Capítulo 19 - Reencontro com Amanda
9260 Palavras
Não sei quanto tempo estamos no carro, mas ainda é bem cedo. As conversas entre Brian e Jeniffer duraram por bastante tempo, e tudo que fiz foi ficar quieta olhando meus cadernos, tentando estudar alguma coisa. Pelo menos essa foi minha desculpa para conseguir prestar atenção nos dois e na proximidade deles sem ficar muito na cara.
Por mais que eu tenha olhado, não sei dizer o quão próximo esses dois são. Mas em contraparte, percebi que os sorrisos de Brian são bem mais frequentes com ela do que comigo, arrisco dizer que são até mais sinceros que cada um dos sorrisos que teve comigo.
Isso me incomoda, mas eu não posso reclamar sobre isso por N motivos.
Depois de um certo ponto, eles se calaram e o comum silêncio que habita dentro desse carro voltou a se instalar. Eu até mesmo já preparei um pen drive cheio das mais diversas músicas para quebrar os momentos como esse, e deixei a postos na minha mochila.
Talvez até mesmo fosse uma surpresa a Brian, gostaria de ver sua reação. Mas como fazer isso se Jeniffer também está aqui?
Dou um suspiro e olho meu celular, encarando as várias mensagens que Marina deixou para mim. As mensagens variam entre ela querer saber se estou bem, se dormi demais essa manhã, e onde posso ter me enfiado tão cedo que não fui à aula de hoje.
Dou um sorriso de tamanha preocupação que minha melhor amiga tem quando se trata de mim, ela vive pegando no meu pé em vários momentos, mas sei que sua preocupação é verídica.
Guardo meu celular e olho pela janela, reconhecendo o lugar onde estamos. Estamos próximos da loja de Amanda, tanto que me ajeito no banco, daqui a pouco teremos que andar. É uma pena, eu estava cogitando cochilar um pouco.
Meu guardião para no mesmo estacionamento que estivemos da última vez, e logo temos que sair do carro. Ele conversa algumas coisas com o atendente, enquanto eu alongo os braços acima da cabeça afastando a preguiça. Jeniffer para ao meu lado dando um bocejo.
- Talvez voltemos rápido... – Ouço a voz de Brian, e o vejo entregando a chave para o homem de uma maneira bem relutante.
O ciúme que ele tem com essa Mercedes chega a ser hilário, isso pra não dizer que o que Brian sente é medo de deixar seu carro sozinho com um estranho. Algum dia tenho que perguntar por qual motivo ele é assim.
Ele se vira para nós, caminhando dando um suspiro pesaroso – Vamos?
- Agora. – Jeniffer comenta em um sorriso, já eu apenas assinto balançando a cabeça.
Deixo os dois seguindo em frente, e caminho um pouco atrás, encolhendo um pouco os ombros. Por um momento volto a olhar os dois, que caminham lado a lado e parecem ignorar minha presença. Me pergunto por que Jeniffer me arrastou para isso se estou sendo praticamente deixada de lado.
- Qual a chance de encontrarmos Amanda na própria loja? – Jeniffer questiona repentinamente, me arrancando da minha bolha de pensamentos.
- Baixa... – Ouço o homem a minha frente respondendo de imediato. – Iremos pelo menos ver se existe algum funcionário que tenha notícias. Caso não tenhamos notícias, iremos improvisar.
- É o jeito, se tiverem uma informação de onde ela pode ter ido, podemos ter mais chances de ir ao lugar certo... – Jeniffer comenta em um tom pensativo – O problema que já fazem dias que ela sumiu.
- Me incomoda Ferdinand ter se preocupado depois de dias. – Ele responde.
- São irmãos Brian. – Ela da de ombros – Podem se amar e tudo mais, mas tem momentos que um não suporta olhar na cara do outro. Fora que são adultos e cada um tem a própria vida para cuidar, não podem estar se preocupando com a vida um do outro sempre.
- Argumento válido. – Ouço uma risada dele – E estamos esquecendo que ela é uma bruxa que sabe se virar muito bem.
- Tem esse detalhe também. Talvez ele tenha ficado tranquilo por saber do que a Amanda é capaz, e ignorou a falta de notícias dela no começo, ou brigaram por algum motivo bobo... Agora é só juntar os pontos, uma irmã mais velha que sabe se cuidar, talvez tenham se desentendido, e agora teve a preocupação. É possível. – Ela continua, e não deixo de dar crédito ao que Jeniffer diz. Se eu tivesse um irmão ou irmã, seja mais velho ou não, eu iria me preocupar independente de estar irritada.
- Seja lá o que tenha acontecido, é por isso que estamos aqui. – Brian diz, entrando no estabelecimento, e Jeniffer o segue. Já eu, prefiro permanecer do lado de fora, apenas olhando a porta da loja se fechando a minha frente.
Sinto um pouco de fome mesmo já tendo tomado café da manhã, e por isso passo os olhos pelo local em busca de alguma padaria, uma lanchonete ou até um carro de lanches. Um salgado que seja vai ajudar a conter a fome.
Caminho pela rua, encontrando uma padaria de esquina, que logo entro. Passo os olhos pela vitrine, optando por um grande rissole de quatro queijos que faz minha boca salivar. Um salgado desses em plena manhã não é a melhor escolha, mas não ligo.
Pago pelo meu salgado e me desloco novamente à loja em passos lentos, saboreando o maravilhoso salgado a cada mordida que causa uma maravilhosa explosão de sabores. Não sei se faço isso por estar apenas com fome, ou também incomodada, mas não ligo.
Paro em frente à loja e aguardo, pensando se não deveria ter pego minha mochila. Aqueles dois sequer estão notando minha presença, então podem muito bem ter ido embora sem nem perceber que fui deixada para trás. Não ligo muito em ser deixada para trás por aqueles dois, o que realmente me incomoda é que deixei minha mochila no banco, e é lá que está a maioria das minhas coisas.
Termino de comer e uso uma parte limpa e sem óleo do papel para limpar a boca. Ouço a porta ao meu lado sendo aberta e Jeniffer sai com um papel em mãos, e Brian sai logo em seguida.
- E ai, o que descobriram? – Digo em um tom pouco interessado.
A mulher ergue os olhos para mim, em uma expressão surpresa – mas você não estava... Esquece... – Ela diz balançando uma mão – Os funcionários não sabem da Amanda, mas nos passaram o endereço da casa dela.
- Podemos ir? – Brian é direto, seguindo apressado na frente.
- Claro senhor mandão. – Olho para Jeniffer, que apenas balança a cabeça negativamente, revirando os olhos, mas logo um sorriso divertido surge em seu rosto.
Olho para ambos algumas vezes, voltando a andar. Dessa vez a mulher se mantém seguindo ao meu lado. – Ele parece irritado.
- Não só parece, ele está. – Ela me confirma sorrindo – Os funcionários não acreditaram muito que Brian conhece a Amanda e não queria falar nada... Ele teve que fazer uma cena para convencer a atendente a passar o endereço, ser convincente que está preocupado mesmo tendo vindo a pedido do Ferdinand, só faltou ele ficar de joelhos implorando... E bem, ele se irritou ainda mais quando comecei a rir.
Dou um meio sorriso com o que ela diz. – Queria ter visto isso.
- Aliás, onde você estava? – Ela questiona me observando.
- Eu estava com fome. – Digo simplesmente, a fazendo erguer as sobrancelhas. – Fui procurar algo para comer e depois fiquei esperando vocês voltarem.
Ela assente e não diz mais nada. Seus olhos retornam ao papel em suas mãos retornando a uma expressão pensativa. Penso até em perguntar o que está imaginando, mas deixo isso para lá. Assim nos aproximamos novamente do estacionamento, entramos no carro e seguimos rumo o endereço indicado.
Chegamos à rua indicada pelo GPS. O lugar parece deserto de tão quieto, mas é uma rua residencial bem arborizada. Os últimos estabelecimentos comerciais que vi aqui perto foram uma farmácia e um mercado, e estão a pelo menos três ruas de distância.
Saímos do carro, e os nossos passos quebram um pouco do silêncio. Olho em volta esperando encontrar qualquer pessoa nos olhando, nem que seja em estranheza, mas nada.
- É aqui... – Jeniffer comenta, parando em frente a um portão em tons vermelhos.
- Vamos do modo convencional? – Brian diz em um tom calmo, levando as mãos aos bolsos do seu terno, olhando para nós.
- Modo convencional, por favor. – Jeniffer diz tomando a frente, olhando por alguns segundos, encontrando uma campainha e tocando algumas vezes. – Não precisamos de alguém berrando em um portão que nem sabemos se é o certo.
Brian bufa e se encosta no carro, cruzando seus braços. Permaneço o olhando alguns segundos, refletindo quantas coisas eu gostaria de conversar com ele, as dúvidas que tenho sobre as runas que mantenho comigo, a aparição da entidade recentemente e o estado que a criatura estava no pesadelo que seria uma ótima novidade, ou simplesmente conversarmos sobre qualquer coisa... Porém desvio meu olhar, e me concentro no que viemos fazer aqui.
Temos algo mais importante para nos preocupar por aqui.
- Nada? – Questiono, me aproximando do portão.
- Não... – Jeniffer comenta, ficando na ponta dos pés tentando inutilmente tentar olhar por cima do portão. Ela logo desiste, apertando por mais uma vez a campainha, voltando sua atenção para mim. – Se ela não estiver aqui, temos que pensar em outra coisa.
Abaixo o olhar pensando um pouco. – Na loja não tem notícias, e se não tivermos sucesso aqui... Talvez seja coerente irmos a algum hospital perguntar sobre ela.
- Tem razão, é uma alternativa. – Ela diz, olhando de mim ao portão. – Mas antes de acabarmos recorrendo a um método desses, é bom torcermos que ela esteja ai dentro dormindo.
Cerro um pouco meu olhar. Uma dúvida me surge – Você sabe o que está acontecendo Jeniffer?
- Pouca coisa. Sei que a irmã de um colega de trabalho saiu e faz dias que não da notícias, e me ofereci para ajudar. – Ela diz, levando as mãos a cintura, olhando fixamente ao portão.
Sua resposta praticamente me da a entender que ela não sabe com o que Amanda e Ferdinand estão envolvidos, e também o que pode ser o motivo de ela ter desaparecido.
Obviamente ela já sabe que Amanda é uma bruxa, e também o que Ferdinand e Brian são além de psicólogo e assistente. Trabalha com eles a muito tempo provavelmente. Ela sabe de muitas coisas a mais do que eu, isso é certo, mas pelo que entendo agora, Jeniffer não sabe muito da situação atual.
Me questiono se deveria abrir o jogo e falar isso a mulher que se ofereceu a ajudar, que tudo pode ter uma forte relação ao abismo e a um ser que, pelas palavras de Tamires, é um monstro em todos os aspectos.
Reflito muito, mas decido por manter meu silencio. Se alguém deve falar algo, acredito que deveria ser Brian... Isso se já não tiver dito mais cedo.
- Estou quase cedendo à ideia de começar a berrar... – Jeniffer suspira frustrada, passando seu olhar por mim e Brian. – Alguém aqui tem ideias?
- Posso entrar para investigar mais. – Brian diz olhando fixamente para o portão. – Parece mais viável que forçar a fechadura.
- Não acho ser uma boa ideia. – Digo erguendo uma sobrancelha.
- Concordo com a Clara. – Jeniffer comenta olhando para nós. – Isso poderia piorar as coisas.
Meu guardião desencosta do carro – O problema é que não temos muitas opções Jenny.
- Mas ainda assim, invadir a casa dela é meio extremo, não acha? – Ela rebate.
Balanço a cabeça negativamente, olhando em volta tentando pensar em algo. Algumas pessoas passam por nós, indo e vindo pela rua. Alguns em um grupos, duplas ou trios, e uma ou outra pessoa passando apressada com os olhos focados em celulares ou perdidos em pensamento, e nenhuma delas deu qualquer atenção a nós.
Levo as mãos as costas e caminho de um lado ao outro com meus olhos pelo chão, tentando pensar em alguma alternativa para nossa situação. Brian e Jeniffer conversam sobre algo, enquanto minha atenção é atraída para algo. Virando a esquina da mesma calçada que nós, vejo uma mulher familiar se aproximando em passos lentos.
- Amanda? – O nome dela escapa da minha boca, quase como um sussurro.
Ela está carregando sacolas de mercado, mas mantendo bem próximas ao corpo. Sua expressão entrega que está abatida e cansada. Seu olhar está caído e fraco, cheia de olheiras que mostram que Amanda não vem dormindo muito bem, e ela parece estar amedrontada.
Vagarosamente a mulher ergue seu olhar, focando em nós – Vocês...?
- Isso foi bem fácil. – Ouço a voz tranquila de Brian, se aproximando dela. – Você deixou Ferdinand bem preocupado.
Seu olhar fica no meu guardião, mas ela está hesitante. Abre a boca para falar, mas logo desiste. Eu não tenho ideia do que seu olhar ou sua expressão querem dizer. São tantas coisas que eu não consigo decifrar. – Eu... Me desculpe não dar notícias... – Ela sussurra e volta a abaixar seu olhar, e sua expressão se esvai.
- Que isso, não precisa se desculpar comigo. – Brian se aproxima, passando um braço em volta de seu ombro, e Amanda parece se encolher.
Ela assente balançando a cabeça. – Demorei? Eu fui ao mercado comprar algumas coisas para fazer o café da manhã e o almoço de hoje.
- Chegamos agora a pouco. – Jeniffer comenta. Vejo em seu olhar que ela também está estranhando alguma coisa.
- Demorei pelo jeito, estava fila sabe... – Ela diz com um sorriso. – Querem entrar para comerem algo, ou tomarem um café?
Brian da uma risada – Irei aceitar, não comi nada hoje cedo. E vocês garotas?
- Acho que aceito um café... – Jeniffer diz em um meio sorriso. Apenas concordo.
- Vamos, preparo algo rapidinho. – Amanda sorri, sacando as chaves do bolso de seu shorts, destrancando o portão, logo entrando.
Fico imóvel por alguns segundos, tentando reconhecer a mulher a minha frente. Eu a vi poucas vezes, mas ela está estranha, muito diferente das últimas vezes que a vi. A Amanda que está a minha frente agora é completamente diferente da pessoa que conheço.
Não costumo confiar no meu instinto, mas agora ele está gritando que alguma coisa parece estar muito errada.
Amanda nos esconde algo.
Me vejo no sofá, com as mãos juntas em frente ao corpo. A cada segundo, estranho ainda mais cada atitude de Amanda, e o pior é que Brian e até mesmo Jeniffer não parecem desconfiar de nada em relação a ela.
Passo os olhos pelo ambiente, a televisão estava ligada em alto volume quando chegamos, mas o detalhe é que ninguém mora nessa casa além dela. Além disso, sua bolsa estava largada sobre o sofá com várias coisas espalhadas, dentre elas uma carteira, maquiagens, um livro, uma pequena agenda e canetas. Ela apenas jogou tudo dentro da bolsa e deixou próxima a televisão.
Ela serviu café a todos, e se sentou no braço do sofá, mantendo uma conversa animada com todos, mas os sorrisos que ela da até agora não me passam firmeza ou verdade.
A mulher que vi algumas vezes me demonstrou força e muita energia, o vigor e confiança que ela demonstrou pareciam não ter limites. Com certeza uma mulher que chama a atenção apenas com sua presença. Porém, quem eu vi momentos atrás não era Amanda.
- Sabem, eu odeio ter que fazer as coisas muito tarde. – Ouço Amanda dizendo de repente em mais um sorriso. – Amo acordar cedo para fazer as coisas da casa.
- Não sei que disposição é essa... – Jeniffer comenta, apoiando o rosto na mão.
- É ótimo, o corpo se sente muito bem. É revigorante e atrai a disposição para si. – Amanda sorri mais, se acomodando, bebericando um pouco de seu café. – Tão bom... – Suspira sozinha.
- Tudo que sinto por acordar muito cedo é sono... Se bem que eu durmo pouco. – Brian zomba e eles dão risadas. Observo como ele está se servindo de uma grande porção de bolachas amanteigadas que a bruxa preparou caprichosamente para ele.
- É questão de costume. – Ela sorri olhando para cada um, passando um dedo pela lateral do rosto, em uma expressão pensativa – Eu acordo sempre cedo para ir trabalhar, e durante o entardecer eu costumo sair para correr pelo menos uma hora.
- Não seria melhor correr assim que acorda? – Jeniffer questiona curiosa, pendendo seu corpo para frente, olhando fixa para Amanda.
- Pensei sobre isso, mas ficava com o tempo muito apertado para mim. – Amanda sorri outra vez. – Então, eu acabei optando por exercícios ao entardecer, e a escolha foi ótima. O clima do fim de tarte é ótimo para treinar, e sempre é muito calmo por não haverem muitas pessoas, e o melhor, não tenho compromissos.
- Mas você está tendo tempo para corridas? – Questiono a olhando.
- É, essa semana não tive muito tempo... Fiquei um pouco ocupada. – Ela diz sem jeito. – Tenho que me reorganizar para não perder o pique.
- Esteve sem tempo.... Teve muito trabalho na loja? – Questiono novamente, agora recebendo os olhares confusos de Brian e Jeniffer. Não parecem ter entendido o que estou tentando.
- Não, eu tive que ficar ausente do trabalho. Tive muitas coisas para resolver que acabou enchendo muito minha cabeça. Não tive tempo de pensar em nada. – Ela diz rindo, mas tudo que estou vendo aqui é como ela está tentando se esquivar.
Amanda já deve saber qual assunto estou tentando abordar, mas ela está fugindo disso com esse aparente bom humor, que a cada segundo parece mais e mais falso.
Realmente, alguma coisa nela está muito errada. Aconteceu algo e ela está tentando esconder.
- Mas mesmo assim, não teve tempo de avisar Ferdinand que estava tudo bem? – Insisto nisso, querendo sondar ela o máximo que eu puder. – Foram dias que você não deu nenhuma notícia, não teve tempo uma única vez? Nem antes de dormir? Ele ficou preocupado.
- Bem... Eu... – Sua voz falha por um momento – Eu não sabia... Não me lembrei de avisar.
- Não? – Digo de imediato. – Você disse que iria atrás de algo, não é?
Amanda não me responde, mas ela recuou um pouco ficou nitidamente tensa com o que acabei de falar. Ela olha de um lado ao outro, mas não me olha nos olhos.
Franzo a testa e cerro meu olhar – Acho que precisamos ir agora até o Ferdinand... Você deve falar com ele, avisar que está bem.
Olho para os dois que vieram comigo, eles não se pronunciam, seus olhares confusos apenas me confrontam. Se nenhum deles vai fazer algo, pois bem, então eu irei fazer.
Afinal, Amanda decidiu por tentar investigar algo relacionado ao Abismo, a mesma coisa que também tem relação comigo e está fazendo uma criatura me atormentar.
- Eu não... – Ela começa, erguendo as mãos em negativa. Me levanto do sofá e caminho até ficar de frente a mulher a olhando. – Eu não quero ir, não é preciso Clara... Vou ligar agora para meu irmão, avisar ele que estou bem e ...
- Não adianta discutir Amanda. Nós vamos te levar até seu irmão e ponto! – Agora falo com mais firmeza do que antes. Percebo como ela estremeceu com meu tom de voz, novamente ela parece amedrontada. Seus olhos vão ao chão sem qualquer força.
- Espera Clara. – Brian diz se levantando de uma vez. – Não é preciso falar assim.
- É obvio que é preciso, por acaso não percebem?! – exclamo o encarando, voltando a olhar para Amanda que está com seu olhar baixo, incapaz de nos olhar. – Ela não está normal. Aconteceu algo muito grande que ela não quer nos contar!
Brian respira fundo mantendo seu olhar em mim, porém logo vão a bruxa – Acha que não notei Clara? Vi as olheiras, vi como está abatida, vi quando estremeceu quando me aproximei... Conhecemos a Amanda, e sei que ela não é assim, percebi que ela não está bem na hora que a vi... Mas em nenhum momento pensei em confrontá-la, mas sim confortá-la.
Ninguém mais se pronuncia. O som da televisão impede que a quietude recaia na sala, mas o silêncio real está presente entre nós. Eles já haviam entendido tudo desde o começo, e pelo semblante de Brian e Jeniffer, ambos estavam tentando tornar as coisas mais fáceis para Amanda por meio de uma conversa descontraída.
Por um segundo, me acho uma idiota por ter forçado todas aquelas perguntas.
- Ela nos esconde alguma coisa... – Minha voz sai fraca. Me abaixo em frente da bruxa, segurando suas mãos, o que atrai seu olhar a mim. – Precisamos te levar até Ferdinand...
- Clara... – Brian tenta falar, porém a própria Amanda o interrompe erguendo de leve uma mão.
- Ela está certa Brian... – Sua voz soa fraca e seus olhos desviam de mim, e ela encara suas mãos. Amanda está tremendo. Ela da um suspiro profundo – Agradeço o que você e Jennifer estavam tentando para me acalmar... Mas preciso mesmo falar com meu irmão, não posso fugir disso...
- Tem certeza? – Meu guardião para ao seu lado, pousando a mão em seu ombro em um semblante compreensivo.
- Sim, por favor... – Amanda o olha com um sorriso fraco – Me levem até ele... Não sei se conseguirei sozinha... Não tenho coragem para isso...
Brian a envolve em um abraço de canto, a guiando para fora da casa. Olho para Jeniffer, ela acaba de desligar a televisão e logo pegando a bolsa que a bruxa deixou largada na frente da televisão.
Jeniffer caminha até a porta – É bom levarmos as coisas dela junto. Todos os documentos devem estar aqui. – Ela diz me olhando em um tom preocupado.
- Concordo, é uma boa ideia. – Digo pegando a chave e saindo. Ao contrário do que imaginei, Jeniffer não se afastou de mim quando saiu. Ela permaneceu próxima.
- Já havíamos reparado... Mas como percebeu? – Ela questiona em baixo tom.
Nego com a cabeça enquanto tranco a porta – Eu não sei... Pressenti que havia algo errado com ela, e prestei atenção nos detalhes. Não parecia ser a Amanda que conheci.
- Entendo... – Ela diz, olhando em direção ao portão. Termino de trancar as portas, conferindo se está tudo fechado, logo seguindo junto dela – De começo estranhei como Amanda estava, ela estava diferente... E a forma como ela se comportou só confirmou tudo...
- Também desconfiei disso. Ela estava abatida quando chegou, depois pareceu bem... – A visão de como Amanda estava abatida volta a minha mente – Bem até demais...
Caminhamos para fora da casa. Brian já ligou o carro e nos aguarda de pé ao lado da porta do condutor. Me disponho a trancar os portões também – Espero que Ferdinand consiga ajudar e descobrir algo.
- Ele precisa descobrir. – Digo firme. Tranco tudo e deixo o molho dentro da bolsa – É a irmã dele. Não acho que o Ferdinand vai deixar passar assim tão fácil.
- Está certa... – Ela se vira em direção do carro – Precisamos ir Clara.
Concordo, indo para o carro e me acomodando no banco. Levo meus olhos a Amanda, mas agora não consigo dizer o que ela está pensando, ou o que está olhando pela janela. Ela apenas se encostou e assim ficou.
Não deixo de ficar cada vez mais preocupada com o que pode ter acontecido. O que aconteceu nesses dias? O que Amanda pode estar escondendo de nós?
Torço para que Ferdinand consiga ajudar a nos achar uma solução.
Acabamos de chegar ao escritório. Já é quase meio dia, espero que consigamos encontrar Ferdinand antes de ter saído para a hora do almoço.
Olho para Amanda, que permaneceu quieta durante todo o tempo. Nenhum de nós tentou conversar com ela, por mais que seja uma vontade mútua. Mas acredito que não seria uma boa ideia, vendo como ela está.
O que está ao nosso alcance, estamos fazendo.
Saímos do carro e Brian a guiamos para o prédio. Jeniffer seguiu na frente para avisar sobre nossa chegada, e quando entramos, ela já não está no saguão e nem próxima aos elevadores.
Seguimos aos mesmos e aguardamos o próximo elevador. Olho para Amanda, que está encolhida nos braços do meu guardião, e a cada segundo aqui ela parece mais tensa. Arrisco dizer que ela tem algum medo de estar aqui.
Brian parece preocupado, e algo em seu olhar entrega que ele tem algo a dizer, mas isso está sendo reprimido. Seja o que for, espero que diga. Ignoro isso assim que o elevador chega e entramos, subindo vagarosamente até o andar.
Algumas pessoas nos acompanham no elevador, olhando para Amanda com desdém, parecendo que a tratam como uma drogada ou algo assim, e isso me incomoda.
Assim que a porta abre, vemos Jeniffer sentada em uma das cadeiras com as mãos juntas em frente ao corpo. Ela nos olha e se levanta, vindo até nós em passos apressados – Eu avisei Ferdinand, mas ele está ocupado em uma consulta.
- Tem ideia de quanto tempo ele está lá? – Brian questiona, ajudando Amanda a se sentar.
- Parece que não fazem nem dez minutos... – Ela comenta, e tudo o que acontece é o homem acabar suspirando impaciente – Não adianta ficar assim, ele está trabalhando.
- Sei disso... – Ele diz olhando para o lado, levando as mãos a cintura – Da um nervosismo ter que esperar, mas por enquanto é o melhor que temos a fazer.
- Se ele estiver ocupado... Eu volto outra hora, o que acham? – Amanda comenta com um sorriso forçado, atraindo a nossa atenção.
Nego balançando a cabeça – Será melhor que espere aqui Amanda, não irá demorar.
Ela assente, abaixando o olhar novamente. – Tudo bem...
Faço um sinal para os dois, que chegam um pouco mais próximos – Perceberam que ela está tentando fugir daqui? – Sussurro a eles.
- Sim, ela não parece muito confortável. – Jeniffer diz em um tom de voz semelhante ao meu, a observando por cima do ombro. Amanda mantém seu olhar pelo chão – Me pergunto o que pode ter acontecido para ela ter ficado desse jeito.
- Para abalar a Amanda? – Brian passa uma mão pelo queixo – Tem que ser algo muito grande.
Minha preocupação nesse momento não é apenas o fato de Amanda estar tão abalada, mas o fato dela não se sentir bem aqui, e ter o risco de ela se levantar e querer ir embora. Em nenhum momento esqueci que ela é uma bruxa, e simplesmente não tenho a menor ideia do quão forte ela pode ser. Caso ela queira forçar a saída, quem aqui seria capaz de impedir ela?
- Desculpem não poder continuar ajudando, mas preciso retornar ao trabalho – Jeniffer comenta e de automático me tira de meus devaneios. Ela está olhando em direção ao balcão da recepção, e então se vira para nós. – Imaginei que ficaríamos fora o dia todo, e como já que voltamos, preciso trabalhar... Vocês entendem, não é?
- Tudo bem Jenny, vá lá. – Brian diz em um aceno – Te manterei informada.
Ela sorri, dando um passo para trás – No que eu puder ajudar, só me chamar.
Observo a moça que nos acompanhou pela manhã indo até o balcão, mexer em algumas coisas, e pegar uma chave e passar por nós novamente, indo em direção a uma sala que nunca entrei antes, mas sempre soube que está ali.
Viro meu olhar a Brian, ele está se sentando ao lado da mulher, dizem algo em sussurros. Ignoro de imediato e olho em volta, encontrando o bebedouro e indo me servir de um pouco de água. Tudo que aconteceu hoje junto ao calor atípico que está fazendo deixou minha garganta seca.
Fico olhando em volta enquanto me hidrato, prestando atenção no lugar. Existem algumas pessoas aguardando aqui, porém estão distraídas em seus celulares pouco ruidosos, ou atentas a televisão que hoje está passando um canal aberto.
Um homem que nunca vi antes, ou nunca dei atenção antes, sai em ruidosos passos de uma das salas com o rosto enfiado em uma prancheta. Ele ergue o rosto rapidamente, voltando a olhar a prancheta, chamando o nome de uma mulher. Uma senhora prontamente se levanta e o acompanha, eles trocam sorrisos que parece serem conhecidos de longa data, e os mesmos somem entrando em uma das salas.
Jeniffer surge da mesma sala que entrou, agora devidamente vestida com o elegante uniforme que sempre a vi trajando, unido a um ar profissional que carrega consigo nesse momento.
Ela veste uma camisa branca com apenas o botão da gola desabotoado, uma pequena gravata escura caprichosamente ajeitada, um terno cinza escuro e uma saia no mesmo tom na altura dos joelhos, além de saltos não muito altos, igualmente escuros que tornam seus passos notoriamente perceptíveis.
Seus cabelos, antes soltos e caindo perfeitamente ao redor do rosto, agora estão presos em um rabo de cavalo que a torna bem diferente. Além de que está usando uma leve maquiagem em seu rosto. Definitivamente, é a mesma pessoa que vi quando entrei aqui na primeira vez.
Olhando agora, entendo Brian ter atração ou algum envolvimento mais íntimo com Jeniffer.
A beleza dela combinada com tal elegância é de atrair a atenção de qualquer um... E meu guardião não parece ser uma exceção.
Jeniffer olha primeiro em minha direção, mandando um sorriso amigável, e logo faz o mesmo a Brian, e o mesmo lança um aceno. Percebi bem como ele a acompanhou com o olhar desde o momento que a mesma saiu da sala. Um olhar que pareceu muitas coisas, mas principalmente, foi intenso como fogo.
A mulher caminhou diretamente para sua cadeira no balcão. Assisto enquanto ela liga várias coisas, olha alguns papeis e os organiza precisamente, e em questão de tempo, começou a digitar várias coisas em seu computador, em um olhar concentrado como se nada fosse capaz de romper seu foco.
Caminho para as cadeiras, olhando de relance a televisão, me sentando em uma cadeira não muito próxima de Brian. Ele sequer olha na minha direção, muito menos fez menção de dizer mais algo. Mas nesse momento, eu também não sei mais se tenho mais algo a falar com ele, ou se quero que ele me diga alguma coisa.
Caso ainda tenhamos algo a dizer sobre qualquer assunto, sinceramente prefiro deixar para lá.
O assunto das runas, a entidade ressurgindo, tudo isso neste momento se tornou bem irrelevante tanto a ele quanto a mim, não interessa, e assim manteremos as coisas.
Talvez seja melhor, e eu prefiro que seja assim.
Preciso me distrair, tirar tudo isso da minha cabeça. Alcanço meu celular no bolso, buscando fugir de tudo isso como eu puder.
Ficamos por quase uma hora esperando na recepção, quando finalmente uma jovem acompanhada dos pais passa pelo corredor, Jeniffer nos avisa sobre Ferdinand estar livre.
De imediato eu levanto seguindo na direção da sala. Olho por cima do ombro, e Brian está com Amanda, que relutantemente está se levantando. Durante todo o tempo aqui ela ficou desse jeito, Ferdinand tem que ser capaz de dar um jeito nisso.
A porta está entreaberta, e entro sem cerimônias. Ferdinand me olha surpreso, ele está de pé ao lado de sua mesa com alguns papeis em mãos. Percebo que Tamires também está aqui me olhando com igual surpresa por trás de seus óculos, ela está sentada na poltrona com um grande livro em mãos.
- Clara...? – Ele diz em meio à surpresa. – O que faz...
- Achamos a Amanda! – Digo, olhando pela porta, vendo Brian se aproximando com a bruxa em passos lentos. Volto a olhar para Ferdinand, que está sem reação, em um esboço de sorriso, que logo desaparece quando ele se atenta a minha seriedade.
Brian chega a sala com Amanda, ela porém não ergue seu olhar. Ela se mantém exatamente da mesma forma de antes, e de imediato o psicólogo percebe que algo não está certo.
- Amanda, mas... – Ele se aproxima da irmã, que empalidece com Ferdinand. Ele hesita por um momento, tocando seus ombros tentando chamar sua atenção para si, porém tudo que acontece é a bruxa parecer ainda mais contida. – Como você está?
- Eu... Estou bem... – Ela diz esboçando um sorriso, retirando as mãos de seu irmão dos ombros lentamente, indo se sentar no sofá.
- Você não deu notícias. – Ele diz, abaixando a sua frente, tentando inutilmente ganhar seu olhar. Ele olha para cada um de nós – Onde esteve?
- Ocupada... – Ela diz quase em um sussurro. – Tinha coisas para fazer...
- Coisas? – Ferdinand insiste, cruzando seu olhar com o meu.
- É sabe... Alguns problemas para resolver, coisas a fazer. Fiquei de cabeça cheia... – Amanda insiste nessa história, o problema é que não me convenceu, e também não parece estar convencendo seu irmão. – Acabei esquecendo de dar notícias...
Ferdinand torce a boca, segurando as mãos de sua irmã em um carinho – Aconteceu algo?
Ela o olha, o temor volta ao seu semblante. Amanda parece novamente assustada, mesmo assim ela balança a cabeça negativamente. – Não...
- Amanda... – Ele insiste se sentando ao seu lado.
Ela mantém um sorriso fraco – Por favor Ferdinand... Estou bem...
- Está claro que não está bem... – Ele diz em um tom calmo. A sua maneira, está tentando fazer com que a irmã se abra. Posso ver que não é um psicólogo agindo, e sim um irmão preocupado.
- Estou... – Ela diz em um sussurro, apertando os lábios.
- Por favor, não minta pra mim Amanda... – Ele diz num tom suave.
O silêncio recai na sala junto à tensão no ar. Olho para cada um presente, Brian cruzou seus braços e observa Amanda e Ferdinand seriamente. Tamires abandonou sua leitura e observa tudo atentamente, seu olhar denuncia a atenção. Eu mesma me sinto nervosa com tudo isso, cruzei meus braços e aperto as mãos sem nem ao menos ter percebido.
E apesar de parecer perdido, Ferdinand continua com uma expressão calma.
- Você não está bem... – Ele diz a observando. – Isso tem a ver com o Abismo?
- Não insista em saber mais Ferdinand... – Ela diz em uma voz embargada, abraçando a si mesma. Seus olhos fecham sem conseguir impedir que lagrimas caiam – Por favor não insista... Não me faça reviver aquele pesadelo...
A informação atinge a todos num baque e todos ficamos boquiabertos. Nenhum de nós esperava por isso, muito menos com essa reação da Amanda. O choque é tanto, que nenhum de nós tem qualquer reação diante das lagrimas da bruxa
Brian está prestes a avançar um passo, mas ergo um braço o impedindo. Olho para ele e faço um sinal negativo com a cabeça. Não somos nós quem deve fazer algo, agora é com Ferdinand.
Ferdinand a abraça, a acolhendo próxima de si. Um semblante sério se vê presente em seu rosto ao misto de uma confusão que chega a ser palpável – Calma, está tudo bem... Fica tranquila, você está segura... – Ele diz em um sussurro, passando uma mão pelos seus cabelos. – Brian...
- Neste instante! – Ouço Brian falando, e tudo que consigo ver é a porta sendo fechada.
- Onde a encontraram? – Ferdinand me questiona, porém sem olhar para mim.
Me aproximo devagar – Na casa dela... Fomos à loja primeiro, mas não tinham notícias, e com o endereço que Brian e Jeniffer conseguiram, fomos procurá-la em casa. Quando estávamos perto de ir em outro lugar, Amanda apareceu... E ela estava estranha.
Ele assente balançando a cabeça, mantendo os olhos na irmã – Eu não sei o que pode ter acontecido, mas preciso que me conte.
- Sua irmã se encontrou com ele. – Tamires diz de repente em um tom sério, atraindo tanto meu olhar quanto o de Ferdinand.
- "Ele"? Você se refere... – Ele começa, mas não consegue terminar.
- O cara do casaco, sim. – A garota balança a cabeça, olhando para Amanda – O homem de cabelos longos e sobretudo negro, você o encontrou... Foi isso, não é?
A mulher por sua vez não responde com palavras. Ela apenas seca o rosto assentindo.
- Era por esse motivo que avisei para não deixar sua irmã ir atrás dele sozinho. – Tamires diz em um pesar, pendendo o corpo para frente, tentando escolher as palavras. – Um encontro com ele não costuma ser fácil... Deixe ela se acalmar.
A porta é aberta, e Brian entra com um copo. Ele entrega a Amanda, que bebe o líquido todo de uma só vez, suspirando logo em seguida.
- Ele é tão terrível assim? – Ferdinand questiona olhando para Tamires.
- Sim. – Ela diz, retirando os óculos do rosto. – Só quem encontra com ele sabe como a experiência pode ser terrível, e agora sua irmã teve essa mesma experiência.
Volto a olhar para Amanda, que continua com lagrimas caindo incessantemente de seus olhos, porém em um choro silencioso. Não sei o que dizer sobre isso, tudo está sendo um choque para mim. Ouvir uma nova menção sobe esse tal "cara do casaco" e a bruxa confirmando ter o encontrado, resultando em seu estado atual, tudo me atinge como vários golpes.
- Amanda ficou assim em apenas um encontro com ele? – Ele diz em um sussurro.
- Não foi um encontro... – a voz dela saiu fraca, tomada pelo choro. Amanda respira fundo, recuperando o fôlego perdido e secando o rosto com as mãos. Ela hesita alguns segundos, olhando para cada um de nós – Quanto tempo acha que fiquei fora?
- Alguns dias. – Ferdinand comenta baixo.
- Não... – Ela diz em baixo tom – Eu fiquei mais de um mês longe, aprisionada em um lugar irreal que nunca vi antes, e fui caçada pelos meus próprios pesadelos.
Percebo como o olhar de Tamires vai ao chão nesse momento ao mesmo tempo que sua testa franze, sua reação faz parecer que esse assunto é uma antiga ferida da garota.
- Sei que não tenho nada a ver, mas peço que conte tudo que aconteceu. – Tamires comenta em um tom sério, voltando a olhar para Amanda.
- Mas... – Ferdinand tenta se pronunciar.
- É preciso, estou vendo como ela está assustada por causa de um male que eu conheço... Eu sei, conheço esse medo... – Tamires volta seus olhos a mim. – E talvez não seja a única que conhece.
Sim, Tamires está certa. Apesar de não ter tido um contato com ele do mesmo jeito que elas tiveram, eu também estou envolvida e com problemas com o Abismo. Isso me faz concordar com ela com o olhar.
De certa maneira, nós três acabamos afetadas pelo mesmo problema. O Abismo. Podemos entender uma a outra.
- Eu conto, mas... – Amanda respira profundamente por mais uma vez, fechando seus olhos erguendo a cabeça – Depois, eu não quero mais falar disso, não quero me lembrar...
- Não precisa tocar mais nesse assunto... – Tamires comenta de forma compreensiva – Não vai precisar sentir mais medo.
A bruxa vira seus olhos ao irmão, como se buscasse uma confirmação. – Se for para que fique bem, não voltarei a tocar nesse assunto, nem te envolverei mais.
- Tudo bem... – A voz de Amanda saiu fraca, trêmula. Ela segura a mão de ser irmão, em uma tentativa de se sentir confortada – No primeiro dia, tentei usar um feitiço localizador para procurar o foco principal de toda aquela energia que estava sobre a cidade. Era uma força muito grande, esmagadora, e crescia cada vez mais que eu tentava me aproximar... Nunca senti uma força como aquela... Mas eu não sabia definir exatamente onde estava... Mas meu feitiço foi desfeito antes que eu percebesse.
- O que? – Brian diz em surpresa. Olho para ele, que está com seu olhar semicerrado – Vocês usam energia natural, ainda assim o feitiço de uma bruxa pode ser desfeito assim?
- Pela vontade de quem o conjurou, ou pela força de feiticeiros ou bruxas mais fortes, sim, podem ser desfeitos... – Amanda diz com o olhar baixo – Mas não era isso, não existem pessoas com uma presença tão forte como aquela... Mas mesmo com meu feitiço desfeito, consegui ter uma ideia de sua posição, não estava se movendo. Por isso me preparei como podia, e fui atrás dele no dia seguinte.
- Sozinha? – Ferdinand questiona em um sussurro.
- Não tinha ninguém para ir comigo... Precisei ir sozinha... – Sua voz se tornou mais vacilante. Ela continua abraçando a si mesma – Eu fui para dialogar com o responsável por aquela anomalia. Sendo ele o que fosse, só queria conversar e entender melhor, só se fosse realmente necessário, eu entraria em um conflito.
Ninguém interrompe, todos se mantém sérios apenas olhando para ela, a cada segundo o clima parece piorar ainda mais.
- Eu segui o rastro até o centro da cidade, em específico, cheguei ao parque Ibirapuera, no mirante no topo do museu. Estar ali com aquela presença era sufocante, o ar estava pesado demais, o problema é que não havia ninguém ali... Por segurança, deixei meu livro de feitiços preparado – Ela aperta mais suas mãos nos braços, apertando a boca – E então, ele apareceu.
O irmão há observa um pouco pensativo – Qual a sensação de estar diante dele?
Aguardamos, porém a mulher não diz nada. Ela estremece, sua expressão enfraqueceu no momento que ouviu a pergunta. Ela se encolhe amedrontada, e nenhuma nova palavra surge.
- Esmagadora... Assombrosa... Traumatizante. – Tamires diz cada palavra como se estivessem presas dentro de si há muito tempo. – Essas são as sensações ao estar na presença dele.
- Está certa... – Amanda assente, as palavras escaparam quase que inaudíveis. – Tentei o plano original, conversar com ele, mas eu sequer conseguia me mexer... Mesmo que eu falasse e ele me respondesse, aquela presença é enlouquecedora... Quando finalmente consegui me mover, os impulsos me fizeram agir sem pensar. Ao invés de me afastar, eu ataquei por medo.
Tamires e Ferdinand ergueram as sobrancelhas com o que acabaram de ouvir.
- O medo falou mais alto, não usei um ou outro feitiço. Usei tudo que tinha... – Ela suspira com o olhar baixo – Todo e qualquer poder de ataque que puder imaginar, eu usei. Feitiços de chamas, ventos, raios, gelo, explosões, invocações de golens elementais, lâminas, lanças e correntes espectrais, e também elementais, ondas de pura energia concentrada. Ele apenas olhava perplexo para tudo aquilo e era atingido em cheio, de novo e de novo, ele foi acertado repetidas vezes sem conseguir reagir em nenhum momento...
Apenas encaro boquiaberta, sem saber com o que fico impressionada, se é com o relato, ou o tanto de coisas que ela demonstra saber fazer. Muito mais do que eu poderia saber. Olho para cada um a nossa volta, todos carregam uma expressão de surpresa e parecem mal ter palavras.
- Não sei por quanto tempo ataquei, atravessei o corpo dele com várias lanças, eu não sabia mais se queria incapacitar ou matar ele... Imaginei ter conseguido terminar com tudo no momento em que ele caiu de joelhos, lancei uma combinação de correntes espectrais e várias lanças o prendendo no chão, além que o atingi com um raio congelado, tanto para o incapacitar de vez com a eletricidade e congelar seu corpo... Mas ele apenas me olhou e sorriu, como se me desafiasse a mais, e naquele momento a escuridão começou a emergir junto a uma ventania intensa que quebrou todos os feitiços que lancei... Ele se pôs de pé com uma calma no rosto, e por fim, imensas asas de pura escuridão surgiram em suas costas...
Amanda olha para suas mãos, que novamente estão tremendo. Essa foi à mesma reação que teve quando estávamos em sua casa.
- Só um uma mão, ele usou tudo que eu tinha acabado de conjurar e lançou contra mim de uma vez, e acabei atingida por todo aquele poder... Eu nunca me senti tão impotente como naquela hora, tentei atacar por uma nova vez, mas com um piscar de olhos ele estava a minha frente, e eu não podia mais escapar... – Ela ergue o indicador próximo do rosto – E em um toque, tudo se apagou... Acordei em uma floresta, onde tudo que havia era à noite e uma névoa por todos os lados, de início nada havia ali, mas a cada segundo as arvores se retorciam como se acompanhassem meus passos...
Ferdinand passa um olhar preocupado por todos nós, mas não diz nada.
- As arvores adquiriram uma forma macabra, algo que nunca vi na vida... Fendas nos troncos que se pareciam com olhos e boca, os galhos tornaram-se braços e as raízes pernas, e assim várias das arvores começaram a se mover... E como se não bastasse, das sombras, seres com a forma dos meus pesadelos surgiram... E por mais de um mês, todas essas coisas me atacaram. Tentei fugir mas sempre me achavam, e tentei lutar, queimar as arvores e afugentar as criaturas, mas por mais que toda aquela floresta incendiasse no mais intenso fogo, eles não paravam... Nada do que eu usava contra eles funcionava, e cada vez mais, fui perdendo para meus pesadelos. Cada golpe que eu recebia, eles tomavam parte da minha mente me fazendo alucinar.
- Você precisou aguentar tudo isso sozinha? – Brian diz com pesar na voz.
- Sim... E por todo esse tempo, ele estava ali me analisando... – Amanda cobre o rosto com as mãos, hesitando em voltar a falar. Ela novamente respira fundo, como se fazer isso fosse o único ato que recuperasse sua coragem de falar – Ele era só um rapaz, mais jovem que Ferdinand, usava o mesmo casaco enegrecido que mencionaram, era ameaçador com tamanho poder, e ao mesmo tempo não era... No fim, quando eu não aguentava mais lutar e só quis morrer, todos os pesadelos que me cercavam se dissiparam, as arvores interromperam seu movimento e queimaram em silêncio... E ele ressurgiu vindo do céu junto a toda aquela escuridão que era mais temível que as chamas a nossa volta, e por mais uma vez tentei lutar...
Ferdinand se demonstra hesitante, mas sua boca se abre – Como foi?
- Um desastre... Não importava o quanto eu atacasse, nada o abalava. Ele continuava me olhando e sorrindo com a mais profunda calma. Devolveu cada ataque meu, e também usava escuridão para me atacar, sempre sorrindo e chegando mais perto... – Amanda da um sorriso entristecido e doloroso – Eu não era uma ameaça para ele, em nenhum momento cheguei perto disso... E eu, que fui considerada pela associação como uma das feiticeiras mais poderosas da nação, não fui nada contra aquilo...
O psicólogo a olha, mantendo o abraço. Ele pode querer falar, mas dessa vez não o faz.
- Eu estava no chão, sem forças e ele estava ali ainda me olhando, e tudo se tornou o mais profundo escuro... Tudo que me lembro, foi de acordar na minha cama quando achei que iria morrer sozinha. Nunca achei que seria vencida daquela forma – Ela termina de falar.
- Calma, você está de volta. – Brian diz, tentando consolar ela.
- Eu voltei logo no dia seguinte, mas não tive coragem de sair de casa, nem mesmo consigo dormir... As vezes fechar os olhos me fazem ver ele. – Ela diz, em um tom mais fraco, olhando para seu irmão. – Eu quero dar um tempo, de tudo isso... De feitiçaria, magias, eu apenas quero um tempo para pensar e seguir com minha vida... Talvez me aposente como bruxa...
- Não, isso não pode acontecer. Você ama ser uma bruxa. Precisamos de algum plano para lidar com uma coisa dessas – Ferdinand diz, olhando para Brian em total seriedade. Ele não parece que vai deixar as coisas da forma que estão. – Entrar em contato com algumas pessoas, reunir e armar um plano...
- Não Ferdinand... – Amanda diz, fazendo com que o psicólogo se cale.
- Por que não? – Ele diz em um tom enraivecido – Uma coisa dessas não pode ficar livre, temos que dar algum jeito nele.
Tamires da um sorriso – Você não entendeu ainda, não é? – Ferdinand a olha em uma expressão de total surpresa.
- Ele é forte demais... Aquilo é um monstro, mais forte que tudo que já vi... – Amanda diz com o mesmo sorriso de antes – Não temos como enfrentar uma coisa daquelas... Acho que nenhum humano é capaz de lutar contra ele.
- Eu não aceito isso, não aceito deixar ele só andando livre... Ainda mais depois do que fez com você, como posso permitir isso? – Ferdinand diz em um tom pesaroso.
- Aceite meu irmão, por favor... Você não sabe o quão poderoso ele é... – Amanda insiste com a voz tremula, apertando suas mãos nos braços de Ferdinand – Existem outros seres, alguns mais fortes que nós humanos... Eles podem cuidar daquele homem.
- Não conseguirei deixar para lá... Ninguém toca na minha irmã e sai impune – A voz de Ferdinand saiu enfurecida. Ele está mesmo disposto a levar isso em frente – Se sabe o quão terrível essa coisa pode ser, por que insiste em ir atrás dele Tamires?
Tamires endurece sua expressão com a pergunta – Por que é necessário, preciso saber o que ele é, e por que está aqui... O cara do casaco é um monstro como sua irmã viu, mas as vezes... Ele age como um salvador e faz bem aos outros, e é isso que não entendo... Não é claro se ele é alguém que está pelo bem ou o mal, quero saber quais as intenções dele.
- Não... Não, tem alguma coisa errada, alguma coisa não está se encaixando! – Ele diz, andando de um lado ao outro impacientemente. Seu tom de voz mostra sua raiva. Ferdinand volta a olhar para a irmã – Me diga Amanda, quando você despertou, estava em casa, certo?
A mulher reluta um pouco, mas confirma balançando a cabeça.
- E me fala minha irmã... – Ele diz, se abaixando a sua frente – Quanto voltou para casa, tinha algum ferimento pelo corpo?
- Não... – Ela responde com a voz contida – Nenhum ferimento...
- Acho que estou entendendo... – Ele fala, olhando diretamente para Brian – Esse homem é algum tipo de telepata, ou ilusionista.
Pisco algumas vezes, olhando para Brian que não se pronuncia. Tamires, a única outra pessoa que passou por isso, agora se mostra pensativa. – Mas... – Começo – Por que acha isso?
- Por um motivo simples Clara. – Ele responde junto a um suspiro – Pela maneira que Amanda nos contou e todo o seu medo, ficou bem óbvio que ela não se conteve em nenhum momento. E conhecendo minha irmã como conheço, sei muito bem que ela tem feitiços poderosos o bastante para varrer alguns grandes quarteirões sem fazer grandes esforços...
- Mas não teve nenhum registro de alguma destruição desse nível em São Paulo. – Brian diz de repente, atraindo meu olhar.
- Exato! Esse é o ponto! – Ferdinand exclama – Amanda não se conteve, porém não houve nada que indicasse tamanho poder dela na cidade, e ela nos mostrou que não tem nenhum ferimento pelo seu corpo. Amanda foi lançada a uma ilusão antes que percebesse.
Vejo como um sorriso discreto surge no rosto do psicólogo. Seu olhar muda junto a sua expressão, parece determinado a fazer algo. Só não tenho ideia do que possa ser esse "algo".
Ele continua com essa expressão, olhando de Tamires para mim por algumas vezes. Ferdinand passa a mão impacientemente pelo rosto – Ele é um ilusionista, muitas coisas se encaixam desta maneira, precisamos nos preparar... – Ele sussurra andando de um lado ao outro, voltando seu olhar a nós em um fulgor que eu não esperava – Gostaria de pedir que nos deixem a sós... Você fica Brian, tenho algo a falar com você.
- Sim senhor. – Ele diz em um tom neutro.
Olho para os irmãos sentados lado a lado. O problema aqui é bem completo, uma bruxa considerada uma das mais fortes teve ser orgulho esmagado com tanta facilidade, vencida sem dificuldades resultando em um trauma forte e uma vontade de sair da feitiçaria, acho que é uma maneira de fugir de tudo isso. E um psicólogo que também é um guardião querendo uma vingança pelo que acabou acontecendo com sua irmã, e por consequência está querendo agir sem pensar...
Isso tem tudo para não dar certo.
Apesar disso, não digo nada. Não discuto, é um assunto de irmãos. Vejo Tamires se levantando, deixando seu livro sobre a poltrona em um suspiro. A garota vem caminhando em minha direção, e juntas deixamos a sala.
- Ele é maluco de querer ir contra o cara do casaco... – Tamires diz quando fecho a porta.
- Existem malucos em todas as situações. – Digo com um meio sorriso.
Caminhamos até a recepção que agora está vazia, e nos acomodamos nas cadeiras para aguardar. Jeniffer se levanta, apoiando as mãos sobre o balcão – Como foi?
- Revelador. – Brinco me encostando. – Amanda passou por muita coisa.
- Imagino... – Ela diz balançando a cabeça e abaixando o olhar. Ela volta a me olhar, parecendo ter se lembrado de algo – Escuta Clara, temos que marcar de sair.
Tento puxar pela memória, acho que Jeniffer já me disse isso uma vez antes. Me levanto e aproximo do balcão. Definitivamente sair vai ajudar a aliviar a cabeça, afinal mais coisas estão me deixando uma pilha de nervos – Concordo, qual sua ideia?
- Uma balada no centro, o que acha? – Ela diz, logo nega com a cabeça – Não, deixa para lá, você teve problemas em uma balada tempos atrás.
- São águas passadas. – Dou um riso contido, apoiando os cotovelos no balcão. – Uma balada... Pode ser uma ótima ideia.
- Com certeza sim, depois de hoje nós estamos precisando... Se quiser, chame também seus amigos, ir em galera será bem melhor. – Ela sorri de forma simpática. Apesar da sensação estranha que ela me causa por toda sua intimidade com Brian, ela é uma boa pessoa, não me destratou e pelo menos parece ser bem amigável. Acho que esses são pontos positivos nela.
- Gostei disso, falarei com eles... – Concordo sorrindo, e percebo que os olhos da moça focam em algo atrás de mim, que de imediato acompanho. Ela está olhando para Tamires.
- Vamos também Tamires? – Jeniffer a convida amigavelmente.
Tamires ergue o olhar surpresa. Estava distraída em seu celular – Balada? Não sei, não tenho costume de ir em lugares assim fechados.
- Não gosta de lugares muito cheios? – Ela pergunta em um olhar curioso.
- Um pouco, nem é por ser pessoas desconhecidas ou música alta, mas por ser lotado... – Ela diz, porém assume uma expressão pensativa. – Se bem que, desde que vim para São Paulo, eu não saí muito e nem conheci muitas pessoas. Pode ser bom.
- Ótimo, então está marcado! – Digo animada, mas devo ter falado alto demais, pois as duas acabaram me mandando fazer silêncio com a boca – Desculpem, me empolguei.
Ouço a risada contida de Tamires, e Jeniffer sorri – Vamos ver então... O que acham na noite de sábado? – Eu confirmo com a cabeça. Me viro para Tamires, e ela faz o mesmo após manter uma expressão pensativa por alguns segundos – Vai convidar seus amigos então Clara?
- Com certeza vou. – Confirmo sorrindo.
Da última vez que fui a uma balada, as coisas não ocorreram muito bem, mas pela minha própria imprudência e muitas ações mal pensadas. Eu não farei isso de novo, com certeza não errarei caso a entidade apareça...
Desta vez, estou melhor preparada contra a entidade.
Estou mesmo precisando aliviar a cabeça de tudo que anda acontecendo. E também, depois do que Ricardo andou fazendo, agindo como um idiota e ainda dando em cima de uma das minhas colegas, além de sumir e nunca mais ter tentado entrar em contato comigo, não garanto nada em relação a me segurar com outras pessoas...
Talvez eu me solte muito.
Agora, essa balada me parece uma ideia muito melhor.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro