Capítulo 26 - Viagem em grupo
9215 Palavras
Me estico o máximo que consigo, tentando afastar toda a preguiça que estou sentindo recaindo sobre mim. O sono está sendo meu companheiro mais recorrente nessa última semana, e pelo visto não dará sinais de me deixar sozinha por algum tempo.
Comecei a treinar com Brian na última quarta-feira, e decidi adotar uma rotina de treinos após minha faculdade. De começo achei que dava para lidar com tudo muito bem, conciliar treinos à tarde e à noite eu daria andamento em alguma coisa da faculdade. Claro, eu já chegava em casa cansada, beirando as 22h, mas ainda assim conseguia estudar consideravelmente bem.
Mas na prática a coisa foi muito diferente. Os primeiros dias de exercícios com as runas eram exaustivos demais, era uma briga conseguir me manter acordada... E para dificultar tudo um pouco mais, avisaram na sexta que essa segunda começaria a temida semana de provas. E ainda bem que levei aquela cara de maníaca da minha professora a sério.
Essas provas foram verdadeiros pesadelos!
Eu não queria deixar meus treinos de lado por já sentir um leve progresso em tão pouco tempo praticando, mas ao mesmo tempo, precisava estudar por já sentir que minhas provas não seriam nada fáceis. Sem contar que haviam meus pais questionando o motivo de eu estar chegando tarde tantos dias seguidos.
A pergunta foi, como conseguir lidar com meus pais, e ter tempo para conciliar as duas coisas?
A resposta mais adequada foi levar todos os meus livros para a casa do Brian na sexta feira e ficar lá, estudando de manhã até o almoço, e a tarde aprender e praticar cada uma das runas até o máximo que meu corpo poderia aguentar. E se eu ainda tivesse forças, estudar mais um pouco para as provas a madrugada.
Quanto aos meus pais, disse que estava na casa da Marina, e estávamos ficando muito ocupadas com alguns projetos e normalmente eu voltava tarde para casa... O que foi uma meia verdade, afinal, de sábado para domingo a Marina realmente foi para a casa de Brian e tiramos algumas horas da manhã para estudarmos, enquanto Brian precisou sair para resolver alguma coisa de trabalho com o Ferdinand, ou algo assim.
Seja como for, durante a semana ele parecia bem incomodado. Ficava andando de um lado ao outro com uma cara de preocupação, e enquanto eu ficava estudando, ele saia para algum lugar, e voltava pouca coisa depois que eu terminava meus estudos.
No fim de semana consegui ter ótimos rendimentos, mas quando começou a semana de provas... Eu simplesmente não aguentava nada, só queria dormir.
Com muito esforço, consegui cuidar de tudo. Estudei todos os dias depois da faculdade, afundei a cara nos livros e um jeito que nunca fiz antes, me esforcei e nessas horas Brian me deu uma ajuda muito bem vinda, sem falar que as horas que estudei com Marina foram extremamente produtivas. Acredito que por todo o meu esforço e também a ajuda que recebi, não tomei bomba nas provas. Acho que minhas notas serão boas.
E também consegui me dedicar nos treinos. Nesse tempo, aprendi tantas coisas sobre as runas, consigo me concentrar muito melhor e mais rápido do que fazia antes e até faço isso com os olhos abertos... Percebi também que dependendo do meu humor, parece que as sensações que fluem pelo meu corpo mudam um pouco. Algo que notei é que preciso controlar minha impulsividade.
Bem, melhorei bastante o uso e eficácia de cada uma das runas, além de conseguir usar elas em sequência, sem falar que agora meu corpo está mais resistente, até mesmo acho que visualmente estou diferente.
Meu corpo parece ter mudado um pouco com esses treinos.
Definitivamente, estou diferente em algo, e me sinto muito melhor como estou agora...
Mas estou completamente esgotada! Eu quero uma cama!
- Livres, finalmente... – Ouço Letícia falando ao meu lado, me tirando de mais um dos meus devaneios. Ela está de cabeça baixa, com uma expressão de cansaço imensa. – Não quero passar por isso de novo...
- Terão mais algumas pela frente, ta cedo para desistir Letícia – Marina diz em tom de zombaria, mas ela está exatamente no mesmo estado. Ela da um longo bocejo, pendendo o corpo para frente.
- Pelo menos sobrevivemos. Agora, temos um fim de semana para aliviar a cabeça. – Digo as observando com uma tentativa de animá-las.
- A ideia da praia ainda está de pé? – Marina questiona em um sussurro, quase inaudível pelo som de vozes a nossa volta, além dos ruídos ensurdecedores do terminal a nossa frente.
- Por mim está sim, agora mais do que nunca. – Letícia diz preguiçosamente.
- O que acham de irmos hoje mesmo? – Digo com um sorriso empolgado.
- Um bate e volta? – Marina questiona pensativa e concordo – É uma boa ideia, mas acabaríamos mortas de cansaço. Se possível seria bom achar alguma pousada, e aproveitamos para ficar o fim de semana.
Tudo bem que eu estava pensando em correr para minha cama e fazer uma declaração de como estou com saudades dela, mas a ideia da praia parece ótima mesmo.
Se eu desdenhei dessa ideia antes, agora a coisa é diferente. O calor em São Paulo está sendo presente dia e noite, mesmo que "chova" as vezes, é tão rápido que o sol volta com tudo logo depois, e só ajuda a esquentar mais...
Mas o estranho de tudo, é que tenho uma sensação de que não é algo anormal. Está quente como um dia de verão, mas não foi algo assombroso como alguns tempos atrás.
Além do mais, faz tempo que não vou à praia para me divertir, e todas nós estamos mesmo precisando – Vamos apenas nós? – Marina questiona.
- Quem estava pensando em convidar? – Questiono.
- Pensei na Jeniffer e também na Tamires. – Ela diz erguendo os ombros – Achei as duas ótimas pessoas, seria divertido se forem junto.
- Eu concordo, mas será que estariam livres assim em cima da hora? – Letícia levanta uma pergunta interessante.
- A Jeniffer não sei, ela trabalha aos sábados... Mas posso questionar... – Digo pegando meu celular do bolso. Antes de fazer qualquer coisa, olho para ambas – Vocês duas dão certeza que irão?
Letícia me confirma em um sorriso empolgado – Se eu não fazer algo para relaxar, posso acabar surtando. – Marina diz em brincadeira.
- Certo, então para pouparmos tempo, já vamos ir nos ajeitando, e combinamos um horário e local para nos encontrarmos. – Digo dando alguns passos para trás.
Elas confirmam balançando a cabeça, e cada uma de nós segue apressada por um caminho. Vou correndo para o metrô, definitivamente é o caminho mais rápido para casa. Eu já tenho que pensar em alguma desculpa com meus pais, conhecendo os dois como conheço, não deixaram essa minha nova saída repentina passar batida.
Não sei se já ligo para eles avisando ou não, mas em algum momento terei que deixar os dois cientes. Bom, tomarei coragem dentro do metrô, e até chegar a minha estação, já terei reunido coragem o bastante.
Essa tarde foi uma correria, mas uma correria por um fim de semana relaxando. Claro que a ideia da praia foi decidida totalmente em cima da hora, mas agora já foi. Se ficássemos marcando por muito tempo, não teria acontecido nada.
Então é melhor aproveitarmos o embalo e irmos de uma vez, do que planejar e acabarmos cancelando em cima da hora por algum problema repentino.
Avisei primeiro minha mãe, e depois meu pai sobre essa ida na praia, e não precisei escutar tanto sermão quanto achei que escutaria... Tanto, porque claro, eles tinham que fazer cinco minutos de discurso por ligação antes de finalmente se darem por satisfeitos e dizerem "se cuide filha", como eles sempre fazem.
Foi bom eles estarem no trabalho, que eu posso arrumar todas as coisas para essa pequena viagem com bem mais calma. Além do mais, toda a calma da casa sendo rompida só pela minha própria pressa me da um estranho relaxamento.
Eu só vou para a praia com minhas amigas, mas a sensação que tenho é de estar prestes a fazer uma viagem de intercâmbio para a Europa.
Apesar da pressa e de todo o cansaço no corpo e de toda a óbvia ansiedade, eu me sinto tão leve, tão tranquila.
Olho para minha cama, cruzando os braços. Minha mochila está aberta a minha frente, e algumas coisas estão separadas bem ao lado. Vejo as roupas de calor que separei junto a biquínis, carteira com meus documentos e dinheiro, toalhas, cremes, coisas de higiene, protetor solar, a pasta onde sempre guardo as runas que estão com as folhas levemente desgastadas, além da caixinha branca onde deixo a runa do raio sempre bem guardada.
Pela décima vez estou confirmando se não esqueci nada, mas pelo menos dessa vez, faço isso colocando as coisas na mochila para não perder mais tempo.
Mas para meu desespero, por ser tão pequena, minha mochila vai estufando mais e mais a cada coisa que vou colocando nela. Acho que precisarei pegar a mala de viagem do meu pai, mas ela está em cima do guarda-roupa e provavelmente cheia de pó, e só com a cadeira do meu quarto é difícil de conseguir alcançar qualquer coisa.
As vezes é horrível ser baixinha.
Não sei se é por ansiedade, mas conferi o clima pela janela e também pela previsão do tempo no celular por diversas vezes. Durante todo o dia fez um sol ardido em São Paulo, e na praia a situação está à mesma. Isso é bom, vai dar para aproveitar bem a água, e se não estiver ardido, da para pegar um bronzeado.
O lado bom é que hoje, o clima não parece estar nada maluco. Na verdade, desde um pouco antes que comecei a treinar com Brian, os dias retornaram a uma normalidade. Nenhum dia com chuvas extremamente fortes e ventanias que mais pareciam de um vendaval, e também não teve nenhum dia de calor sufocante. Tudo voltou normal. Não sei se me preocupo ou não.
Pego minha mochila e jogo nas costas, me preparando para sair de casa. Olho meu celular para confirmar qualquer nova mensagem de uma das meninas, e a primeira conversa é Tamires e começo a reler.
Admito que a princípio, imaginei que Tamires fosse recusar, mas ela aceitou bem rápido.
Penso comigo, o quanto ela deve estar pesquisando sobre as coisas do Abismo. Ela é uma das mais interessadas, e várias vezes ela passa horas seguidas estudando sem parar, migrando de temas da sua faculdade para pesquisas relacionadas ao abismo.
Fecho a conversa e vou para a seguinte, com Jeniffer e releio rapidamente.
Diferente de como foi com Tamires, ela não poderá ir, mas os motivos são bem diferentes. Ela está com intoxicação alimentar e está sem trabalhar já há alguns dias. Espera um pouco...
Agora que penso um pouco, faz todo o sentido Brian parecer tão preocupado durante a semana e ficar saindo com frequência enquanto eu estudava, provavelmente estava preocupado e foi ver como Jeniffer estava.
Apesar da ponta bem grande de ciúme que sinto agora, não posso deixar isso me incomodar.
E o Brian disse que está com Ferdinand vendo sobre alguma coisa. Não me lembro direito, mas parece que estão estudando cada um dos vários registros novos que conseguiram graças aos estudos que estiveram fazendo, junto as situações que eu e Tamires tivemos, e irão unir com as informações que já tinham antes.
Seja lá o que estejam fazendo, parecem estar bem ocupados.
Balanço a cabeça ignorando tudo isso. Olho para todas as minhas coisas, checando tudo mentalmente. Separei roupas o suficiente para o fim de semana, toalhas, coisas de higiene, protetor solar, carteira com documentos e dinheiro, celular, as runas.
Está tudo aqui, não sei se esqueci algo. Por garantia, vou abrir a mochila e jogar tudo na cama para fazer uma última verificação, e só depois disso que então sairei direto para o metrô. Se eu demorar um pouco mais para sair, chegarei atrasada e não estou afim disso.
O metrô abaixa a velocidade e logo a plataforma pode ser vista do outro lado da janela. Claro, vista de uma forma muito precária por causa da quantidade de pessoas, tanto que preciso ficar na ponta dos pés para conseguir enxergar algo e não ser esmagada por todas essas pessoas. Ser baixinha tem suas desvantagens escancaradas nesse tipo de hora.
Aliás, o mundo resolveu cismar com a minha altura hoje?
Bem, seja como for, não sei o que aconteceu que hoje está tão lotado.
Mas por que será, não é Ana Clara? Vamos pensar um pouco, é sexta-feira beirando às 18 horas, todo mundo saindo do trabalho, e a estação Tietê está do lado de um terminal rodoviário. Acho que não preciso de mais motivos para descobrir o porquê de estar tão cheio hoje.
As portas se abrem e um refrescante vento invade o vagão e toca meu rosto, ajudando a aliviar o calor que estou sentindo. Tento caminhar, mas acaba sendo mais fácil deixar a multidão me levar. Seguro firme minha mala, conseguindo sair do metrô sem ser estapeada por ninguém.
Olho em volta, e percebo um rosto conhecido por trás de tanta movimentação. Desviando das várias pessoas, vou me aproximando como consigo, escutando o sinal das portas se fechando e o metrô partindo, ao mesmo tempo em que a pessoa desvia seu olhar de um livro e me percebe.
- Acho que fui a primeira a chegar. – Tamires diz com um sorriso de canto, me analisando por detrás dos óculos de leitura conforme me aproximo.
Ela está sentada em um dos bancos da plataforma, com um grosso livro em mãos que antes dedicava toda sua atenção, e uma larga mochila pouco estufada próximo aos pés. Ela pode ter um gosto maior pela cidade, mas pelo que vejo, arrisco dizer que Tamires está empolgada para essa ida à praia.
- Te fiz esperar muito tempo? – Questiono, a cumprimentando com um rápido abraço, e me sentando no banco livre ao lado, erguendo os braços para me espreguiçar novamente, sentindo bem o vento vindo do lado de fora da estação. Adoro essas estações de São Paulo que ficam no alto e tem essas entradas de ar, são sempre refrescantes.
- Até que não. – Ela diz, pegando uma larga fita avermelhada ligada a capa do livro, e a deixa entre as páginas do mesmo, o fechando em seguida. – Cheguei a pouco menos de dez minutos. Como não vi ninguém aqui na plataforma, me sentei para esperar.
- Eu estava sem sinal até agora a pouco... – Digo, pegando meu celular no bolso e olhando alguns momentos, dando alguns toques na tela. – E pelas mensagens, elas já estão chegando. A Letícia está à estação Tiradentes, e pela última mensagem da Marina, ela saiu da Sé, mas isso já faz um tempo.
A garota ao meu lado da risadas – Eu só conheço de nome, mas não faço ideia de onde fica. Estou quase balançando a cabeça e só concordando.
- Já me sentirei feliz se fizer isso, não me sentirei falando sozinha. – Digo rindo.
O assunto morre assim que ela recebe uma ligação. A deixo falar com privacidade e me concentro apenas nos barulhos em volta. Começo a refletir novamente se peguei todas as coisas, se separei dinheiro o bastante para esse fim de semana.
Minha atenção vai ao celular ao ver uma mensagem de Brian surgindo. Até penso em ignorar, mas ele manda mais coisas, que atiçam minha curiosidade e me obriga a querer ver o que é.
Brian: Olá Clara.
Brian: Ainda estou por aqui no trabalho. Ferdinand está com algumas consultas marcadas para agora, e ainda estamos longe de terminar de atualizar os registros.
Brian: Pelo que estou vendo, não sairei daqui tão cedo... Talvez precise virar a noite aqui.
Brian: E quando sairmos daqui, ainda iremos ver como Amanda está.
Brian: Ela está sem dar notícias outra vez, e Ferdinand está preocupado.
Ana C: Tudo bem, sem problemas.
Brian: Desculpe, não poderemos treinar hoje.
Ana C: Não se incomode, não estarei em casa nesses próximos dias.
Brian: Ué... Para onde vai?
Fico pensativa se respondo para onde vou, ou se mantenho algum segredo. Olho para os lados, me certificando se as garotas já chegaram, mas não, e Tamires continua falando no celular. Acho que não tem sentido ficar escondendo.
Ana C: Vou para a praia.
Ana C: Ficarei esse fim de semana por lá.
Brian: Entendi.
Ana C: Irei com as meninas, estamos precisando aliviar a cabeça depois dessa semana.
Brian: Com certeza estão sim. Vi como você esteve estudando esses dias.
Brian: Está levando seu colar de proteção?
Ana C: Ele está sempre comigo.
Brian: E as runas?
Ana C: Também.
Ana C: Acha que eu as deixaria em casa?
Brian: Acho.
Brian: Estou brincando.
Ana C: Hm... Eu já estava para brigar com você.
Brian: Estava? Não vai mais?
Ana C: Não.
Brian: Me livrei... Pois bem, trate de se cuidar, e aproveite bem cada momento da viagem Clara. Passeie bastante por lá.
Ana C: Com certeza irei. Obrigada.
Brian: Qualquer coisa me avise, que tentarei chegar o mais rápido que puder.
Ana C: Relaxa, vai acontecer nada não.
Ana C: Pelo menos, espero que não aconteça.
Aguardo mais alguns segundos, porém não vem mais nenhuma mensagem. Guardo o celular no bolso, voltando minha atenção ao metrô que acaba de chegar. Novamente lotado, assim como o que eu vim.
Assim que as portas se abrem, uma quantidade imensa de pessoas saem as pressas. Algumas com malas de mão, outras com mochilas e bolsas de costas ou com malas de rodinhas. Sejam casais ou famílias inteiras, mas quase todas aqui tem o mesmo padrão.
Por entre todas as pessoas, vejo uma loira alta olhando de um lado ao outro, tomando esbarrões seguidos de várias pessoas enquanto tenta escapar da multidão, e ao lado dela uma garota com cachos negros caindo em volta do rosto. Acabo percebendo se tratar de Marina e Letícia, e na hora levanto do meu banco, acenando para chamar sua atenção – Aqui meninas!
Elas viram o rosto diretamente para mim, e com um aceno animado, tentam se aproximar de nós como podem. Demora um pouco por causa das pessoas, mas finalmente as duas me alcançam. Ambas carregam malas de mão consigo – Chegamos, foi terrível chegar aqui depois da Sé... Que estação lotada... – Marina comenta, rindo de imediato.
- E eu não sei? Quantas vezes já não fui pra lá? – Digo e acabamos rindo juntas, voltando para o local onde Tamires e eu aguardávamos – Lembram-se da Tamires, não é?
- Com certeza e lembro bem. – Letícia diz sorrindo animada, a cumprimentado com um abraço caloroso. As vezes é difícil pensar que ela é a pessoa mais tímida do nosso pequeno grupinho lá na faculdade – Só nos vimos uma vez, mas eu me lembro bem.
- Digo o mesmo a vocês duas. – Tamires sorri.
Letícia olha ao redor algumas vezes, como se checasse tudo – Bem, vamos então?
- Agora, a praia nos espera. – Digo aos risos, pegando minha mala, e Tamires acaba fazendo o mesmo, deixando seu livro debaixo do braço.
- Definitivamente, aqui é o melhor ponto de encontro. – Letícia comenta rindo, olhando em volta. Fico atenta às últimas pessoas passando sem parar por nós. Esperamos a bagunça aliviar nas catracas e somente então passamos, rumando para a barulhenta rodoviária – Se tivéssemos optado em nos encontrarmos ali na rodoviária, acabaríamos todas perdidas.
- É, imagino o porquê disso... – Tamires comenta rindo, retirando seu óculos e prendendo na gola de sua camisa e olhando tudo ao redor atentamente. Pelo seu olhar, parece um pouco perdida com tanto movimento de uma só vez. – Lá na minha cidade não era nem assim... Claro, tinha muita bagunça no centro, mas nem se compara em como é aqui.
- Qual parte de São Paulo não é uma verdadeira bagunça? – Marina da uma risada junto a um sorriso de canto.
- Mais fácil perguntar qual parte de São Paulo é uma bagunça. – Letícia zomba e acabamos gargalhando juntas.
Caminhamos por alguns momentos, desviando de pessoas que caminham no sentido oposto ao nosso. O ar gélido da estação do metrô vai ficando para trás, dando lugar ao clima mais pesado, quente e abafado da rodoviária, sem falar na quantidade de vozes que se mistura pelo ar.
O lugar está muito mais lotado do que eu esperava, e o tumulto a nossa volta poderia ser insuportável. Só estou aguentando porque minha animação por um fim de semana de curtição está falando muito mais alto.
- Alguém sabe onde ficam os guichês? – Letícia questiona nos olhando.
Levo uma mão ao queixo e fico pensativa – Provavelmente no lugar que tiver um monte de filas, só não estou vendo nenhum lugar assim por perto. – Tamires diz olhando em volta, ficando na ponta dos pés. – Sabem se tem um mapa daqui?
- Eu tenho o mapa! – Marina diz, sacando seu celular do bolso da calça. Paramos a sua volta e esperamos, enquanto ela digita algumas coisas e toca a tela por algumas vezes. – Então, eu acho que fica... Pra lá! – Ela diz apontando uma direção com o rosto.
- Acha? – Questiono rindo.
- Claro, não sou boa com mapas. Quem gosta de mapas é o Tiago. – Ela se defende dando de ombros, me mostrando a tela do celular, e de imediato Letícia e Tamires também olham. A única coisa que reparo é ela citando Tiago – O que me dizem?
Tamires pega o celular, olhando alguns segundos – Pra lá mesmo... Do outro lado da rodoviária.
Ouço Marina resmungando. Pela expressão que ela fez, teremos que fazer uma verdadeira caminhada de horas. Eu sei que pode ser a maior rodoviária que tem aqui em São Paulo, mas também não é pra tanto.
Enquanto caminhamos, aproveito para olhar tudo em volta, faz muito tempo desde que passei por uma rodoviária. Essa por exemplo, a última vez que vim na rodoviária do Tietê, eu ainda era uma criança. Não me lembrava que era assim tão grande e movimentada. Acabo me sentindo novamente uma criança estando nesse lugar imenso e tão barulhento.
Se eu estou assim, imagino como Tamires deve estar se sentindo.
De soslaio eu a observo. Ela está olhando tudo com ainda mais interesse do que eu. Cada pequeno detalhe do lugar a nossa volta está sendo observando com total atenção por Tamires. Acabo soltando um discreto sorriso, o que será que ela está pensando?
No meio das andanças e vagas lembranças que tenho da minha infância, vou pensando comigo algo importante. Ainda não escolhemos um destino, apenas nos reunimos aqui na rodoviária com nossa cara de pau.
Nosso único requisito foi: Vamos para o litoral norte.
O lugar onde vamos parar, já se tornou uma incógnita completa a mim, já que foi Letícia quem escolheu o lugar e nos disse para virmos até aqui, e eu concordei em ajudar a pagar as passagens.
Chegamos até os guichês, os primeiros que vejo mal podem ser vistos direito por causa da imensa fila logo a frente. Está lotado, e me fazem questionar a chance de conseguirmos passagens para a praia.
Mas para meu alívio, Letícia segue andando na frente, olhando para seu celular e para os guichês repetidas vezes, parando em frente de um não tão lotado como os anteriores, mas ainda assim, com algumas pessoas.
Marina e Tamires pegam nossas malas e se afastam conversando, enquanto fico esperando na fila com Letícia. Não sei direito quanto tempo ficamos esperando na fila, mas conseguimos passagens para o ônibus que sairá as 19:30h. Acho que não será muito tempo de espera.
Nos reaproximamos, eu com todas as passagens em mãos, confirmando pela segunda vez todas as informações, e Letícia guardando alguns trocados das passagens em sua carteira. Desvio meu olhar da passagem e vejo que ambas nos esperam no canto, praticamente servindo de sentinelas para nossas bagagens.
- Compramos! – Anuncio erguendo a mão com todas as passagens assim que nos aproximamos. Meu gesto me deu a impressão de ter contratos multimilionários assinados.
- Que hora é o embarque? – Marina questiona em expectativa.
- As 19:30h. – Digo entregando as passagens para cada uma delas.
Vejo minha melhor amiga olhando a passagem e seu celular alguns segundos – Cinquenta minutos... Não é muito tempo de espera, passa rápido. Quanto tempo de viagem?
- Quanto tempo de viagem, e também para onde vamos. – Tamires a corrige rindo.
- Verdade, para onde vamos? – Marina se retrata em um riso que contagia a todas.
Letícia segura o riso com uma mão na boca olhando para elas – Nós vamos para Ubatuba... E são quase cinco horas viajando.
Marina faz uma expressão de surpresa. Ela estava prestes a falar algo, mas suas palavras parecem ter desaparecido. Ela balança a cabeça em concordância algumas vezes, olhando para o chão, e logo então seu olhar vem a nós – Nossa... Quase cinco horas... É uma longa viagem, né?
Não seguro meu riso com sua reação – Sim, uma viagem bem longa. Cinco horas de estrada pela frente, em um ônibus que nem sabemos se tem bancos confortáveis ou não.
- Olhe pelo lado bom. – Tamires comenta, levando uma mão ao ombro de Marina – Pelo menos não estamos indo para Salvador de ônibus. Ouvi falar que são quase 30 horas de viagem.
Marina estremece com o que acaba de escutar e ela passa seus olhos arregalados por nós. Ela permanece em silêncio alguns segundos e logo abre a boca, um pouco hesitante – Sabe, tive uma epifania agora. Acho que eu estou reclamando de barriga cheia. Cinco horas de viagem? Pouquinho não acham?
- Claro, é muito pouca coisa comparado a outras viagens mais longas – Letícia deu de ombros rindo. Ela pega suas coisas e fazemos o mesmo. – E agora? Onde vamos para esperar?
- Sei lá... – Respondo – Está cedo para irmos para a área de embarque. Vamos procurar alguns bancos e nos sentarmos.
Pegamos nossas coisas e seguimos caminhando por alguns momentos. O lugar lotado acaba limitando bastante nossas opções de lugares para sentar e esperarmos. Acabamos caminhando para um local mais afastado e nos sentamos no chão mesmo. Deixamos nossas malas entre nós para evitar quaisquer problemas e inconvenientes.
Por garantia, deixo minha mala bem próxima de mim, pois é nela onde todas as runas estão. Neste momento eu penso que deveria ter vindo com minha mochila também. Além de distribuir o peso, poderia também manter todas as runas sempre perto, mas agora é tarde... Apesar que não preciso mais estar tão grudada a elas para conseguir usa-las.
O único problema é a eficácia diminuída se estiverem longe demais.
- Você está em São Paulo há quanto tempo mesmo? – Marina questiona curiosa para Tamires, me fazendo retomar minha atenção ao assunto.
- Desde o começo do ano. – Ela diz com um sorriso – Consegui uma bolsa de estudos quando fiz meu vestibular para uma faculdade de psicologia aqui na capital, e assim que terminei o ensino médio eu me mudei para a casa de uns tios.
- Psicologia, é uma ótima escolha. – Digo apoiando o rosto na mão – É um curso muito puxado?
- Muito, algumas matérias minhas tem que virar a noite estudando de tão confusas. – Ela diz rindo. – Não suporto café, mas tem dias não tem jeito. Preciso de algumas xícaras para conseguir me manter acordada.
- Eu sei bem como é isso... – Letícia diz com uma cara entristecida – Teve uns tempos atrás que elas me falaram que eu dormiria em cima dos livros de tanto tédio, ou acharia as matérias online menos interessantes que rachaduras na tinta da parede...
- Tivemos razão? – Questiono com um sorriso de canto, e por sua vez, Letícia confirma com a cabeça, logo dando de ombros enquanto caímos no riso – Sabia. Ninguém resiste muito tempo.
- Não a culpo. – Tamires ri, apoiando os cotovelos nas pernas – Quando o sono está muito forte, o livro se transforma em um travesseiro bem confortável.
- Com certeza, que vai te garantir uma boa dor de pescoço quando acordar. Perdi as contas de quantas vezes passei por isso – Digo em um sorriso de canto – Aliás, o que te motivou a estudar psicologia?
Sua expressão se enche de melancolia. Tamires une suas mãos, abaixando seu olhar – Um dos motivos foi a situação de um amigo meu, o mesmo que fez aqueles desenhos que te mostrei.
- Edan? – O nome desse amigo de Tamires me vem em mente de imediato.
- Ele mesmo. – Ela confirma com a cabeça, enquanto Marina e Letícia nos olham atentas, tão focadas no que falamos que mal piscam – Descobri que ele tem uma depressão profunda um tempo depois que o conheci, e isso me afetou bastante. Admito que de começo acabei não dando a devida importância...
Escutamos concentradas. Se qualquer uma de nós quer falar algo, não conseguimos. Pelo tom de voz sério dela, junto a uma expressão endurecida, da a entender que as coisas foram bem difíceis, mais do que imaginamos. Arrisco dizer que ela sente alguma culpa por não ter levado as coisas mais a sério.
- Depois de alguns acontecimentos em uma festa, e de uma discussão que aconteceu por causa de uma decisão que ele tomou nesse dia, que eu entendi a real gravidade da situação, e repensei bastante várias ações minhas. Quis seguir por essa carreira tanto para ficar de olho no Edan, evitar que ele continuasse sofrendo, quanto também ajudar outras pessoas que enfrentam problemas como esses. – Um novo sorriso surge em seu rosto – E também aprender sobre a mente humana por alguns interesses particulares.
- Foram motivos fortes que te levaram a psicologia. – Letícia diz impressionada.
- Com certeza. É algo que me motiva muito. – Tamires diz em animação.
Algo me deixa pensativa. Quando ela disse "interesses particulares", me pergunto se isso tem alguma relação com estar pesquisando sobre uma pessoa que ela disse a algum tempo atrás... Cara do Casaco eu acho.
Os objetivos da Tamires as vezes se mostram bem difíceis de interpretar.
- E vocês, o que fizeram seguir pelo curso de vocês? – Ela questiona empolgada.
Marina ergue a mão ao alto primeiro – Quero uma primeira formação, e conseguir um emprego e montar um plano de carreira a longo prazo, conseguir um cargo estável e com uma boa faixa salarial para viver com conforto no futuro.
- Comigo é quase o mesmo. Eu almejo alcançar um cargo de diretoria em uma empresa. – Digo animada repetindo o gesto de erguer a mão da mesma forma que Marina, sentindo um pouco de dúvidas nas minhas palavras por causa de tudo que estou envolvida nos últimos tempos.
- Promoção no emprego. – Letícia comenta erguendo a mão, porem de sua maneira tímida.
- No seu caso foi "entre na faculdade que a vaga é sua". – Marina diz rindo.
- Mas foi exatamente isso aí mesmo. – Letícia confirma rindo. – Para vocês terem uma ideia, no dia eu estava fechando um levantamento diário, foi antes de ir para casa se não me engano. Ai meu supervisor me chamou na mesa dele pra conversar sobre meu desempenho, e falou da vaga, só que disse que um dos requisitos era estar cursando uma faculdade.
- E no dia seguinte, você foi na faculdade marcar um vestibular? – Tamires questiona rindo.
- Nada disso. Marquei o vestibular na hora mesmo, no notebook do meu supervisor. – Ela da risadas.
- E por consequência disso, você pegou a vaga. – Digo e ela afirma com a cabeça – Mas aliás, você não foi trabalhar hoje Letícia. Isso não vai te dar algum problema?
Letícia não me responde de imediato, mas leva o indicador perto da boca com um sorriso divertido – Segredinho, depois eu me resolvo lá no trabalho. Uma escapadinha do trabalho, depois de uma semana de provas como a que tivemos não faz mal a ninguém.
Acabamos gargalhando. É bom conversar dessa maneira, rir, estar descontraída e leve como me sinto agora. Estar em um momento como esse com minhas amigas me faz tão bem, me faz matar um pouco da saudade de ter uma vida normal que a muito já não tenho.
Não reclamo mais por minha vida não ser normal como das outras pessoas, sem o risco de uma criatura surgir do nada para causar problemas. Não reclamo, aceitei a situação atual da minha vida, mas é por aceitar isso que consigo ver uma beleza tão grande em momentos tranquilos como esse que tenho agora.
Diferente do que imaginei que aconteceria, acabei sendo a única acordada dentre todas nós. Já estamos na estrada a mais de três horas, e imaginei que a empolgação por estarmos viajando juntas seria o bastante para manter todas acordadas.
Logo quando entramos nos ônibus, todas estávamos bem empolgadas. Ficamos encantadas pelos assentos confortáveis, tomadas do lado das poltronas, sinal de wi-fi, tudo ajudou a nos animar ainda mais até pouco depois de deixarmos a rodoviária.
As luzes internas do ônibus se apagaram em uma suavidade que nos deixou mais eufóricas. Parecíamos muito com um grupo de crianças que nunca viajou na vida.
Até que conversamos bastante nas primeiras meia hora de viagem, mas depois disso, uma a uma acabou adormecendo. Já eu, estou escorada na janela, com o rosto apoiado na mão, brincando de tentar enxergar qualquer coisa na profunda escuridão que existe do lado de fora, e sem o menor pingo de sono.
Até fechei os olhos e tentei dormir, mas não deu nada certo. Só fiquei agoniada.
Não sei como as meninas conseguiram dormir tão fácil com o frio dentro desse ônibus, afinal, nenhuma de nós veio com roupas muito adequadas para frio.
Me pergunto como estarão meus pais. Fazem poucas horas que saí em viagem, mas sinto saudades. Tanto por ter passado praticamente uma semana inteira apenas na casa de Brian e apenas algumas horas a minha própria casa, e agora já saindo em viagem. Faz dias que não passo algum tempo com eles.
Quando voltar para casa darei um bom abraço em ambos, e passarei uma tarde toda com eles.
Busco meu colar dentro da minha camiseta e fico olhando para a pedra, a passando pelos meus dedos. Em meio ao escuro do ônibus, pequenos tons branco avermelhados parecem pulsar dentro do colar. Bom, acho que a granada e a turmalina negra ainda existem dentro deste cristal unidas ao feitiço de proteção da Amanda, gosto de pensar que sim.
Minha mente vagueia a outra coisa.
Já faz algum tempo que não vejo Ferdinand, e muito menos Amanda. Desde aquele último encontro e de tudo que aconteceu em sua investigação, não sei de mais nada sobre Amanda, tampouco sei como como ela está atualmente... Apenas as poucas coisas que Brian comenta.
Brian também não comenta muita coisa sobre eles, e nem sobre seu trabalho como assistente. Ele é bem discreto.
Apesar da minha curiosidade, fico com receio de perguntar qualquer coisa que seja sobre esse assunto, não sei se é da minha conta ou se devo perguntar. A única coisa que sei de fato, é que ela está traumatizada, e que Brian e Ferdinand a estão acompanhando.
Eu poderia perguntar isso para Tamires, mas para meu azar, ela está dormindo na poltrona no outro lado do corredor. E a ideia de levantar, acordar ela e só perguntar isso não me parece ser algo muito viável. Deixarei isso para outro momento.
O ônibus está bem calmo e relativamente frio. O único som é o do motor, uma ou outra tosse, e pessoas roncando. Solto meu colar sobre minha camiseta e pego meu celular, que deixei carregando sobre a minha perna. Olho para a tela, sabendo que está com carga máxima já a algum tempo. Eu deveria ter trago meus fones para me distrair com alguns vídeos, músicas, ou qualquer coisa que pudesse fazer esse tempo passar mais rápido.
Acho bom eu arranjar algo para me distrair. Ainda tem muita estrada pela frente.
Desço por último do ônibus, enquanto vejo as meninas indo para próximo do bagageiro do ônibus. Ergo os braços me espreguiçando o máximo que consigo para afastar todo o meu sono, aproveitando esse maravilhoso ar litorâneo junto ao leve vento frio tocando meu corpo.
Caminho junto das demais, pegando nossas malas e nos afastando do ônibus em passos curtos, todas ainda estão bem sonolentas após eu tê-las acordado alguns minutos antes de chegarmos na cidade.
Optamos em descer no centro da cidade, que apesar de já passar da meia noite, ainda tem algum movimento por aqui. Poderíamos ter decidido sair do ônibus antes, mas como não conhecemos nada, é melhor irmos ao local com maior movimento.
- Para onde agora? – Marina questiona entre um longo bocejo.
- Vamos nos sentar em algum lugar, comer algo, e tentar encontrar alguma pousada. – Letícia responde passando uma das mãos nos olhos.
Olho em volta procurando algum lugar, tendo minha atenção atraída a um bar com música e uma quantidade considerável de pessoas. – O que acham dali?
- É uma boa, se valer a pena já comemos algo antes de ir. – Letícia comenta.
Ao nosso passo sonolento, seguimos em direção ao bar. A música sertaneja universitária que toca está mais alta do que eu imaginava, mal entramos no bar e sinto cada batida atravessando meu corpo. Prefiro não ficar aqui muito mais tempo do que o necessário. Em outras horas, adoraria ficar aqui, mas hoje em especial, apenas quero uma cama para descansar.
Nos sentamos na mesa mais próxima da saída do bar. O lugar está cheio e muito barulhento, muitas pessoas estão aqui reunidas, bebendo, rindo, todas curtindo a noite na melhor maneira que conseguem. Já nós, somos quatro garotas exaustas.
Tamires está com um pequeno cardápio em mãos, e Letícia olha seu celular com total atenção, dando toques seguidos na tela – Pagarei algo para comermos na pousada... – Tamires comenta em uma altura suficiente para conseguirmos ouvi-la, sem desviar os olhos do cardápio – Como está indo para escolher um lugar?
- Não muito bem... – Letícia responde apoiando o rosto na mão – A internet daqui não está das melhores. Está demorando para aparecerem as opções.
- Desvantagens de pegarmos as coisas e virmos viajar sem planejamentos. – Marina responde com um riso contido, sacando o celular do bolso. – Vou ajudar a pesquisar lugares...
Já eu, me ocupo em olhar todas as nossas malas. Tamires se ergue e segue até o balcão, sendo atendida por uma mulher com uma expressão de sono. Me encosto na cadeira e cruzo meus braços, olhando melhor a nossa volta.
Além daqui, existem alguns outros lugares iluminados não muito próximos que acredito serem outros bares, além de alguns poucos grupos com muitas pessoas andando em aparentes conversas animadas. Já as muitas pessoas a nossa volta estão cantarolando ao som da música que toca nos auto falantes, fazem brindes, dão risadas escandalosas entre si e conversam em alto volume.
Um lugar bagunçado, mas que não chega nem perto de me incomodar.
- Saco! – Letícia reclama depois de alguns minutos, apoiando os cotovelos na mesa e encarando o celular. Percebo que ela falou alto a ponto que algumas pessoas voltaram seus olhos curiosos para a nossa mesa – Não carrega nada... Está tendo sorte Marina?
- Não muito... – Ela passa um dedo pela testa, nos virando a tela de seu celular – Até consegui entrar em um site, aparece uma ou outra opção mas não carrega direito. Não da para saber onde olhar. Endereços e preços então, pode esquecer...
- É, vamos ter uma bela dor de cabeça aqui. – Letícia esfrega a mão pelo rosto, tapando seus olhos por alguns segundos e deixando o celular sobre a mesa – Escutem, temos que perguntar onde fica o lugar mais próximo, e tentar conseguir um quarto para descansarmos.
- O lugar, ou os lugares né... – Digo atraindo sua atenção – Não podemos ficar em qualquer lugar, imagina pegar um quarto de um hotel ou pousada que seja muito caro para nós.
- Sim eu concordo com você Clara. – Ela balança a cabeça, olhando de seu celular para mim. Observo Marina que parece ainda não ter desistido – Mas o problema é que já está bem tarde para ficarmos andando por ai cheias de malas, não sabemos nada sobre essa cidade ou o quão perigosa ela é assim de noite, e todas estamos bem cansadas.
- É verdade, ainda tem isso. Temos um problema dos grandes em nossas mãos. – Digo abaixando meu olhar. Eu deveria ter aproveitado o tempo vago no ônibus para poder procurar qualquer coisa que fosse e evitar essa dor de cabeça. Merda, não pensei direito na hora.
- Estávamos muito empolgadas com a viagem e deixamos passar, acontece. – Marina comenta, guardando seu celular no bolso de seu short. Ela começa a batucar a ponta dos dedos no porta guardanapos no centro da mesa, olhando para nós duas – Vamos pensar, talvez o pessoal aqui saiba dizer não só um lugar, mas pelo menos um lugar barato para ficarmos.
- Acha que podem saber Marina? – Questiono pensativa.
- Acho que sim... – Letícia diz nos olhando – Porque parando para pensar, isso faz sentido. Talvez alguém que trabalhe aqui nesse bar saiba informar um lugar razoável para passarmos a noite.
- Ah, com licença garotas... – Ouço uma voz grave de repente, e todas nós olhamos para o dono dessa voz. Um homem na mesa ao lado da nossa está sentado de lado em sua cadeira, com seus olhos calmos virados para nós. – Desculpem minha intromissão, mas acabei escutando a conversa de vocês. Acredito que posso ajudá-las.
Eu e as garotas trocamos um olhar rápido, nos voltando ao homem logo em seguida. Apenas uma única troca de olhares, mas já é nítido para mim a desconfiança que tanto Letícia e Marina também tem. Percebo Tamires parada ao lado do balcão, porém seus olhos sérios se mantém atentos em nossa mesa – Nos ajudar...? – Questiono cerrando o olhar. – Como?
- Me permitem? – Ele faz um gesto com a mão, parecendo pedir permissão para se aproximar da nossa mesa. Letícia acaba concordando com a cabeça, e ele aproxima sua cadeira.
Ao mesmo instante em que esse desconhecido se aproxima, sinto meu colar pulsando em um calor repentino, me deixando tensa. O calor é fraco, e a luz dele não é forte, mas meu colar brilha.
Aproveito essa oportunidade para observá-lo melhor. Seu rosto tem um formato mais quadrado, possui olhos possuem tons âmbar bem fortes, praticamente dourados, unidos a uma calma completa. Ele possui cabelos lisos não muito longos em tom chocolate com algumas mechas brancas, e uma barba bem feita desenhando seu rosto somado a mais alguns fios brancos.
Ele possui um porte físico bem forte, e veste roupas lisas e discretas não muito justas ao corpo. Passo os olhos rapidamente por mãos e braços, ele não tem anéis, alianças ou relógio. É um homem que já passou dos trinta anos, mas apesar dos vários fios brancos tanto no cabelo quanto pela barba, afirmo com certeza que ele não chega nem perto dos quarenta anos.
- Pelo que vejo... Vocês não são daqui. – Ele começa, olhando a quantidade de malas embaixo da mesa rapidamente, voltando seu olhar para nós, parando em Letícia.
- É... – respondo – Somos de São Paulo.
- Ah, é mesmo? – Ele diz em um sorriso – Também sou de São Paulo. Vieram em férias?
- Não exatamente... – Letícia diz, um pouco contida – Viemos passar só um fim de semana.
- Ah sim, entendo. – Ele balança a cabeça em entendimento, abaixando o olhar por um momento – Espero que possam aproveitar a cidade e as praias... Como eu havia dito, prestei atenção na conversa de vocês sobre precisarem de um lugar para passarem essa noite.
- E qual seria sua ideia, senhor... ? – Marina diz, erguendo uma sobrancelha.
- Gabriel. – Ele diz calmamente com um pequeno sorriso. – Não precisa de "senhor".
- Sou Clara... Estas são Letícia, Marina e Tamires. – Digo um pouco relutante.
- Muito prazer conhecê-las... – Ele comenta amigável – Nesse horário, será difícil que consigam uma pousada ou um hotel em conta aqui na cidade, além de que não é muito seguro que fiquem andando a essa hora.
- Isso já sabemos... – Marina comenta erguendo as sobrancelhas – Estávamos falando disso.
- Exato, aqui não encontrarão, mas onde estou instalado, existe um lugar para vocês passarem a noite com algum conforto. – Ele junta as mãos, enquanto Tamires volta a se aproximar da mesa com um saco de papel largo em mãos, porém permanecendo de pé.
- Espera... – Letícia diz, passando os olhos pela mesa, e voltando a encará-lo – Está propondo que fiquemos na mesma casa que você? É isso?
- Não, não, nada disso. Não na mesma casa. – Ele ergue uma das mãos, olhando para Letícia por alguns longos segundos. Acho até que está admirando minha amiga – Onde estou é uma casa geminada, ambas da minha família. Uma das casas é onde estou, e a casa ao lado que deixamos para alugar está vaga, entendem onde quero chegar?
Não seria a mesma casa que ele está, seria uma ao lado.
Não confio nele, até por ser um completo desconhecido. Sem contar o adicional de que meu colar ainda está brilhando, agora com um pouco mais de força que antes, mas acho que isso é devido a minha cautela quanto a esse homem. Já sei a muito tempo como meu colar funciona, reage a ameaças e também quando me sinto ameaçada.
- O que acham? – Tamires questiona, olhando para ele de soslaio, e então para nós.
- Admito que não temos tantas opções assim. – Letícia diz pensativa.
- Gostaria apenas de dizer que eu não as incomodaria em nenhum momento. – Gabriel diz, atraindo nossa atenção.
- Onde fica essa tal casa? – Tamires o questiona sem rodeios.
- A alguns minutos daqui do centro, a duas quadras da praia. – Ele diz nos observando.
Olho para cada uma das minhas amigas. – Não tenho certeza... Vocês querem ir? – Marina diz nos olhando.
- É uma opção viável. – Letícia diz pensativa, e ela é novamente alvo dos olhares deste homem. Gabriel parece estar dedicando uma atenção especial a ela – É isso, ou nos arriscarmos a andar na cidade que mal conhecemos atrás de um lugar.
- Sem falar que estamos sem sinal de internet para nos localizarmos... Andar assim não é uma ideia muito boa – Marina vira seu olhar para mim – O que acha Clara?
A princípio, diria que Marina apenas quer saber minha opinião, mas seu olhar preocupado me aparenta ser algo maior. Ela sabe melhor que todas aqui sobre as runas, e também como estive treinando com Brian por todos esses dias. Como minha melhor amiga, ela já sabe que estou muito melhor com cada uma das runas, mas ela também sabe as fraquezas que tenho, e um corpo cansado é uma das minhas maiores fraquezas.
Querendo ou não, atualmente sou a mais forte entre todas aqui por possuir uma certa destreza com as runas. Então se acontecer qualquer coisa que represente algum risco a nós, eu manterei a segurança de todas.
- Bem meninas, por mim... Acho que podemos aceitar a oferta dele. – Digo, o olhando de canto por alguns segundos – Caso Gabriel tente aprontar alguma coisa, darei um jeito nele.
Ele da uma risada descontraída com minha ameaça, se encostando na cadeira – Creio que isso não será necessário. Definitivamente, não estou planejando aprontar nada com nenhuma de vocês.
- Acho bom... – Digo finalmente, recebendo olhares de Letícia e Tamires.
- Quando pode nos levar Gabriel? – Tamires questiona – Digo... Bem, você sabe... A casa é sua, nós chegamos agora, precisando descansar...
Ele sorri – Sim, sei bem como é vir de São Paulo para cá, a viagem é longa. Imagino que estejam cansadas. – Ele olha para cada uma de nós – Presumo que neste momento, descansar seja uma vontade de todas. No momento que desejarem eu as levo garotas.
- Poderia ser agora? – Marina pede manhosa. – Acho que precisamos de uma cama.
- Claro, sem o menor problema. – Ele sorri se levantando – Como vim de carro, darei uma carona e deixarei a chave da casa com vocês.
Gabriel desliga seu Audi Q7, e logo descemos devagar de seu imenso e confortável SUV de tons prata. Tamanho conforto que quase me fez dormir no pequeno caminho, mas tanto luxo unida a alta tecnologia dentro de apenas um carro me manteve acordada, não sabia se me atentava no computador de bordo ocupando boa parte do painel, ou para as telas atrás dos bancos do condutor e passageiro...
Ou claro, na minha necessidade de ficar alerta em relação a esse homem.
O vento litorâneo toca meu corpo e meu cabelo voa de leve assim que estou fora do carro, o agradável cheiro do mar me traz lembranças de outras vezes que vim a praia, e o som das ondas quebrando próximas daqui inunda meus ouvidos, trazendo um forte relaxamento ao meu corpo.
Realmente a tal casa que Gabriel falou é bem próxima do local onde estávamos. Levamos pouco mais de cinco minutos e estamos estacionando em frente a uma casa de tons amarelados bem iluminada por um poste do outro lado da rua.
Correndo os olhos ao redor, reparo em como a toda a rua é bem iluminada e repleta de sobrados aparentemente bonitos, escondidos atrás de altos muros. A rua por inteira é feita com aqueles blocos paralelepípedos antigos cheios de areia por entre os vãos, além de calçadas e cobertas por um gramado perfeitamente alinhado, apenas se tornando concreto ou piso de pedra nas entradas e garagens das casas.
Além disso, Gabriel não mentiu quando disse que fica a duas quadras da praia. Daqui consigo ver bem o início da faixa de areia, e na verdade isso explica bem o som das ondas parecerem tão próximos de onde estamos.
A única coisa que me incomodou é que, vez ou outra durante o caminho, mesmo com a bagunça que as meninas faziam ou com a óbvia atenção que dedicava a Letícia, ele pareceu estar olhando diretamente para mim. Porém, seu olhar não parecia conter a malícia de um homem que está louco atrás de sexo, mas sim parecia algo muito mais sério... Estranho...
- Certo garotas... – Ele começa a falar ao momento em que abre o porta-malas e nos dando espaço, sacando um discreto chaveiro do bolso da calça jeans branca – Essa casa da esquerda é onde vocês ficarão, só irei pegar as chaves dela aqui na outra casa. Não demoro.
- Tudo bem, nós te esperamos aqui. – Digo, mas é bem óbvio que não iremos a muitos lugares além do outro lado da rua.
Ele assente nos olhando e sem demora se vira para o portão, enquanto que nós nos ocupamos de pegar nossas coisas. Tamires está na frente tomando conta da tarefa de pegar cada uma das nossas malas e vai nos entregando, enquanto que eu permaneço mais distante, olhando na direção que Gabriel foi, vendo que uma luz acabou de ser acesa na entrada.
- O que acham? Será que da para confiar nele? – Letícia questiona.
- Não sei... – Marina responde, logo dando de ombros quando pega sua bagagem – Acho que já demos um voto de confiança a muito tempo, afinal estamos aqui, não é?
- Esse Gabriel parece ser um cara legal... – Tamires constata deixando a última das nossas malas na calçada, retornando ao bagageiro e se sentando – Vamos torcer para não ser só aparência.
- Uma coisa é certa... – Marina diz em um sorriso de canto olhando para Letícia – Foram poucas vezes que ele tirou os olhos de você.
- O que? – Ela diz olhando de um lado ao outro.
- Isso é verdade. Gabriel esteve te olhando a todo momento. – Tamires sorri.
- Não posso discordar disso. Estava na cara que a atenção dele era toda sua. – Confirmo e assisto como Letícia vai de sua cor natural ao vermelho que lembra um tomate.
Apesar de estar um verdadeiro pimentão, Letícia começa a rir e todas nós rimos junto pela situação. Percebo a silhueta do homem voltando, e faço um sinal com a mão para pararem de rir para não levantarmos nenhum sinal de estranheza.
- Aqui está a chave da casa. – Ele diz, entregando a chave para Marina que é quem está mais próxima dele, e seu olhar volta para nós. – Bem garotas, sintam-se a vontade. Se precisarem comprar qualquer coisa, tem uma mercearia 24 horas subindo a rua, e também tem um restaurante noturno seguindo em direção à praia, virando a direita. Acho até que vocês conseguem ouvir a música.
- Tudo bem, muito obrigado Gabriel. – Marina diz, seguindo diretamente para a porta, procurando pela chave.
Tamires se levanta e, antes de fechar o porta malas, Gabriel aciona um botão na chave e a tampa desce automaticamente. Todas olhamos isso um pouco perplexas... Quero ter um carro desses algum dia.
Permaneço onde estou e quando saio do meu transe, pego minha bagagem e volto minha atenção ao homem – E quanto a você Gabriel? – Digo, atraindo seu olhar a mim – O que fará pelo restante da noite?
A pergunta é meio sem sentido, mas não consigo só ficar tranquila com tanta bondade gratuita vinda de um total desconhecido. Bondade existe, mas como minha vó costumava dizer quando viva... Quando a esmola é demais, o santo desconfia.
- Voltarei ao bar, comerei mais algo e fecharei a conta. – Ele diz, passando uma mão pela barba e olhando para o céu noturno, porém logos seus olhos voltam a mim. Ou melhor, para algo que carrego comigo. – Colar interessante garota... Onde conseguiu?
Fico surpresa com o quão repentina e direta essa pergunta foi. Acho que ninguém nunca perguntou como consegui meu colar, mas ele foi direto ao ponto. – Ah, isso...? Foi um presente.
- Entendo... – Ele assente com um sorriso, mas seu olhar claramente interessado se mantém no meu colar – Nunca vi um desses, achei realmente muito bonito.
- Bem... Obrigada. – Digo sem jeito, olhando de um lado ao outro enquanto seguro a pedra.
- Desculpe, estou tomando seu tempo. Deve estar cheia de vontade para descansar e estou te segurando aqui – Ele diz com um sorriso, retornando para o carro, voltando a me olhar antes de entrar. – Cuide-se, e tenha uma boa noite.
Ele acena, e logo o carro é ligado. Fico parada por alguns momentos, assistindo-o manobrando e partindo pela rua. Acabo dando um suspiro e sigo para a casa, que está com o portão entreaberto para mim e já consigo ouvir a animação das minhas amigas dentro da casa.
Seja como for, meus planos agora basicamente envolvem me deixar contaminar toda por essa animação das minhas amigas, e cair na cama 5 minutos depois.
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