana? Gostei disso. – Faço um tom sugestivo em tom de brincadeira, mas tudo que recebo de resposta é um olhar confuso da entidade – Você entendeu a piada, não é?
- Isso... Foi uma piada? – Me olha fixamente, com a sobrancelha ainda mais erguida.
- É, foi uma piada... – Dou um meio sorriso de sua reação.
Eu não acredito, ele não é só um lado bom. Parece que também é totalmente inocente.
Fecho a cara e desvio o olhar para o lado, bufando uma vez – E é agora você vai achar que todos os humanos são muito chatos.
Um pequeno sorriso surge nele – Por que diz isso?
- Talvez eu não seja a melhor pessoa para se manter uma conversa, ainda mais depois dessa minha péssima tentativa de fazer graça. – Digo rindo.
Seu sorriso cresce cada vez mais – Estive preso por muito tempo sem interagir com ninguém... E não estou te achando uma má companhia Clara, estou gostando de conversar com você... Por mais que eu não entenda suas piadas.
- Muito obrigada pela parte que me toca. – Digo aos risos.
- Disponha, mas... – Ele continua me olhando com certa curiosidade – Eu não te toquei.
- É jeito de falar, não complica. – Digo gargalhando e ele sorri com minha reação. Estalo os dedos com o pensamento que me surge – Lembrei de uma coisa. Ainda não sei seu nome. Como você se chama?
- Eu... Eu não tenho um nome. – O encaro surpresa, e ele volta a se encolher.
- Ué, como não? – Questiono abrindo os braços.
- No Abismo não temos nomes, nunca foram necessários. – Explica com a voz fraca. Não sei se pela sua aparente timidez, ou por estar incomodado pelas minhas perguntas.
Balanço a cabeça concordando – Certo, você não tem um nome...
- Nunca tive um... – Ele me confirma. – Se já tive nome alguma vez, não me lembro mais...
- Que chato. Eu não queria ficar te chamando de "coisa" igual aquela coisa maluca. Vocês até são o mesmo ser, mas você é bem mais legal que ele. – Digo em tom de brincadeira, que consegue criar um novo sorriso em seu rosto – Já sei. Quanto tudo isso se resolver, pensarei em um nome para você.
- Você... Tem certeza disso? – Ele para de caminhar, me olhando surpreso – Não precisa me dar um nome Clara... Eu nunca tive, então... Isso não me faz falta...
- Não é porque você nunca teve, que eu ficarei sem te dar um nome decente. – Mantenho o sorriso no rosto, e ele copia meu sorriso... Ou tenta.
Ele ainda está bem acuado em relação a mim.
É bom ver ele assim, me faz enxerga-lo como bem mais do que uma estranha criatura vinda de outra dimensão. Percebi que as vezes que olho para ele, ou que tento me aproximar, ele acaba se encolhendo, desviando o olhar ou falando com a voz contida. Uma parte de mim enxerga esse ser como um garoto tímido de verdade, e estou gostando disso.
Me faz pensar se timidez não é um traço de personalidade da verdadeira entidade... Mas também, penso na possibilidade de ele ter medo de mim. Não gostaria de assustar ele, afinal não vejo nenhum traço da maldade que sua contraparte tem.
- Tenho certeza sim. Assim que essa situação maluca estiver resolvida, pensarei em um bom nome para você, e espero que goste. – Digo sorrindo tocando seu peito com a ponta do dedo algumas vezes. Ele acompanha meus movimentos com o olhar, e então me encara com uma sobrancelha erguida mostrando estar um pouco sem jeito.
- Tudo bem... – Ele diz em um fio de voz sem desviar sua atenção de mim.
- Tá, mas o principal agora... – Levo as mãos a cintura e bufando incomodada – Pensar um jeito de sair desse lugar. Todos esses corredores já me irritaram.
- Lembra do que eu te disse naquela sala? – Ele comenta, olhando de um lado ao outro – Aqui é sua mente. Apesar do seu corpo estar sob controle do meu outro "eu", ainda é sua mente. O que você quiser e onde você quiser ir, irá acontecer.
Cruzo os braços cerrando meu olhar – Então... Se eu quiser que apareça uma parede e uma porta aqui agora, isso vai acontecer?
Ele assente, olhando para um dos lados do corredor – Não só vai, como já aconteceu. Veja.
Me viro na mesma direção e o infinito corredor agora tem uma parede e uma porta de madeira escura e maçaneta prateada. Ergo as sobrancelhas e dou um pequeno pulo para trás, olhando da porta para a entidade por repetidas vezes – Ok... Isso tudo é muito estranho...
Olho para a entidade, que apenas sorri sem jeito erguendo os ombros.
Avanço e abro a porta, nos levando para um espaço amplo a céu aberto. Avanço alguns passos olhando ao redor, é um lugar muito bem iluminado e arborizado. A luz do sol passa pelas arvores e toca minha pele, me transmitindo a ótima sensação de calor e relaxamento.
Ao longe parece ter uma parte concretada, muito parecida com uma rua. Por ali passam pessoas de bicicleta ou de patins, e uma ou outra está fazendo corrida. Famílias passam de um lado ao outro acompanhadas de crianças que brincam e sorriem animadas. Já vim aqui, isso é certeza.
- Onde estamos? – Ouço ele questionar em um sussurro.
Presto atenção na movimentação que tem a nossa volta. Caminho um pouco sem responder, tentando pegar algum ponto de referência que possa me dar a resposta. Avanço pelo lugar, tentando me lembrar do nome deste lugar, que cada vez mais vou reconhecendo.
Ao longe enxergo o que parece ser uma ponte de ferro. Apresso meu passo, e posso escutar os passos apressados da entidade logo atrás de mim. Alcançamos a ponte e vou seguindo na frente, subindo os degraus metálicos que ecoam a cada passo que damos, e logo atingimos o topo da ponte de ferro.
Paro bem no ponto mais alto, encostando os cotovelos sobre as grades, admirando a agradável vista do lago em pleno dia ensolarado. Visão que já tive algumas vezes quando mais nova. A criatura do Abismo para ao meu lado também se encostando na grade, porém neste momento não olho para ele. Apenas contemplo essa vista que me enche de lembranças.
- Parque Ibirapuera... – Sussurro com um sorriso no rosto, virando meus olhos para a entidade. Ele encara a tudo com uma expressão que mistura admiração e espanto.
- Eu... – Ele sussurra, seu olhar escarlate brilha enquanto ele observa tudo com encanto. As arvores, pessoas, lago, a própria ponte, o céu que ele enxerga com mais admiração – Eu não tenho memórias, mas eu sei que... Que nunca vi nada assim no Abismo... É... Tão bonito...
Abaixo meu olhar, sei que tenho um sorriso bobo no rosto – Sim, é bonito mesmo... Esse lugar é só uma imagem que tenho em mente do verdadeiro parque.
- O verdadeiro é bonito como nas suas lembranças? – Ele questiona, virando seu olhar a mim.
- Talvez. – Sorrio de canto erguendo uma sobrancelha – É o que eu acho, e essa é só uma parte do parque, tem muito mais coisas... É só uma pena que muitas pessoas acham comum demais.
- O que? – Ele diz em um tom incrédulo – Acham isso comum demais?
- É a opinião de algumas pessoas... Muitas outras não falam, mas tratam o parque e outros lugares dessa maneira... – Digo apertando os lábios. Meus dedos passeiam pelo ferro da grade, tamborilando de leve enquanto meus olhos assistem a reação da entidade – Não é exagero dizer que o Ibirapuera é um dos lugares mais conhecidos e frequentados da capital onde vivo... Talvez por isso que muitos não o vejam como especial.
- Mas... E a quantidade de pessoas...? – Ele questiona, andando pela ponte observando em volta.
- As pessoas virem para cá não significa que realmente veem a beleza desse lugar. – Dou um suspiro, encostado minhas costas na grade de proteção enquanto olho a entidade – Muitos apenas vem desestressar por ser um lugar calmo, mas sequer ligam muito para tudo que ele tem a oferecer... Alguns nem vão na Oca, no Planetário ou no Museu Afro ou no Museu de Arte Contemporânea por exemplo... Eu mesma só fui na Marquise e na praça Burle Marx duas vezes.
Seus olhos vão ao chão, e ele volta a se aproximar parando ao meu lado – Gostaria que houvessem lugares assim lá... – Ele diz em um sussurro que consegui ouvir.
Uma coisa me vem em mente. Só agora que vejo a oportunidade de perguntar isso, que a curiosidade surge. Aperto a boca o olhando de canto, refletindo como perguntar, e se devo perguntar algo assim – Escuta... Como é o Abismo?
- Não me recordo ao certo... – Ele abraça a si mesmo e aperta com certa força, e é nesse momento entendi que fiz uma pergunta bem delicada. – Abismo... O que me vem em mente é minha última lembrança, um lugar escuro e caótico... O céu sempre coberto de nuvens cinza avermelhadas, e várias vezes a luz era algo inexistente... Por causa disso, sombras profundas sempre cobriam tudo que existia, e o cinza tingia o lugar... Existe também a mata por todos os lados, uma densa e profunda floresta sem fim.
- Era tudo assim? – Questiono agora mais séria com o tom que essa conversa está tomando.
- Pelo que consigo me lembrar, sim. Era assim por todos os lugares. – Ele suspira baixo.
- Nossa... – Sussurro – Mas e os outros seres? Como eram?
- Não sei bem... Lembro que não interagíamos muito. Qualquer encontro com outros seres era um sinal de medo pelo desconhecido. – Seu olhar abaixa e as mãos juntam – Muitos deles representavam um perigo iminente. Assustavam só de se aproximarem, e procurávamos nos manter longe.
- Pelos livros, as coisas pareciam tão diferentes... – Olho para ele apreensiva, duvidando do que ele me diz... Mas também, duvidando das informações dos livros que Brian esteve pesquisando por todo esse tempo. – Contava que eram seres pacíficos em sua maioria.
A realidade que ele me conta e a realidade escrita nos livros não podem ser assim tão diferentes... Ou podem?
Ele solta um riso nasal, balançando a cabeça devagar – Pelo jeito, os livros que leu estão errados. Claro, alguns de nós realmente não gostamos de conflitos, eu por exemplo...Mas quando penso no Abismo, tudo que me vem em mente é uma terra bestial, toda a tensão e o perigo no ar. Os conflitos mortais estourando de repente, gritos de dor e repletos de desespero, mortes, sendo o lugar onde o mais poderoso é quem decide as regras...
Aperto a boca, batendo os dedos no ferro. Tudo que ele me conta sobre esse lugar é assombroso. Terrível em todos os sentidos, e apenas imaginar me faz sentir medo. – Acho que eu preferia pensar que vocês viviam em algum tipo de sociedade.
- Esse é um pensamento distante da realidade daquele lugar. – Ele ergue seus ombros.
- Mas... – Tento organizar meus pensamentos – E as crias do abismo? Permitiam isso?
Seu olhar vem a mim em um espanto... Talvez assombro. – Como... Como sabe sobre as crias?
- Livros? – Respondo erguendo as sobrancelhas, e ele acena como se lembrasse.
- Ah sim, verdade, os livros... – Ele suspira, pendendo o corpo para frente. Uma de suas mãos passa pelo seu rosto devagar – As crias são de longe os seres mais poderosos daquele lugar, e também representavam o maior perigo...
- Eram seres tão ruins assim? – Digo, tentando escolher bem minhas palavras.
- Acho que sim, não tenho certeza... – Seu olhar escarlate cerra um pouco. O silêncio reina entre nós por alguns segundos, e o vejo tamborilando os dedos sobre a mão – Desculpe, não consigo me lembrar de mais do que isso.
- Relaxa, você me contou tantas coisas já. – Digo sorrindo – Acho que agora entendo porque você saiu do Abismo. Aquele lugar parece horrível...
- E eu estava sendo perseguido. – Ele completa.
- É, e isso também. – Balanço a cabeça, e meu sorriso se esvai aos poucos. Sua atenção em mim parece aumentar ao ver que agora estou séria – Estou adorando nossa conversa, mas... Não podemos esquecer que ainda estamos presos aqui.
Seu olhar corre ao redor por mais uma vez. Qualquer animação que tinha em seu rosto desaparece, acho que aceitando que tudo aqui é uma ilusão. – Você está certa Clara...
A frustração em sua voz é aparente e seu olhar cai, acho que ele estava acreditando que esse lugar que estamos agora é a realidade que vivo... Mas infelizmente, não é.
Tudo não passa de um fruto dos meus pensamentos... Quase como um sonho lúcido.
Gostaria de poder fazer algo a respeito para que ele não se sentisse assim, falar algo para que se sentisse bem... Quem sabe leva-lo para conhecer o verdadeiro parque algum dia, e vários outros lugares também, que com certeza o fariam esquecer do Abismo... Mas não posso prometer fazer algo que sequer sei se poderei cumprir.
Não quero consolar ele com mentiras.
- Ei Clara... – Me chama, interrompendo meus pensamentos. Ele tem um sorriso sereno em seu rosto – Temos algo a resolver aqui, não é?
- Sim... Pensar como sair daqui. – Sorrio junto dele.
- O mais correto seria te fazer recuperar seu corpo. – Arqueia as sobrancelhas me olhando.
- Que não tenho a mínima ideia de como fazer. – Digo aos risos – O que aquele seu outro lado está fazendo agora?
Ele encara o nada por alguns segundos, cerrando seu olhar – Sentado no mesmo lugar... Está anoitecendo, e tem alguém chegando... Acho que ele estava esperando esse alguém.
- Nossa, estranho isso... – Digo pensativa – E como é esse alguém?
- Parece alguém conhecido das suas memórias... – Ele sussurra sem nem ao menos piscar, e ergo uma sobrancelha cruzando meus braços. Seus olhos vem a mim devagar – Brian...
Espera um pouco. O que foi que acabei de ouvir?
O Brian está aqui? Quero dizer... Está lá fora, vindo atrás de mim?
O que está acontecendo lá fora?
Sacudo a cabeça algumas vezes. Não é hora de ficar pensando o que está acontecendo do lado de fora, se Brian está aqui significa que veio atrás de mim. Preciso confiar nele.
- Certo, recuperar meu corpo... – Digo olhando de um lado ao outro – Vamos fazer isso, mas preciso de ideias do que fazer.
Passo uma mão pelo rosto, caminhando de um lado ao outro na ponte. Meus passos fazem o metal ecoar, mas ignoro os ruídos tentando pensar em qualquer coisa que possa ser uma possível solução para meu atual problema.
- Tive uma ideia. – Ele diz de repente.
- E qual seria? – A ansiedade na minha voz é imensa.
Seus olhos passam ao redor – Isso aqui é uma imaginação sua, você tem controle de algumas coisas... O que acha de começar a trazer coisas e fazer a maior bagunça?
Estou para responder, mas me contenho. Cerro o olhar abrindo os braços – Pode me explicar melhor, acho que ainda não entendi...
- Quis dizer para você fazer muitas coisas acontecerem de uma vez, talvez isso consiga primeiro sobrecarregar e logo depois desestabilizar aquele meu outro eu. – Ele explica, chegando mais próximo. – Ficarei atento, e avisarei caso ele comece a se aproximar de nós.
- Se ele nos perceber e vier atrás, o que faremos mesmo? – Sorrio o encarando de soslaio.
- Nós fugimos para outro lugar, e faremos mais bagunça. – Diz sorrindo calmamente. – Se der certo, ele perderá o foco e talvez você possa reaver seu corpo.
- É, vale a tentativa – Sorrio suspirando – Pronto para fazer bagunça na minha cabeça?
- Pode contar comigo. – Ouço sua resposta, e me sinto confiante a isso.
E mais uma vez, coisas malucas acontecem na minha vida, se bem que já não me sinto tão desconfortável quanto antes. Acho que passei a gostar disso.
Bem, hora de tentar recuperar meu corpo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro