Capítulo 43
Depois da minha conversa com Carolina, eu não conseguia mais dormir ou pensar em outra coisa. Durante todo o tempo, desde que eu descobri a fibromialgia, eu me coloquei no lugar de vítima, e nunca quis admitir isso.
Pelo contrário, reclamar e chorar era mais fácil. A verdade é que estar com problemas é difícil, sair dos problemas, também é difícil, cabe a cada um escolher qual dificuldade deseja enfrentar.
O primeiro passo é entender que eu não sou única. Que existem outras pessoas que passam pelos mesmos problemas que eu e outras que passam por problemas piores que os meus. Quando passamos por alguma dificuldade, alguma intempérie, sofrimento, ou qualquer coisa que nos desagrade, nos colocamos na posição de vítima, e automaticamente nos propagamos a querer ser o centro das atenções. Sim, é como se sentíssemos a necessidade de sermos bajulados, e que alguém sempre nos diga: "Caramba! Imagino o quanto deve ser difícil". É quase que um elogio quando alguém diz alguma palavra de espanto por algo que você está passando. Uma forma de você se sentir especial, mesmo com um problema que de especial não tem nada.
Como um acessório que você compra e faz questão de enaltecê-lo para que alguém elogie e seu ego seja preenchido.
É óbvio que ninguém entende a sua dor e nunca vai entender. Mesmo eu tendo a mesma doença de Carolina, a fibromialgia nos atinge de uma forma diferente. Ela consegue lidar com a doença de uma forma completamente distinta da minha então, eu não poderia ajudá-la completamente assim como ela não seria capaz de me ajudar completamente. Porém, sempre podemos fazer a nossa parte. Os poucos minutos de conversa com Carolina, me ajudou a pensar a vida de um jeito diferente, me trouxe ideias, e me confortou de uma maneira esplêndida.
O segundo passo é, após entender que você não é o "centro das atenções" e que só é vítima se se permitir ser vítima, é hora de mudar o jogo. E era isso o que eu queria. Mudar o jogo. Não me colocar mais em posição de vítima. Eu tinha uma doença sem cura, mas que havia tratamento. Eu é quem deveria controlá-la.
Miguel foi uma peça chave em todo o meu processo para tratar a fibromilagia. Sem ele eu não teria me arriscado, me aventurado, superado meus limites, conhecer novos gostos, novos hobbies e quebrar as regras. Eu me sentia bem com tudo isso e, sempre que eu estava em tais atividades eu esquecia que tinha uma doença. Ter uma doença não significa ser doente.
Eu amava Miguel. Eu amo Miguel. Mas então eu comecei a entender que queria mais agradá-lo do que agradar a mim. Eu precisava fazer as coisas por mim. Ser bom impar para ser um bom par. Eu não sei ele estará me esperando, ou se largará tudo para voltar a viver um grande amor comigo, mas, eu sei o que eu estava disposta a fazer por mim.
Entrei no meu quarto ansiosa andando de um lado para o outro pensando por onde começar. Eu sabia que precisava me controlar, mas a ansiedade para mim era maior. Comecei a vasculhar algumas gavetas tentando procurar qualquer coisa, um caderno que fosse, então na última gaveta ao lado da minha cabeceira, ali estava, meu caderninho de lamentações que Miguel havia me dado para anotar minhas reclamações.
Peguei-o indo até minha cama para poder olhá-lo com calma. A cada reclamação, uma vontade de mudar aquela situação tomava conta de mim.
As vezes eu me pegava rindo por lembrar dos momentos em que tive com Miguel em cada reclamação como essa.
Mordi os lábios. Se eu queria tomar uma atitude, aquilo não deveria fazer mais parte de mim.
- Salete! - gritei a enfermeira no corredor.
Ela veio mais que de pressa toda preocupada por conta do meu grito.
- O que foi senhorita? Sente alguma coisa? Está tendo alguma crise? Quer que eu chame o médico.
- Se acalme mulher! Não é nada disso! - digo a ela com sorriso no rosto. - Preciso dar um telefonema.
- Para quem senhora?
- Dafne, minha irmã.
- Ok, mas não demore muito. Sabe como funciona a política de telefonemas da clínica.
- Eu prometo que não vai demorar mais que dois minutos. - junto as palmas da minha mão em sinal de súplica.
- Está bem.
...
Era 21h da noite. Para uma pessoa que tentou se matar várias vezes e a fugir da clínica ou da supervisão das enfermeiras, fazer isso mais uma vez, não seria tão difícil.
Bem, o jantar era a 19h30, e todos deveriam estar em seus aposentos até as 21h em ponto. Eu já havia ajudado Dafne tantas vezes a sair de casa, então, juntar umas cobertas, uns travesseiros e uns lençóis na cama para fingir que eu estava dormindo plenamente, já era minha especialidade.
Assim que terminei o jantar, cuidei logo de preparar minha cama. O corredor estava vazio e as enfermeiras a cada trinta minutos verificavam local. Era o tempo perfeito. Eu havia estudado inclusive a posição das câmeras para não ser pega. Bem, o bom de ficar durante todo esse tempo na clínica era algumas aventuras que tive. O meu único problema, era sempre ser pega por não conseguir correr muito longe por conta das dores nas pernas ou o cansaço que vinha logo em seguida.
Mas dessa vez, eu tinha que conseguir.
O portão dos fundos ficava sempre aberto e quase nunca tinha alguém fiscalizando. Era minha chance. Respirei fundo , eu ia conseguir.
Tirei toda a minha força de mim e corri.
- Dessa vez não fibro!
Dei graças quando vi o carro de Dafne ali com as portas já aberta me esperando entrar. Era a única pessoa que poderia me ajudar nessa loucura.
- Eu não acredito que você conseguiu fugir. Quem é você e o que fez com Clarissa? - espanta Dafne assim que fecho a porta do carro.
- Vamos logo! Dafne, eles podem aparecer. - digo tentando recuperar o fôlego.
- E então, vai me dizer ou não o que está passando nessa sua cabecinha? - pergunta Dafne enquanto dirige.
- Eu ainda não posso dizer, mas é algo grande
- Grande? Eu gosto - Dafne sorri maliciosamente.
- Para sua tonta - dou-lhes uns tapas no braço. - É uma ideia grandiosa digamos assim.
A janela do lado do carona estava aberta até o final. Eu estava com saudades de sentir a brisa do vento tocando a minha pele, contemplar as estrelas fora de uma janela com grades.
- E aí, como anda minha sobrinha e afilhada linda?
- Chutando horrores. É sério, essa menina tem uma energia que eu não sei de onde veio.
- Tem certeza que não sabe, Dafne?
Ela ri
- Agora entendo o que a mamãe e o papai sofreram.
- Por falar em mamãe e papai, como eles estão?
Ela suspira.
- A situação está feia Clarissa.
- O que quer dizer com feia?
Ela hesita um pouco, mas começa a falar.
- Bem, depois que você veio pra cá, eles tiveram um boa discussão. Mamãe saiu de casa.
- O que?
- Clarissa, o relacionamentos deles estavam ruim desde que...- ela se recua.
- Desde que a minha doença foi descoberta.
Ela consente.
- Escuta! Não é culpa sua.
- Pela primeira vez, eu não me sinto culpada. Na verdade, eu cansei de tentar fazer papai entender que eu não sou a filha perfeita.
- Estou orgulhosa de você
- Por que?
- Tá brincando? Você fugiu de uma clínica e agora diz que cansou de agradar o papai? Eu deveria era fazer uma festa para comemorar - ela ri.
- Menos Dafne. De certo modo eu ainda fico preocupada pelos dois.
- Eu também fico. Mas eles são grandes o bastante para lidar com a própria vida. Não deixa que isso.
- Eu preciso ter uma boa conversa com papai.
- Ele não veio te visitar nenhuma vez?
Suspirei
- Não. Sei lá, eu acho estranho isso sabia? Nossos pais deveriam amar a gente com todos os nosso defeitos, e não virar as costas ou fazer cara feia quando os planos deles não são os nossos planos. É estranho.
- Clarissa, papai te ama. Você sempre foi a filha preferida, lembra? Eu acredito que sua doença doa mais em papai do que em você mesma. Ele teme que você sofra, e quer agir como se você não tivesse nada. Como se tudo fosse passageiro e você pudesse fazer tudo o que...
- Uma pessoa normal faria?
- Não quis dizer isso, irmã, me desculpa.
- Eu entendi. Fazer tudo como se eu não tivesse fibromialgia.
- Isso. - ela sorri por eu ter compreendido.
- Miguel me falou sobre isso. Que as pessoas nem sempre sabem como reagir diante dos problemas dos outros e as vezes se afasta ou reage de forma estranha por temer prejudicar ainda mais. Talvez fingir que nada aconteceu seja o escape de papai. - dou de ombros.
- Você se lembra daquela vez que eu quebrei o braço? - Dafne recorda a infância com um grande sorriso no rosto e eu apenas aceno com a cabeça. - Papai ficou muito bravo comigo e me rezou um sermão gigantesco sobre não subir em árvores, sobre ser mais comportada, e não agir feito um moleque. Ele nunca perguntou como eu estava, como me sentia. Pelo contrário, foi logo me deixando de castigo e sem brincar na rua por um mês. Mas, todas as noites, enquanto eu estava dormindo, papai ia até meu quarto e colocava a mão no meu rosto para saber se eu estava com febre, me dava um beijo de boa noite, e acarinhava meu gesso.
- Sério? - pergunto completamente chocada.
- Uhum! - ela confirma - Era estranho, mas era uma forma dele dizer que se importava. Senhor Romeu só tem pose, mas tem um grande coração e logo ele vai acabar cedendo. E nem vai achar Miguel tão ruim assim. - limpo a garganta para tentar aliviar o nó que so formara por Dafne ter mencionado Miguel.
- E por falar no bonitão, sem notícias dele? Ele me manda mensagem todos os dias querendo saber de você.
- Você está brincando - não era possível que Miguel se desse todo esse trabalho.
- Não estou não. Também pudera, você proibiu a entrada do coitado no seu quarto. Isso não se faz borboleta. - ela ri por ter dito meu apelido carinhoso.
- Dafne! Não me chame assim.
- Desculpa se só o Miguel tem esse privilégio. - ela ri - Mas se não acredita, toma! - ela me entrega seu celular com alguma conversas de seu whats com Miguel.
"Alguma notícia da Borboleta?"
"Como ela está?"
"Teve alguma crise?"
"Me mantenha informado, por favor".
- Bem, ele me manda cartas algumas vezes.
- Que romântico - diz Dafne com um sorriso empolgado - Meio cafona, mas romântico. - Dou um sorriso e um leve tapa em seu ombro.
- Bem, se era um lugar ermo, e afastado da cidade que você queria, aqui está. - informa Dafne logo que para o carro.
O lugar era perfeito. Já era de noite, o que tornaria a experiência ainda ais animadora.
- Trouxe as coisas que eu te pedi? - pergunto tirando o cinto.
- Está no porta mala - Dafne responde fechando a porta do carro.
Dentro porta-mala havia um galão de gasolina. Era só colocar um pouco no matagal para que Dafne me levou e acender um isqueiro. Ali se formava uma pequena fogueira.
Eu encarava aquela mini fogueira a minha frente. Era possível sentir o seu calor em cada centímetro do meu corpo. Uma mistura de sentimentos se apossou do lugar.
Dafne estava do outro lado da fogueira. Ela me olhava sem nenhuma emoção evidente, apenas esperando para ver o que eu faria.
- Daf! - digo seu nome sentindo uma lágrima queimar meu rosto. - Eu sempre fui uma pessoa controladora, perfeccionista, reclamona, chata e sem graça. Mas, eu me sentia feliz com essa vida pacata. Achava que tinha uma carreira que jamais me abandonaria. Achava que tinha um noivo que iria estar do meu lado e me amar para sempre, não importa o que iria acontecer. Achava que música clássica era a única melodia possível de se ouvir e que não havia outra além dela. Então, me vi doente. Com uma doença sem cura. Me vi derrotada e destruída por dentro. Como se um caminhão tivesse passado umas mil vezes, todos os dias, por cima de mim. Eu recebi olhares de pena, eu recebi olhares de frustração e xingamentos ou acusações de corpo mole. As pessoas me diziam que eu era preguiçosa. As pessoas me diziam que eu era fraca. Eu vi as pessoas que mais amo na vida sem saber o que fazer, e vi o olhar do homem que amei com todo o meu coração, de desaprovação. Eu me senti menos mulher, eu me senti fraca e derrotada. Questionei, por vezes, a existência de Deus. Olhava-me no espelho e não era capaz de me reconhecer. Não conseguia me sentir bonita, sequer desejada. Eu olhava para o meu reflexo com ódio do que eu via. Essa doença me tirou o violino. Você era a prova do quanto o violino me fazia bem. Ela me tirou tudo o que eu tinha, mas me deu tudo o que jamais imaginei que teria. Um belo dia, três batidas na porta do meu quarto, virou meu mundo de ponta cabeça. Arrogante, intimidador, com as palavras certas na ponta da língua, o pior e mais louco psiquiatra do mundo, e o mais gostoso também - rio entre as lágrimas - Ele me cutucou. Miguel me desafiou, fez eu me sentir amada e desejada. Me mostrou que eu era capaz de superar meus limites e alcançar o inalcansável. Me mostrou uma vida mais leve, com aventuras, com outros amores, outros gostos, outros ares. E me mostrou que sim, eu podia fazer o que eu quisesse, inclusive tocar, desde que eu reconhecesse que tudo deveria ser adaptado ou controlado. Mas então, porquê, eu, ainda me sentia tão vazia? Eu me apaixonei por Miguel. Mas nunca me senti boa o bastante pra ele, então, tudo o que eu queria ou fazia, era somente para agradá-lo. Com medo de ele me deixar caso eu agisse de forma contrária. Eu não saberia lidar se, num belo dia ele estivesse com problemas no trabalho, ou com a família, eu sempre acharia que o problema seria comigo. A ideia de um belo dia ele enjoar de mim e me trocar por outra pessoa, sempre martelava minha cabeça e isso me causava uma dor imensa. Então, eu entendi, que se não melhorasse isso, eu jamais seria capaz de fazer Miguel feliz dentro desse relacionamento. Me afastar dele foi a coisa mais difícil que eu já fiz na minha vida, mas foi a atitude mais correta que eu já tomei.
Dafne chorava. A emoção por cada palavra que eu disse tomou conta dela Eu nuca havia visto Dafne tão vulnerável e tão emocionada.
- Eu estou aqui, tendo você, minha irmã e melhor amiga, esse céu estrelado, e seja lá qual ser vivo que esteja a nossa volta nesse lugar - digo com graça. - como sendo testemunha, de que a Clarissa reclamona, teimosa, controladora, pacata e se graça, não existe mais. E, que se um dia, eu achar que não consigo, eu vou me reerguer três vezes mais forte. - De dentro do bolso, peguei meu caderninho de lamentações e rasguei folha por folha, jogando cada uma na fogueira.
As lágrimas em meu rosto caía sem parar. Minhas mãos tremiam e meu coração batia forte. Era como se aquele caminhão que passara em cima de mim, destruindo cada célula do meu corpo, fosse finalmente contido.
Dafne foi até mim num abraço longo e apertado. Não precisava dizer nenhuma palavra. Nossos corações já diziam muito.
Ainda havia algumas folhas no caderno, estava na hora de escrever um novo capítulo para minha história.
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