Capítulo 30 - O Retorno
9323 Palavras
Caminho apressada para fora da faculdade. Diferente de muitas outras vezes, hoje fui incontestavelmente a primeira pessoa a deixar a sala e correr para fora da faculdade.
Não sei o quão horrível deve estar a minha cara agora. Bem, não deve ser das melhores, afinal todos estão me olhando com uma expressão estranha.
Não consegui dormir nada essa última noite, na verdade, desde que entrei naquele carro de volta para São Paulo, não consegui relaxar por um segundo que seja.
Durante boa parte da viagem ficamos calados, tudo que fizemos foram algumas trocas de olhares. Somente falamos quando Marina lentamente despertou sentindo muitas dores pelo corpo, mas em pouco tempo desmaiou outra vez.
A situação das duas não estava das melhores, então levar ambas para o médico foi uma decisão unanime. Ainda agora, agradeço muito a Gabriel por ter se oferecido e levado Marina e Letícia para uma clínica particular para que exames pudessem ser realizados.
Elas chegaram desacordadas, e por causa disso foram internadas na hora. Eu queria ficar acompanhando a internação das duas, queria ouvir qualquer coisa que significasse que elas ficariam bem, mas nenhum dos médicos me dizia nada.
Fiquei sem saber como responder o que havia acontecido com ambas, gaguejei enquanto eles apenas me olhavam.
Eu estava tão nervosa que mal conseguia raciocinar direito.
Como explicar tudo o que havia acontecido?
Gabriel viu como eu estava aflita e pediu para Tamires me acompanhar a algum lugar mais calmo, enquanto ele explicaria tudo aos médicos. Fui beber um pouco de água e aproveitei desse momento para entrar em contato com as famílias de ambas e avisar de toda a situação.
Tamires e eu só nos permitimos ir embora quando as famílias de ambas chegaram na clínica para acompanhar a internação delas.
Quando cheguei em casa, fiquei com meus pais por algumas boas horas como havia decidido antes de ir viajar. Eles logo perceberam que havia algo de errado comigo. Quando finalmente percebi, minha bochecha estava com a cicatriz daquele corte que recebi da entidade, e eu estava tão cansada que sequer vi o restante do meu corpo. Sem falar que visivelmente estava abatida, e insistiram para saber o que havia acontecido.
Eu queria desabar tudo que sinto dentro de mim, mas como? Como contar para meus pais que por mais uma vez uma criatura paranormal dentro do meu corpo surgiu para me atacar? Como contar que o motivo das minhas amigas estarem internadas é minha própria fraqueza?
Insisti que não havia nada, e apesar de ficar nítida a descrença deles nas minhas palavras, não perguntaram mais a respeito. Eu não saberia, e ainda não sei, como explicar essas coisas.
Mas preciso contar para eles... Em algum momento, preciso contar toda a verdade, mas sei que não irão acreditar em mim. Nunca acreditarão em uma história tão fantasiosa como essa.
Mas hoje, vendo como estão as coisas, simplesmente não consigo contar a verdade.
Além do mais, agora não é o momento de pensar nisso. Em meio a aula, recebi uma mensagem de Gabriel avisando que tanto Letícia quanto Marina já haviam despertado, e gostaria que eu fosse visitar ambas assim que pudesse.
Mal consegui permanecer concentrada em qualquer coisa relacionada as aulas, por mais que estejamos próximos de alguns dias de pausa. Só queria sair voando da faculdade e ver como as duas estão. Enquanto não podia sair, meu já alto nervosismo junto de toda a irritação de uma noite mal dormida atingiram níveis alarmantes.
Mas agora, após minutos que pareciam eternos, finalmente estou indo ao hospital.
- Clara! Espera! – Ouço vindo atrás de mim, mas não dou importância. Apresso ainda mais o passo, rumando para fora da faculdade, e de soslaio vejo a pessoa seguindo bem ao meu lado no mesmo ritmo – Caramba, quanta pressa...
- Agora não Tiago, eu estou sem tempo! – Digo ríspida, sem parar de andar.
- É, estou percebendo. – Ele diz rindo, mas ignoro sua animação. – Nossa, esse foi um corte bem feio. O que houve com seu rosto?
- Nada demais, tive alguns problemas esse fim de semana. – Respondo respirando fundo, com certeza fui grossa de novo.
- Uau, ah... Mais cuidado, espero que não tenha sido algo grave. – Ele diz acompanhando meu passo, levemente ofegante – Está atrasada para algo?
- Mais ou menos isso. – Digo passando pelas catracas e andando apressada querendo chegar logo no metrô. Sinceramente, pensei que ele iria parar nas catracas, mas diferente do que eu imagino, esse garoto continua me seguindo sem parar. Saco, o que ele quer? – Não tá vendo que estou com pressa? Será que dá para você falar logo o que quer comigo, ou tá difícil?
Ele me olha um pouco surpreso pela forma que falei. Não apenas surpreso, ele parece ter se assustado também – É que... – Tiago gagueja – É que a Marina, a Letícia e você sumiram esse fim de semana, não responderam nenhuma mensagem minha até agora e nem vieram para a aula hoje. Tentei ligar para a Marina hoje, mas... Eu... Eu fiquei preocupado, só queria saber se você tem notícias delas.
Paro de andar e me viro para ele, bufando antes de falar – Estão hospitalizadas. Está satisfeito?
Ele me olha tomado pelo espanto, quem olhar poderia dizer que ele acabou de ver um fantasma. Suas sobrancelhas estão no alto, sua boca abre, porém dela não sai nenhuma palavra compreensível. Os olhos do garoto vão ao chão ao mesmo tempo que seu lábio treme, ele leva as mãos ao cabelo, pelo visto sem acreditar no que acabei de falar.
Estou prestes a virar de costas para seguir meu caminho e deixar ele sozinho com seu choque, quando Tiago finalmente diz algo audível – Como assim hospitalizadas? O que aconteceu com elas Clara?
- Aconteceu algo que não consegui impedir. Só isso. – Bufo cruzando os braços. – Agora, da para me deixar ir?
Ele recua um passo, não que Tiago já não estivesse bem distante de mim. Ele ergue as mãos e abre a boca outra vez, sem conseguir falar tão facilmente – Desculpe, eu... Só estou preocupado com elas...
Reviro os olhos com sua resposta. Levo as mãos a cintura o fulminando com o olhar – Tá, muito bem, que se dane você e sua preocupação Tiago. Já disse tudo que queria, ou ainda tem mais?
Ele recua um passo com as mãos levemente erguidas. Tiago carrega um olhar assustado, e pelo visto não faz a menor ideia do que falar.
- Agora se já acabaram suas perguntas, eu preciso ir visitar elas no hospital... E agradeceria muito se você parasse de me fazer perder tempo aqui! – Bufo me virando, voltando a caminhar em passos cada vez mais largos, apertando os punhos.
- Posso ir junto?! – Ouço ele gritando já longe de mim.
- Não! – Grito em alto e bom som, para dar certeza que não quero sua companhia.
Entro na estação completamente irritada, esfregando a mão pelo rosto impacientemente de tão nervosa que estou, e sem esperar um único segundo sigo para a plataforma. Fico muito satisfeita com o fato de não precisar mais ouvir a irritante voz de Tiago.
Se ele resolvesse me seguir por mais um minuto e continuasse com mais de suas perguntas, eu juro que ele acabaria preso... Ou então, eu quem acabaria presa.
Olho o caminho que precisarei fazer novamente, buscando ter a certeza que não irei acabar em um lugar aleatório. Bom, estive andando tanto de metrô nos últimos tempos, que errar o caminho será bem difícil.
O metrô não demora a chegar, mas minha irritação atual é tanta que qualquer segundo que preciso esperar é o suficiente para me irritar cada vez mais. Meu sangue está fervendo de uma forma que nunca senti acontecer antes.
Assim que entro, encosto no espaço entre os vagões, sendo esse o mais isolado que consigo encontrar. Respiro fundo por longos segundos, esfregando a mão pelo rosto impacientemente, batendo o pé olhando em volta, numa vã expectativa que isso faça o tempo passar mais rápido.
- Olá olá... Pegou pesado, não acha? – Ouço uma voz arrastada ecoando de repente.
Olho em volta algumas vezes, mas não tem ninguém muito próximo de mim. Por instinto olho para meu colar, mas ele permanece igual. Ainda assim, continuo incomodada com isso que acabei de ouvir.
- Aqui, dentro da sua cabeça. – Ouço novamente.
Espera, o que está acontecendo aqui? É a mesma coisa que aconteceu ontem na praia?
Por acaso esse pesadelo não vai acabar nunca?
Ouço uma leve risada, carregada de deboche – Pelo visto ainda não se acostumou com esse nosso meio de comunicação, não é Clara? – A risada ecoa ainda mais forte na minha mente. Não me dou por vencida e continuo olhando em volta, mas para o meu azar, não desfiz minhas malas. Em outras palavras, estou sem as runas comigo – Não conseguirá me encontrar por mais que tente, não estou materializado... Já disse, estou aqui dentro dessa sua cabeça de vento.
Suspiro de irritação – O que você quer agora? Já não basta tudo que me fez? – Sussurro olhando de um lado ao outro, me certificando que ninguém estará me encarando estranho.
- Conversar um pouco... Não quero mais te matar, pelo menos não agora, tenho objetivos melhores minha Clara... Mas quero matar o tempo... Está muito quieto aqui dentro, sua cabeça é bem vazia, além de vento, tem eco... Permanecer desperto aqui é um verdadeiro tédio. – Reviro os olhos com seu comentário nada agradável.
- E se eu não quiser conversar? – Rebato sussurrando. Levo uma mão a boca e encaro o chão, tentando parecer pensativa para qualquer um que esteja me olhando agora.
- Farei uma arruaça que te trará uma bela dor de cabeça de muitos jeitos diferentes... E tenho certeza que você não quer isso, não é Clarinha? – Novamente risadas ecoam.
Mal sabe essa criatura que já estou ficando com dor de cabeça com todas essas risadas ecoando sem parar. Com dor de cabeça, e ainda mais irritada do que antes. Como eu adoraria calar essa coisa de uma vez por todas...
- Aliás, que falta de educação Clara... Afinal ainda não me respondeu. – A voz da entidade surge outra vez – Pegou pesado, não acha?
Estranho seu comentário – A que se refere?
- A maneira como tratou aquele seu amigo, não é obvio? –Franzo a testa com ele voltando nisso, ainda mais com seu tom arrastado – O rapaz só estava preocupado com suas amiguinhas, e só faltou você pisar nele de tão mal que o tratou... Adorei aquilo, sabia?
- Que? – Respondo entre os dentes.
- Estou curioso, por que não disse a verdade? O que você ganhou com isso? – Ele diz rindo, mas não respondo. Cruzo meus braços e desvio o olhar, planejando fazer o tratamento do silêncio com essa coisa. Não se passa nem um minuto, e a criatura volta a tagarelar – Seu amigo já viu os tipos de coisas que te rodeiam, já viu que sua presença é uma ameaça a todos a sua volta... Então, por que mentiu? Queria protegê-lo da verdade?
- Que verdade? – Aperto os olho, respirando fundo.
- Que você é um perigo a todos... E que é uma falha... Um fracasso... E principalmente, que a culpa é sua! – Essas palavras ecoam na minha mente, me atingindo em um profundo baque que me desestabiliza – Quis esconder que por culpa sua e de sua fraqueza... Aquelas duas estão naquele estado deplorável...
- Será... Será que da para ficar quieto? – Reclamo entre os dentes, tentando ao máximo não falar em voz alta, e segurando minhas lágrimas de tristeza e fúria com todas as minhas poucas forças. Com certeza já deve ter alguém me encarando estranho. – O que interessa ao Tiago saber ou não qualquer coisa que aconteceu? Isso não diz nenhum respeito a ele e toda aquela curiosidade. Por mim, aquele garoto que fique sem saber de nada, se ele continuasse me irritando, com certeza iria se arrepender muito.
- Nossa... Que ótima amiga você é Ana Clara. – Ouço uma longa gargalhada carregada de deboche – Tendo alguém igual a você como uma amiga... Quem precisa de inimigos, não é? Acho que deveria proteger ele e suas amigas de você mesma... Pense nisso...
Aperto os olhos e sua risada fica ainda mais forte, lentamente ecoando e finalmente desaparecendo. O metrô pode estar cheio de vozes, ruídos, avisos pelos alto falantes, mas depois de todas essas risadas, o mundo parece bem quieto para mim.
Espero mais alguns momentos, atenta com a estação que precisarei descer e qualquer nova fala da entidade, mas tudo permanece quieto. Não sei o que aconteceu, mas sinceramente agradeço muito aquela coisa finalmente ter se calado.
Primeiro uma noite mal dormida por toda a minha preocupação, depois ficar presa na aula com a notícia que minhas amigas acordaram, a encheção do Tiago querendo saber sobre Letícia e Marina... E agora pra finalizar, a entidade vem querendo me dar uma lição de moral sobre como tratar alguém.
Principalmente quando esse alguém é só um babaca irritante que estava me enchendo com suas preocupações idiotas.
É cada uma que me acontece.
Levei mais tempo do que gostaria, mas finalmente estou próxima da clínica que as duas estão internadas. Mais um quarteirão, e finalmente chego. Minhas pernas já estão doloridas de tão rápido que estou caminhando, mas por sorte, hoje o clima está tão frio que sequer sinto calor.
Estou andando rápido, vestindo uma pesada jaqueta de capuz felpuda, camiseta de manga longa, calça jeans, botas e mochila nas costas e o cabelo solto... O suficiente para passar calor, mas na realidade ainda sinto frio
Olho em volta procurando pelo carro de Gabriel, mas não o vejo em nenhum lugar. Olho meu celular por uma vez, e não existe nenhuma mensagem de Gabriel. Existem outras, grupos da faculdade, mensagens de Brian, Tamires, parentes, mas nenhum desses me interessa agora.
Entro no prédio, vendo o pai de Marina sentado em uma das cadeiras, com as mãos em frente ao corpo e o olhar baixo. Me aproximo devagar, atraindo seu olhar abatido. Arrisco dizer que ele não deve ter descansado quase nada. Em sua camiseta preta vejo o adesivo branco levemente descolado, marcando em minusculas letras o nome da Marina e uma marcação de "visitante".
- Ana... – Ele diz com a voz fraca.
- Olá... – Digo desviando o olhar. – Como o senhor está?
Vejo ele balançando uma mão, sinalizando "mais ou menos" – Já tive dias melhores... – Me responde tentando um sorriso, que logo desaparece. – No geral, não... Estou com o coração apertado por toda a preocupação.
- Entendo como se sente... – Digo encarando meus próprios pés – Como a Marina está?
- Acordada, ela e a amiga. Mas estão cheias de dores. – O homem balança a cabeça negativamente – Pelo que disseram, estão evitando se mexer que já sentem muitas dores.
- Está tão ruim assim? – Questiono olhando para ele, que concorda balançando a cabeça.
É complicado conter minha culpa por tudo que aconteceu, culpa por ter sido tão fraca e não ter protegido tanto a Marina quanto Letícia... Foi arrogância pensar que eu poderia cuidar das coisas sozinha. E por consequência dessa minha maldita arrogância, as duas foram alvo de um male que eu carrego, que eu deveria carregar sozinha. Ter ido naquela viagem colocou elas em risco, foi um erro, a qual me arrependo muito.
Não sei com qual coragem estou aqui em frente ao pai de Marina e não falar nada do que aconteceu... A situação seria a mesma dos meus pais, com certeza não iria acreditar se eu falar qualquer coisa que seja.
- Sabe... – Ele volta a falar, atraindo minha atenção. Ele está com o olhar no chão. – Na sexta Marina havia dito de repente que iria viajar com as amigas, que faria uma viagem para a praia. Foi muito em cima da hora.
- É... – Concordo, me sentando ao seu lado – Não planejamos muito bem as coisas, só quisemos ir viajar, curtir o fim de semana e esquecermos os problemas.
- Imagino, a faculdade é algo muito desgastante. – Ele da um sorriso – Foi esse um dos motivos que me fez concordar com a viagem, outro deles foi que ela disse que seria com as amigas, mencionou você, então me senti mais confortável, sabia que minha filha estaria em uma boa companhia... A "amiga sensata", como ela sempre te chama e que sempre cuida dela...
Aperto os lábios enquanto desvio meu olhar para o lado.
- Mas sabe, tem algo estranho. Algo que não entendo nada... – Comenta em um sussurro, atraindo meu olhar a ele – As cicatrizes... Cada uma das cicatrizes no corpo da minha filha, me lembro muito bem que na sexta feira a tarde, ela não tinha nenhuma daquelas marcas...
Seu olhar vem a mim, mas tudo que dou a ele é meu silêncio.
- Os médicos disseram que aquelas cicatrizes são de ferimentos antigos, mas minha filha nunca se machucou dessa maneira antes, semana passada ela não tinha nenhuma cicatriz como aquelas... Por favor Ana... O que houve nessa viagem? O que aconteceu com minha filha? – Seu tom de voz indica como ele me implora por respostas.
Mas como vou explicar uma coisa assim para ele? Explicar algo tão difícil? Minha cabeça pende para frente e meus olhos vão ao chão. Apoio a mão na testa, sem forçar para olhar ele nos olhos. Tudo que posso oferecer a ele é meu silêncio.
- Entendo... Marina fez o mesmo... – Ouço ele dizer – Ela não falou nada, nem a Letícia. Perguntei o que aconteceu, mas não tive nenhuma resposta. Decidi não força-las a falar.
Suspiro, e infelizmente minha mente faz com que as memórias de ontem se repitam. De novo, de novo, e de novo. Eu gostaria que tudo isso apenas desaparecesse da minha memória, mas não consigo. Cada uma das imagens estão fixas, os momentos retornam para continuarem me atormentando sem parar.
É horrível... Querer esquecer mas permanecer cravado na mente, e continuar voltando a cada momento para apertar o coração.
Gostaria que as coisas tivessem sido diferentes, apenas o fim de semana totalmente voltado para relaxarmos. Teria sido tudo de bom se fosse assim, aproveitamos a praia, visitamos lugares, conhecemos uma pessoa nova, Letícia tinha aproveitado uma noite com a pessoa que se interessou por ela, e ganharíamos uma carona de volta como Marina disse.
Tudo estava andando para ser um ótimo fim de semana, tudo de bom em vários sentidos diferentes... Mas aquela coisa tinha que aparecer para arruinar com tudo.
- Gostaria de ir agora Ana? – Ouço uma voz feminina que me faz erguer o olhar. Percebo se tratar da mãe de Marina.
Me levanto para cumprimentá-la com um abraço. – Desculpe, eu estava perdida nos pensamentos e não a escutei.
- Entendo. – Ela me da um meio sorriso. Vejo como seu olhar entrega seu cansaço. Deve ter passado a noite inteira aqui. – Acabei de voltar, ainda tem algum tempo para o horário de visitas, gostaria de entrar?
- Sim, por favor. – Digo apertando a mão na barra da camiseta, e ela logo abre espaço para mim.
- Você deve seguir reto pelo corredor, e a esquerda tem os elevadores. – Ela começa a me instruir enquanto olha na direção que supostamente veio – Você irá para o terceiro andar. Saindo do elevador você segue o corredor a direita, quarto onde estão é na quarta porta.
- As duas estão no mesmo quarto? – Olho para ela, piscando algumas vezes.
- Sim, foi um pedido de um tal de Gabriel. – Me responde dando de ombros. – O lado bom é que Marina tem a companhia de uma amiga.
- Tudo bem, obrigada – Digo em um meio sorriso, me aproximando da recepção para ver qual burocracia terei que passar para visitar minhas amigas. Olho para os pais de Marina, que se sentam lado a lado, conversando algo entre eles. Viro-me ao recepcionista, um rapaz de traços asiáticos, que tira seu olhar concentrado de seu computador e foca em mim – Boa tarde, estou aqui para visitar uma amiga.
- Por gentileza, qual seu nome? – Ele diz em um tom mecânico, olhando novamente para a tela, digitando algo com extrema velocidade.
- Ana Clara Santos. – Digo, e de imediato ele para de digitar, voltando a me encarar. Cerro as sobrancelhas com essa atitude – Algo errado?
- Ana Clara... Amiga das pacientes Letícia Alencar, e Marina Mello? – Ele me observa atento.
- Sim, elas mesmas. – Ele volta seus olhos ao computador, digitando algumas coisas e logo ouço o som de uma pequena impressora ao lado da tela, onde um papel adesivo surge.
- Aqui está, o senhor Gabriel já informou que sua entrada estaria liberada a partir do momento que houvesse a transferência das duas para os quartos. – Ele diz, e pego o pequeno adesivo, colando ele na minha camisa.
Agradeço com um meio sorriso e sigo pelo corredor que a mãe de Marina me informou. Avanço em passos apressados, alcançando o elevador em pouco tempo, que já estava com algumas poucas pessoas entrando.
Estou ansiosa para ver ambas, ter a certeza de que estão bem, e da mesma forma estou com receio de ver como irão reagir a minha presença.
O elevador apita o andar e as portas se abrem e logo saio, me vendo em um andar bem iluminado e com poucas pessoas transitando. As paredes tem tons azul pastel, com vários panfletos e informativos espalhados para todos os lados, e o piso é de coloração branca, para completar o ambiente não está frio como está fora do prédio.
Caminho devagar e sigo as instruções que recebi, enquanto meu peito aperta a medida que me aproximo do quarto onde estão. Respiro fundo enquanto levo uma mão sobre o coração, seu bater forte mostra meu obvio nervosismo.
Quarta porta, a última do corredor próximo a janela. Me aproximo caminhando cada vez mais devagar, apertando a boca.
- Fala sério, isso também não tira um pouco do seu apetite? – Ouço a voz de Letícia, fazendo minhas pernas travarem antes que eu possa entrar no quarto.
- Nossa, e como... E sabe o que acho? – Ouço a voz levemente empolgada de Marina. Permaneço parada por alguns segundos, avançando e parando no batente da porta, sem conseguir olhar para dentro do quarto – O que está estragando esse almoço é essa papa que chamam de feijão.
- Ah Marina... Isso não é feijão não, está parecendo mais uma sopa. Olha só, tem batata, cenoura, a carne que parece de panela, e essa cor... Mas o restante parece muito apetitoso. Da água na boca só de olhar. – Letícia comenta, sua voz está animada.
- Isso não nego, ficamos tantas horas sem comer alguma coisa que essa gororoba parece mesmo estar gostosa. – Por alguns segundos o quarto fica quieto – Olha, me surpreendeu. O restante da comida está muito boa.
- Eu quero é saber dessa sobremesa. – Ouço novamente a voz de Letícia – Olha essa saladinha de frutas, é a melhor coisa que poderia ter.
Encosto minhas costas na parede, sem coragem o bastante para entrar. Meus olhos vão ao alto enquanto minhas costas deslizam e lentamente me sento no chão. Cubro o rosto com uma mão, respirando fundo.
Estão aqui por minha culpa. Por minha presença, minha fraqueza, sou responsável por tudo. Aperto os dentes enquanto meu olhar vai ao chão, minha vontade é de sair daqui o mais rápido que puder por vergonha.
Não posso ter medo de entrar, são minhas amigas. Preciso entrar para vê-las... Mas ouvir suas vozes, por algum motivo, simplesmente tirou todas as forças que eu ainda poderia ter. Não pode ser assim, tenho que entrar, preciso entrar.
Devagar, me ponho de pé outra vez. Minhas pernas tremem de medo, meu peito aperta, meu coração está enlouquecido e dói pela ansiedade, por não saber qual a reação que minhas amigas poderão ter ao me ver. Olho para a porta, respirando fundo uma última vez, entrando no quarto bem iluminado em passos lentos.
Ambas estão uma de frente a outra sentadas na beirada das camas, Letícia com as pernas balançando para fora da cama, e Marina sentada em perna de índio. Ambas estão vestidas com aqueles projeto de vestido azulados que vão até a altura das coxas... E alguns ainda chamam isso de roupa.
Suas camas estão bagunçadas com alguns edredons grossos que parecem imuteis sentindo o ar quente dentro do quarto. As camas foram colocadas uma ao lado da outra talvez para que possam conversar sem muito esforço, existe uma cadeira ao lado de cada cama, e barras de ferro com bolsas de soro penduradas, porém não estão ligadas as minhas amigas.
De frente para as duas tem uma estante e uma televisão LCD não muito grande, e do outro lado do quarto tem uma larga janela com uma cortina simples. Além disso, o quarto possui tons brancos pelas paredes e os pisos são de ladrilhos igualmente brancos.
Elas não me notam a primeiro momento, e em questão de míseros cinco segundos tenho seus olhares espantados direcionados a mim.
- Oi... – Digo sem jeito, quase em um sussurro.
- Clara! – Marina exclama animada, esticando as mãos e movendo seus dedos para mim parecendo que irá agarrar algo no ar, além de um largo sorriso no rosto – Você está viva!
- Que bom que está bem. – Letícia comenta, atraindo meu olhar a ela. Está sorrindo e com uma expressão leve em seu rosto, a mesma que vi em muitas vezes.
Me permito dar um minúsculo sorriso, que logo desaparece. Meu olhar vai ao chão, meu peito aperta ainda mais ao mesmo momento que minhas mãos tremem e minhas palavras desaparecem por completo nesse instante.
O que dizer a minhas amigas agora? Talvez desculpas por ter ido naquela viagem? Desculpas por não cuidar delas? Desculpas por tudo que causo apenas com minha presença?
- Aliás... – Letícia comenta de repente, atraindo minha atenção – Onde está a Tamires? Está tudo bem com ela?
- Ela está bem. – Comento avançando devagar, pegando a cadeira e posicionando entre as duas camas e me sento.
- Ufa, isso é um alívio. – Marina se espreguiça vagarosamente – Acordei primeiro que a Letícia. Imagina a minha cara quando entendi que estava em um hospital, se a "5 minutos atrás" estávamos em uma praia.
- Comigo foi a mesma coisa. Me lembro de estar na praia cheia de névoa, tudo apagou... E quando despertei, estava aqui. – Letícia diz, cutucando devagar seu almoço.
Aperto um pouco a boca. – Não tinha ninguém acompanhando vocês? – Questiono em uma tentativa de fugir deste assunto, mas a maneira que escolhi é por uma pergunta bem idiota.
- Na hora não. – Marina comenta, esfregando uma mão no rosto – Lembro que quando acordei, ainda era madrugada. Até consegui voltar a dormir, mas acordei quando estava amanhecendo. Levou um tempo até o responsável por nós aparecer. Imaginei que a Letícia iria acordar rápido, mas não foi o que aconteceu.
- Eu só fui acordar horas depois, quando o pai da Marina já estava aqui. – Letícia da de ombros nos olhando – Eu estava tão cansada que não estava entendendo nada que estava acontecendo.
- Você estava chamando o Gabriel enquanto dormia. – Marina da um sorriso de canto.
- Eu sei, você me disse isso umas três vezes. – Letícia rebate com uma careta, aparentemente tentando conter algumas risadas. – Por sorte, ninguém me perguntou nada sobre isso.
Marina sorri erguendo os ombros – Imagina que coincidência se você está chamando o Gabriel no mesmo momento que o médico fala para um dos meus pais que quem pagou nosso tratamento foi alguém de mesmo nome. Seria suspeito, não acha?
- Talvez, mas não acho que seria um problema. De qualquer jeito, tenho certeza que é melhor seus pais do que os meus. – Letícia diz, voltando a comer sua refeição – Para eles eu não precisaria explicar nada. Imagina se fossem meus pais aqui, eu teria que dar algumas explicações bem chatas sobre alguém que nunca apresentei a eles.
- Tenho que concordar com seu ponto de vista. – Marina diz sorrindo. Aparentemente, ambas contém o riso. Ela retorna seus olhos a mim, erguendo uma sobrancelha – Pode me emprestar seu celular rapidinho? O meu está descarregado.
- Ah sim, claro... – Digo alcançando meu celular no bolso da calça e a entregando.
- Muitas horas longe da tecnologia, já senti saudade. – Ela diz sorrindo de canto.
Por um momento olho para minhas amigas, me permitindo analisar ambas por um tempo. Suas expressões faciais e físicas, ambas parecem contidas, cansadas e abatidas, mas ainda assim... Elas... Parecem estar lidando tão bem com tudo. Estão tranquilas demais com tudo isso, sequer parecem incomodadas com tudo que houve.
- Está quieta Clara. – Marina diz em baixo tom, me despertando dos meus pensamentos. Vejo como ela olha concentrada para a tela do meu celular. Arrisco dizer que ela está tirando alguma foto, ou então usando a câmera como espelho – Está tudo bem?
- Sim claro, está sim. – Minto e forço um sorriso tentando ser convincente.
As duas estão me olhando. Me analisando, talvez buscando por respostas que recuso a dar com palavras. Me olham tanto que chega a ser algo incômodo a ponto de eu desviar meu olhar para a janela, fingindo estar tudo bem.
- E como estão se sentindo? – Digo voltando minha atenção a elas, em uma tentativa de desviar o foco do assunto de mim, para o estado que as duas se encontram.
- Até que bem. – Letícia comenta pensativa – Só que não podemos nos mexer muito.
- Nem conseguimos ficar de pé, pra você ter uma ideia da situação. – Marina dá de ombros.
Junto as sobrancelhas – Por que?
- Os médicos não deixam. – Ela responde rindo, logo resmungando de dor.
Balanço a cabeça algumas vezes – Eu já estava preocupada com você falando assim.
Marina ri mais, e por mais uma vez ela geme de dor, levando sua mão para a lateral do corpo, apertando de leve – Eu não podia perder a chance dessa piada. – Diz em um sorriso fraco, deixando a bandeja com sua refeição de lado. Marina lança as pernas nuas para fora da cama e fica de pé – Hm chão geladinho, que delícia... Viu só? Está tudo bem, os médicos só não deixam por estarmos bem fracas.
- Entendo... – Sussurro vendo que Marina se senta por mais uma vez, mantendo as pernas para fora da cama como Letícia está – Imagino que a essa altura, vocês passaram por muitos exames.
- Se passamos, não me lembro de nenhum. – Marina balança o rosto, espetando um pedaço de cenoura e o encarando com asco, logo o devolvendo ao prato – Quando o médico apareceu aqui, aproveitei para perguntar tudo que pude, onde eu estava, o que tinha acontecido... Ele contou que chegamos aqui de carro e fomos internadas às pressas, e que era preciso seguir com exames completos a pedido do Gabriel...
- Aliás, nossas chapas de raio-x estão ali do lado. – Letícia aponta movendo a cabeça.
- Quero ver como estão... – Me coloco de pé e vou em direção as fotografias em negativo.
Começo a olhar uma a uma, e a cada nova imagem que vejo, meu coração aperta mais. Os ferimentos das duas são muito mais profundos do que imaginei, e ver isso é angustiante.
Escuto um suspiro atrás de mim, enquanto caminho atônita de volta para a cadeira. Gostaria muito que isso fosse apenas um longo pesadelo e que um beliscão poderia me levar de volta para minha cama, onde eu saberia depois de alguns minutos que tudo está bem. – Como pode ver, cicatrizes não foram as únicas coisas que ganhamos. Também tivemos alguns ossos quebrados. – Marina comenta em voz baixa.
Aperto as folhas entre meus dedos. Um desconforto cresce na minha barriga e se espalha ao meu corpo. Quero falar algo, expressar qualquer coisa, mas não consigo.
- Em resumo, teremos que ficar internadas até estarmos bem. – Marina respira fundo com seu olhar baixo – Podem ser dias, semanas, talvez meses no pior dos casos...
- Não. – A interrompo – Não chegará a esse ponto. Uma semana no máximo estarão fora daqui.
As duas trocam um olhar, e então voltam a me observar. Letícia torce a boca, mas logo começa a falar – Tomara que seja assim, mas pelos resultados desses exames, talvez demore algum tempo sim.
Não consigo aceitar isso, aceitar que estejam aqui nessa situação. Se era para alguém estar aqui, era eu e não minhas colegas. Eu quem deveria estar em uma cama de hospital toda arrebentada, e não minhas amigas mais próximas.
- Você também ficou com uma cicatriz feia Clara. – Letícia comenta em voz baixa, quebrando o esmagador silêncio que reinava neste quarto.
- Só uma? – Dou um sorriso fraco tocando a bochecha marcada com a ponta dos dedos – Isso não foi nada... Nem cheguei a olhar o meu corpo, fiquei muito mais preocupada com vocês.
- Quero ver, pode mostrar Clara? – Marina pede, seus olhos estão focados em mim.
Respiro profundamente – Agora não é hora disso Marina.
- Para de ser chata. – Ela devolve arqueando as sobrancelhas – Apesar do que nos aconteceu, todas nós estamos bem. Então, o que custa?
Passo uma mão no rosto sem vontade de debater com ela em um momento como esse. Lentamente retiro minha blusa, e ergo a manga da minha camisa até o ombro, revelando todas as cicatrizes em só um dos meus braços. Só agora que olho melhor, parece muito com um corte feito por garras de um animal.
Minha atenção retorna a minhas amigas, que mal se pronunciam. Imagino uma possível outra que tenho comigo, por isso viro-me de costas para elas e ergo a barra da minha camiseta até um pouco acima da metade das minhas costas. Ouço algo que parece ser uma reação de surpresa delas. Por instinto levo meus dedos e toco devagar minha pele, sentindo o relevo da marca no meu corpo e tendo a certeza da existência deste machucado.
Suspiro, ajeitando minha roupa e voltando ao meu lugar. Tanto Letícia quanto Marina estão estáticas me observando.
- Sente dores? – Letícia questiona séria.
Balanço a cabeça negando – Não... Meu corpo inteiro está bem.
- Ainda bem que está recuperada Clara. – Marina comenta em um pequeno sorriso. – Não tivemos sua sorte, mas logo estaremos inteiras outra vez.
- Torço por isso... – Sussurro.
- Mas sabem, eu lembro pouca coisa... – Marina diz pensativa – As coisas foram bem rápidas.
- Eu lembro um pouco das coisas, antes de tudo apagar. – Letícia comenta pensativa – Tudo que tinha era névoa, para todos os lados. Corri tentando achar quem pudesse. Foi quando escutei sua voz Clara, e fui até você...
Aperto a boca desviando meu olhar ao chão – Sabem, antes de tudo apagar acho que me lembro de escutar a voz da Clara... – Marina comenta, mas não consigo olhar para ela – Estava bem distante, parecia um eco, mas lembro disso antes de acordar aqui.
- É, você não estava nada bem... – Letícia suspira olhando para Marina – Nenhuma de vocês na verdade. Eu fiquei em choque por ver a Clara tão machucada, e ainda mais por ver você no chão.
- É, por essas marcas, tenho certeza que não estava nada bem... – Marina puxa devagar o tecido mostrando seu ombro, nele existem várias marcas de onde houveram as perfurações e cortes que a entidade causou com aquela última investida. – Dói só de tocar ou mexer muito por causa das fraturas.
- Não sei como não me desesperei de vez naquela hora. Acho que foi o choque. – Letícia balança a cabeça negativamente – Lembro como suas feridas estavam feias Marina... Na hora eu fiquei em pânico e não sabia o que pensar... É difícil de acreditar que cicatrizaram tão rápido.
- Lembra que o médico nos falou quase a mesma coisa quando veio nos ver? – Marina olha de Letícia para mim por repetidas vezes – Clara, pode ser sincera e nos dizer quantos dias estamos aqui internadas?
Fico de pé, largando minha bolsa sobre a cadeira. Em passos lentos ando ao redor do quarto, passando as mãos vagarosamente em frente ao rosto antes de me voltar a elas – Um dia... Menos que isso na verdade.
Ambas erguem as sobrancelhas. Suas expressões incrédulas entregam seu incomodo – Não pode ser, um dia? De verdade?
Aceno com a cabeça, tendo como resposta os olhares pensativos das duas. Marina encara novamente a própria refeição
Tenho em mente o quão difícil deve ser para elas acreditarem nisso, ainda mais se levarmos em conta apenas o lado lógico da situação. Mas hoje, estamos lidando com algo que foge a lógica convencional, coisas que antes eu julgava serem impossíveis...
Vivemos em uma realidade distorcida que piora mais a cada novo dia. Torna-se um perigo maior cada vez mais, e eu sou a portadora desse perigo. Essa é a maior verdade.
- Clara, nos diga o que aconteceu naquela praia. – a voz de Marina é tão baixa como um sussurro, porem que soou quase como uma ordem.
- Acho melhor deixarem isso para lá... – Dou de ombros, torcendo que aceitem o que digo.
- Desculpa, mas acho que não. – Letícia começa, olhando de mim para Marina – Também quero saber o que aconteceu naquela praia.
Sou confrontada pelos olhares inquisidores das minhas duas colegas. A impressão que tenho é de ser colocada contra a parede e não ter uma saída. Sei que posso me levantar a qualquer momento e sair andando para fora deste quarto, mas duvido conseguir fazer isso.
Minhas pernas mal me obedecem, elas tremem sem parar, então sair daqui me parece muito difícil de acontecer, e além disso... Acho que não é certo esconder tudo que aconteceu, devo a verdade para elas.
- Vocês tem certeza? – Essa é minha última tentativa de fugir disso. Mentalmente torço para que desistam de saber o que houve, mas seus olhares me dizem que farão o contrário.
Elas se entreolham por alguns segundos e confirmam com um leve aceno, logo voltando seus olhares atentos a mim. – Bem... Pode começar Clara. – Marina comenta.
Caminho devagar de um lado ao outro cruzando meus braços. Meus olhos vão ao chão, e as memórias tão vivas de ontem tomam forma na minha mente por mais uma vez – Depois que você foram feridas, a entidade tentou me atacar de novo, mas um cara que nunca vi antes apareceu de repente. A entidade se comportou de um jeito muito estranho, e acabou desaparecendo depois que aquele homem surgiu... Não levou um minuto e estávamos de volta na casa, todos os meus machucados fecharam, do mesmo jeito que aconteceu com vocês. Seus ferimentos também fecharam, mas como não acordaram, decidimos na hora voltar para São Paulo e trazê-las ao médico.
Acho que esse foi o maior resumo que fiz na vida. Nem faço ideia de quantas coisas ocultei das duas, mas a parte mais essencial foi dita. Espero por alguma resposta, qualquer coisa que seja, mas não é isso que tenho.
Permanecemos quietas, dando lugar aos sons de passos distantes no corredor ao lado, poucas vozes e também os ruídos do mundo fora deste quarto.
- Não dirão nada? – Digo abaixando o olhar.
- É que... É repentino. – a voz de Marina é contida – Tudo isso, é repentino demais. Do nada alguém apareceu, a entidade sumiu e logo depois ficamos "inteiras"?
- Sei como é difícil de acreditarem nisso. – Me sinto levemente sufocada, então caminho para a janela buscando um pouco de ar e aproveito para olhar um pouco a rua.
- Não é questão de acreditar ou não Clara. – Letícia é quem diz agora, mas não viro meus olhos a elas. Não me sinto bem em olhar nos olhos das duas, o sentimento de vergonha cresce e se espalha por mim só por imaginar encarar as duas nos olhos. – Sabemos as coisas que você está precisando lidar nos últimos meses. Vimos por nós mesmas várias vezes, então não é difícil acreditar que tudo que nos disse é a verdade.
- Acreditamos em você, eu confio em cada palavra que nos disse agora. Por tudo que já passamos e vimos acontecer, só sendo muito céticas para não acreditarmos nisso. – Marina continua – Só que ainda é repentino sabe?
Confirmo falsamente com a cabeça, e permaneço calada.
- Por que acha isso? – Letícia questiona.
- Porque as coisas não se encaixam direito. – Ela responde. A julgar pelo tom de voz de Marina, ela está se entusiasmando – Pensa comigo... Um cara aparecendo no nada, e então a entidade some? Não acha que tem algo estranho nisso tudo?
- Entendi onde quer chegar, você acredita que essa pessoa pode ter alguma coisa haver com aquela criatura... Realmente, é suspeito.
- Exatamente, afinal é muita coincidência que a entidade vá embora logo depois dele aparecer. Se isso não for suspeito, não sei o que é.
Por um momento as duas se calam novamente. Cada vez que ficamos assim sem falar nada, acabo me sentindo ainda pior em relação a elas.
- Clara? – Ouço Marina me chamando – Você está muito quieta, o que está havendo?
- Desculpem... – Consigo dizer, mas foi tão baixo quanto um sussurro.
- Por que está se desculpando? – Letícia me questiona.
- Por tudo que aconteceu. Por nossa viagem ter sido arruinada, por tudo que aconteceu a vocês, pelo estado que as duas estão agora... – Respiro fundo, contendo toda a angustia no meu peito o máximo que posso – Por não ter conseguido resolver as coisas e não ter cuidado de vocês...
- Mas... – Letícia começa – Clara, não diga isso. Você não tem culpa pelo que aconteceu.
- Isso não é verdade, sou a principal culpada por tudo que aconteceu... – Sussurro apertando meus olhos – Só por estar lá com vocês já coloquei vocês em risco, tenho consciência disso. Eu não deveria ter ido nessa viagem, vocês duas teriam aproveitado a viagem inteira... Não estariam assim se eu ficasse longe.
- Clara, olha pra gente... – Escuto Marina, e olho para ambas por cima do ombro. Letícia já está de pé e perto de mim, e Marina se colocou de pé outra vez, e vem andando na minha direção e parando já próxima. – Me escuta você não tem culpa por não saber que iria acontecer. Nenhuma de nós tinha como prever o que aconteceria.
- Nós fomos para uma viagem de bate e volta sem planejarmos em absolutamente nada. Naquelas circunstâncias, poderia acontecer qualquer coisa de ruim com todas nós. – Letícia cruza seus braços abaixo dos seios e me encarando com um olhar firme – Uma coisa que todas nós estávamos cientes era a existência de riscos nessa viagem, e também sabíamos bem que aquela coisa poderia aparecer... E mesmo assim, quisemos e fomos viajar todas juntas.
- E aliás Clara, não é para isso que você esteve praticando tanto? – Marina me ergue uma sobrancelha.
Olho de uma para outra repetidas vezes – Sim, mas eu não consegui ganhar da entidade, meu melhor não foi o bastante... Não cuidei de vocês... – Sussurro – Não consegui resolver tudo.
- Você quem acha isso. – Marina dá um sorriso – Imagina o desastre que seria se você não tivesse praticado com o Brian, as coisas aconteceram, mas poderiam ser bem piores... E durante toda a viagem, você esteve cuidando de nós em vários momentos.
Cruzo meus braços desviando meu olhar delas. A frustração, mágoa e tudo mais que sinto apertam meu coração cada vez mais.
- Escute Clara... – Letícia para ao meu lado, ficando de costas para a janela e apoiando suas mãos na beirada – Talvez você pense que nós te culpamos, temos raiva pelo que aconteceu, ou que iremos nos afastar... Mas não é assim que pensamos. As coisas não ocorreram tão bem dessa vez, mas no fim estamos aqui vivas... E acho que é isso que importa.
Aperto a boca em um suspiro – Mesmo assim... Me desculpem. Eu não queria nada disso... Era para ter sido um fim de semana para todas descansarmos, e ai...
- Nós sabemos, mas não tem problema Clara. – Marina diz me abraçando de lado – Já passou, estamos bem agora... E a nossa viagem não foi perdida.
- Não foi mesmo. – Letícia diz com um sorriso na voz – Afinal viajamos em grupo sem nos planejar, não gastamos muito, conhecemos lugares diferentes, tivemos vistas incríveis, andamos de lancha...
- Uma de nós transou a noite com o dono da lancha. – Marina diz brincalhona.
- É... Isso também... – Letícia diz sem jeito, tropeçando nas próprias palavras – Fotos, tiramos muitas fotos também.
- Ah, e falando nisso... – Marina anda de volta para a cama, pegando meu celular. Ela toca a tela algumas vezes enquanto se aproxima – Como está Tamires? Tá bem? Tá viva? Então, estamos aqui no hospital, já acordadas mas impedidas de sair... Mas estamos acordadas, né Letícia? Fala oi pra Tamires!
Letícia olha surpresa do celular para Marina – Ahn... Oi Tamires? Tudo bem? Estamos internadas e nos recuperando...
- Viu? Ela também tá acordada! – Marina diz animada enquanto Letícia morde o lábio tentando não rir – Então, logo estaremos fora daqui, e vamos marcar de sair e viajar de novo em breve. E aliás, quando sairmos vamos escolher as melhores fotos para postarmos.
Letícia começa a rir baixo enquanto Marina devolve meu celular com um sorriso brincalhão. Por elas, parece que tudo está bem, mas eu gostaria de me sentir como elas... Mas infelizmente, não consigo fazer mais que dar um sorriso fraco.
Saí do hospital já a algum tempo. Passei uma parte da tarde com as duas, mas acabei saindo para que os pais de Marina pudessem ficar com ela fazendo companhia. Eu adoraria poder ficar mais tempo com as duas, mas no meu péssimo ânimo agora, com certeza não é uma boa ideia.
Levei um tempo para me despedir delas, dei um demorado abraço nas duas, repleto de cuidado para não causar dores nas duas, e finalmente vim embora.
O caminho de volta pelo metrô não foi tão demorado quanto a vinda... Foi bem mais calmo também, afinal a entidade não resolver dar o ar da graça de falar na minha cabeça de novo, então pude me afogar tranquilamente nas mágoas que continuam me afetando.
Desço as escadarias da estação e caminho para a saída, lançando o capuz da blusa sobre a cabeça, já planejando caminhar para casa o mais rápido que conseguir e cair na cama pra descansar o máximo que eu puder. Se meus pais estiverem em casa, meu longo descanso irá cair para um cochilo de meia hora.
Quero ficar um tempo com eles.
Passo pelo portão da estação, sendo recebida pela barulheira dos carros na avenida e o ar frio de hoje. Essa tarde está gelada e venta bastante, fazendo meu cabelo se agitar e ficando um pouco descontrolado. Talvez eu faça um chocolate quente assim que chegar, me agasalhe e me enrole na minha mantinha de bichinhos junto de algo mais pesado para me esquentar.
- Foi como Marina disse, você viria pelo metrô. – Ouço a voz conhecida de repente bem ao meu lado, cortando meus pensamentos. – Finalmente apareceu, Clara.
Me viro, encontrando Brian e seu olhar sobre mim, e sua boca encurvada para baixo. O homem não está em um de seus habituais ternos, mas sim com uma jaqueta cinza e uma blusa de lã por baixo, além de uma calça escura, um par de sapatos e um cachecol bem preso ao pescoço. Diferente de muitas outras vezes, hoje ele está com o cabelo arrumado penteado para trás.
É incrível que qualquer coisa que esteja vestido, Brian acaba semelhante a um tipo de empresário. É raro ele parecer algo diferente disso.
- Você não deu notícias desde sábado... – Ele começa a falar se aproximando de mim em passos lentos, analisando meu rosto por alguns instantes. – Visualizou as mensagens e não respondeu. Fiquei preocupado com você.
Aperto um pouco a boca, evitando de olhar em seus olhos – É... Ficamos bem ocupadas aproveitando as praias, saímos bastantes para conhecer os lugares, curtir... Fizemos um tour por Ubatuba sabe, nem tivemos muito tempo de dar atenção aos celulares.
- Fizeram um tour? – Sua voz é neutra. Ele ergue uma sobrancelha, levando as mãos aos bolsos.
- Sim, conhecemos alguém lá que nos levou até pra passear de lancha, acredita? Eu nunca andei de lancha na minha vida, ainda mais uma grande como aquela. – Digo tentando transparecer alguma animação por meio de um sorriso falso, enquanto que Brian continua com seu olhar sério sobre mim – Apesar de toda minha desconfiança desde o começo, preciso admitir que Gabriel é um cara legal.
- Ah sim entendo, foi bom... Pôde aproveitar bem, pode fazer um passeio diferente... – Brian balança a cabeça lentamente, cerrando seu olhar para mim. Esse olhar desconfiado dele me trás uma sensação esquisita, de estar desprotegida em sua presença. Ele da um passo à frente, passando a ponta de seus dedos pela minha bochecha. Seu toque é quente, me arrepia. – E esse corte no rosto? O que houve?
- Isso... – Engasgo nas palavras, pensando o que dizer ao homem a minha frente. Por que me sinto tão desarmada na presença dele? – Me machuquei na praia. Não foi nada.
- Não foi nada... Mas sabe, não foi isso que a Marina me disse. – Ele diz em um sussurro, voltando a colocar a mão no bolso e me encarando.
Espera, quando foi que Brian falou com Marina? Desde que estivemos na praia, mal tocamos nos nossos celulares para algo além de gravar vídeos e tirar fotos e mais fotos. E no hospital, tanto Marina quanto Letícia nem fizeram menção dos seus celulares, e eu não os vi em nenhum lugar.
Será que... Eles conversaram hoje cedo, na hora que Marina esteve mexendo no meu celular?
- O que acha de me falar sobre o confronto que teve contra a entidade? – Ele diz calmamente.
Ele sabe. Ele realmente sabe o que aconteceu.
- Aquilo... – Começo a falar, mas minhas palavras perdem força.
Fecho os olhos e aperto os dentes, tentando conter a enxurrada de sentimentos e tristeza que até agora lutei pra conter dentro de mim.
- Aquilo... Foi um desastre completo... – Digo com a voz embargada. Gostaria de evitar essa conversa com qualquer um que fosse, mas não com ele. Com Brian é diferente, não sinto que quero fugir disso quando se trata dele. – Eu tentei, você não tem noção de como tentei... Mas não consegui resolver nada.
- Como se sente? – Ouço sua voz sussurrada.
- Frustrada, derrotada. – Sussurro, voltando a olhar para ele – Eu não consegui, treinei tanto e dei meu melhor, mas não foi o bastante... Não consegui manter elas seguras, só deixei minhas amigas em perigo... Minhas amigas quase morreram, e a culpa é minha...
Respiro profundamente, soltando o ar pela boca. Meus ombros abaixam, e a única resposta que tenho do meu guardião é seu silêncio e seu olhar sobre mim. Olhos sérios. Não são julgadores ou de desprezo, apenas sérios, e não faço ideia do que ele esteja pensando.
- Sabe Brian, estou cansada... – Um sorriso me surge, mas de tristeza. Minha voz enfraqueceu ainda mais, a tristeza é tanta que uma lágrima solitária escapa – Esses problemas, esses riscos, essa criatura me caçando, estou cansada de verdade... – Sussurro balançando a cabeça, abraçando a mim mesma – Só queria que tudo isso acabasse, queria minha vida de volta. É demais pedir isso?
- Não. – Seus olhos vão ao chão – Não é. Infelizmente as coisas acontecem desse jeito, contra a nossa vontade. E por mais que nos esforcemos, não conseguimos cuidar de tudo, e nos sentimos incapazes, tristes, abalados... Sei como se sente... Sei muito bem como se sente neste momento Clara, e está tudo bem se sentir triste... Mas mesmo doendo, é preciso aguentar.
Assinto balançando a cabeça, apertando os lábios. Ele tem razão, sei que fiz tudo que pude e que preciso aguentar, mas não consigo pensar assim – Desculpe, mas... Eu quero ficar um tempo sozinha.
- Eu entendo. – Ele sussurra me olhando – Darei o espaço e o tempo que você precisa...
- Obrigada... – Digo ajeitando o capuz da minha blusa e escondendo as mãos nos bolsos e me coloco a caminhar devagar, com o olhar baixo e quase arrastando os pés. Passo ao lado de Brian, que sequer se move.
- Só mais uma coisa. – Ouço Brian falando – Apesar de não vir ao caso, gostaria de te contar uma novidade desta manhã. Amanda apareceu no consultório do Ferdinand, pelo visto ela superou o trauma, e já voltou as atividades de sempre como se nada tivesse acontecido.
Paro de andar assim que ouço essas palavras. Amanda está recuperada do trauma que teve ao ser lançada ao Abismo, isso é muito bom de tantas formas, mas a única coisa que me vem em mente é o responsável por ter feito isso, e a imagem daquela pessoa me surge na imaginação.
Isso só pode significar que aquele homem realmente foi atrás de Amanda, e o pior de tudo, é que conseguiu mesmo encontrá-la.
- Isso... É ótimo Brian. – Sussurro sem conseguir olhar para ele. Nem, sei quanto minha mente ficou ainda mais bagunçada agora – Fico feliz em ouvir isso.
- Sim, Ferdinand também ficou feliz. – Ouço um suspiro pesado de Brian – Me perdoe por ter te submetido a isso por tanto tempo... Prometo que tudo acabará logo.
- Tá bem... – Sussurro – Eu confio em você...
Dito isso, volto a andar sentindo o olhar de Brian nas minhas costas.
Caminho devagar rumo a minha casa, querendo chegar o quanto antes ao meu refúgio. O lugar onde poderei finalmente me sentir segura, mesmo que na realidade eu não esteja.
Atravesso a avenida e sigo pelas ruas, deixando o vento frio envolver meu corpo por completo. Sei bem do meu amor pelo calor, mas neste momento, o frio não me desagrada, na realidade é a companhia que eu poderia querer. Gostaria que esse vento contínuo pudesse carregar tudo que sinto para o mais longe possível.
Minha mente volta ao que Brian me disse na estação. "Prometo que tudo acabará logo". Como eu gostaria de acreditar nessas palavras, mas do jeito que estou agora, é difícil acreditar.
Chego a rua de casa sem conseguir levantar o olhar, precisarei estar com uma expressão melhor quando encontrar meus pais para não preocupá-los. Apresso um pouco meu passo, já sacando a chave do bolso da minha calça.
Paro em frente ao porta, retirando o capuz da cabeça e soltando meus cabelos que voam suavemente junto ao vento. Suspiro uma última vez, precisarei encenar melhor para convencer meus pais que estou mesmo bem.
- Clara? – Ouço uma voz bem atrás de mim.
Espera, essa voz... Não, não pode ser ele.
Viro a cabeça e olho surpresa por cima do ombro. A pessoa que não vejo a tanto tempo.
Ricardo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro