Capítulo 2
"A fibromialgia é ingrata e cotidianamente ceifa uma parcela de vida de seu portador. A fibromialgia dispensa planejamento ou qualquer respeito quando o assunto é te colocar na dor, você não consegue fugir dela. Há momentos que a dor é tão intensa e insuportável que te inibe de qualquer resquício de vida. Você se fecha num casulo e de lá não quer sair". (Diane Bergher).
Março de 2017 — Segunda consulta — Uma semana depois.
Miguel estava para chegar a qualquer momento. Minhas mãos tremiam anunciando o meu nervosismo sem nem mesmo saber o motivo, ou talvez eu soubesse. Conversar com as pessoas, a cada dia se tornava uma novidade, já que minha família me visitava o menos possível. Não tinham paciência para as minhas lamentações ou minhas crises de estresse.
Senti náuseas após a medicação e nenhuma posição me livrava desse mal estar. Eu odiava ter que fazer aquilo constantemente e chorava todas as vezes que me encontrava presa dentro de mim mesma. Corri ao banheiro e vomitei, chorando em seguida. Acordar era um desafio.
As pessoas enlouquecem quando permanecem sozinhas durante muito tempo, e nisso eu tinha que concordar com Miguel. É da natureza do ser humano ser sociável e a falta de socialização acaba por atrofiar todos os seus sentidos. Droga! Admitir isso fazia eu me sentir ainda mais imponente. Senti uma movimentação na porta e sequei as lágrimas apressada, fingindo indiferença. Lavei minha boca e fui até o quarto.
Era ele. Encarou-me e eu tentei não manter contato. Sentei-me na cama esperando por sua reação. Aproximou-se puxando uma cadeira e sentou próximo a mim.
– Como tem passado esses dias, borboleta?
– Normal. O mesmo tédio de sempre. E eu já disse para não me chamar de borboleta.
– Você não me disse seu nome, então... Mas me diga, ninguém veio te ver? Por que não deu uma volta pelo jardim?
– Pra que? Conviver num ambiente em que você foi forçada? Olhar para as pessoas e não se sentir parte delas? Ou se cansar logo que chega até o final do corredor?
– Talvez se você se abrisse comigo seria mais fácil.
– Pode tirar minhas dores? Trazer minha vida de volta?
– Isso depende de você.
– Então você pode ir embora.
– Estão me pagando muito bem para cuidar de você.
– Já te disse que você é o pior psiquiatra que existe?
– Já. Mas eu amo o que eu faço acima de tudo. Eu aprendo com os meu pacientes. Uns são mais difíceis outros são mais fáceis, como tudo na vida. Mas eu não posso fazer nada se você não se ajudar. – explicou naturalmente.
– Eu não sei como fazer isso. Eu não consigo aceitar essa condição que a vida me impôs. Sabe o que é viver um dia após o outro como se estivesse vegetando porque qualquer movimento lhe machuca? Cancelar compromissos e não conseguir... Não conseguir manter um relacionamento porque você não tem forças para fazer qualquer coisa? Quem me aguentaria se nem eu mesmo me aguento? Sair do casulo dói. – tento esconder meu desespero, mas era quase impossível e o contato tão próximo com ele, tornava essa tarefa ainda mais difícil.
– E você acha que uma borboleta não sente dor quando sai de seu casulo? Imagina a força imensa que elas devem fazer para se livrar daquele lugar extremamente apertado?
– Eu sei. Mas, depois disso tudo, elas ainda vão voar lindamente, batendo suas asas sem que nada as impeçam.
– Não? E o tempo? E os predadores?
– É mais difícil quando o predador mora com você.
– Escuta, o primeiro passo é você deixar alguém se aproximar.
– Pra que? Para que eu me apegue a essa pessoa e depois disso ela se afaste de mim? Pra que um simples toque me cause dor?
– E quem foram as pessoas que se afastaram? Família, amigos, namorados, talvez?
Não respondi. Tocar naquele assunto era como tocar na própria ferida, mas o meu silêncio acabou confirmando suas perguntas.
– As pessoas não sabem lidar com os problemas dos outros e isso é uma característica própria do ser humano. Não culpe seus familiares, seus amigos, ou até aquele rapaz que desistiu de você. Se não sabem cuidar de seu próprio obstáculo, como cuidarão dos de outros? Eles não saberiam lidar e talvez a prejudicariam ainda mais.
– Claro, e me colocaram aqui justamente para isso. — revirei os olhos, nitidamente irritada.
– Porque eles acreditam que você terá um tratamento melhor do que aqueles que eles podem te oferecer.
– Eu não vejo assim.
– Seus olhos estão vendados, borboleta. E isso é normal.
Pressionei meus lábios a fim de controlar minhas emoções, mas foi em vão. Logo meu rosto estava molhado. Queria que as coisas não chegassem a esse ponto. Aceitar a situação era demais para mim que tinha tudo na vida. Senti vergonha ao chorar na frente de Miguel. Seu olhar indiferente só me fez sentir ainda mais constrangida.
– Acho melhor você ir embora. – tento me recompor.
– Por que não quer que eu a veja chorando? Qual o problema?
Sequei minhas lágrimas.
– Você não me parece uma pessoa muito normal – disse entre soluços e ele riu.
– Ninguém é normal. A normalidade é regrada, segue uma habitualidade. Mas cada um se comporta de um jeito. Cada um se sente de um jeito. Chore sempre que tiver vontade. Eu sou um ser humano como qualquer outro e não vou julgá-la pelas lágrimas.
Olhei para ele pensando se poderia ou não confiar. Por fora ele era intimidador, mas por dentro parecia ser um total oposto e eu ainda estava em dúvida em qual dos seus dois lados eu deveria me importar. Em todo caso, qualquer empatia que eu tivesse, sabia que quando terminasse, eu sofreria.
– Já que não consegue se desabafar e não quer conversar, eu vou ouvir uma música. Se importa?
Dei de ombros, embora minha vontade fosse de gritar. Sentia raiva por ele ser daquele jeito. Como se estar ali fosse uma obrigação. Encostei meu corpo sobre a cama e fechei meus olhos. Não havia nada para ser feito a não ser descansar, descansar e descansar.
Sem nenhum barulho eu poderia muito bem dormir, quando de repente uma música tomou conta do ambiente. Tinha uma batida intensa e uma pessoa gritando sem parar. Franzi o cenho e me senti incomodada por toda aquela gritaria. Eu detestava aquele estilo. Era como se minha vida estivesse em uma completa bagunça e eu estava desistindo de tudo.
Levantei-me rapidamente a fim de cessar a música.
– Está precisando de fones de ouvido ou está tentando poupar de estourar seus tímpanos com toda essa gritaria? Como alguém consegue ouvir isso? Se está incomodado com o silêncio, retire-se.
Miguel não pronunciou nenhum movimento. Pelo contrário, ele simplesmente sorriu de lado e eu achei que ele mudaria de música, mas continuou me encarando.
– Você escutou o que eu disse? Desliga esse celular!
– Por que? – decidiu se manifestar.
– Porque eu estou pedindo. Tá querendo me matar?
Ele riu e minha raiva aumentou. Miguel mudou de música indo a um sertanejo raiz. Como alguém tão louco quanto ele poderia ser um psiquiatra? Pensei. Bufei quando a música ecoou em meus ouvidos. Fiz uma careta involuntariamente, irritando-me com a sua tranquilidade e a capacidade de me incomodar.
Assim que tivesse oportunidade, mandaria trocar de terapeuta ou simplesmente pedir para que não me mandassem mais nenhum. No fundo eu rezei para que Miguel fosse como todos os outros e acabasse desistindo.
De sertanejo ele foi para o samba. Conseguia ser tão pior quanto os outros dois estilos que ele havia colocado. Ele estava me testando e eu praticamente implorei para que ele desligasse o aparelho.
– Escuta, dá para parar de ouvir essas porcarias e me deixar em paz? Você vai me deixar ainda mais louca.
Toda aquela agitação me deixava cansada. Meu corpo tremeu e por pouco não me desabei pelo que ele estava fazendo comigo. Fechei meus olhos tentando me acalmar e voltei a me deitar, mas estava impossível. Tapei meus ouvidos para não ouvir aquilo, mas de fundo era possível escutar a melodia.
Então meus nervos se acalmaram instantaneamente. Aos poucos a minha raiva estava se esvaindo dando lugar a várias sensações. Sentimentos que eu sentia muita falta. Lágrimas rolaram sem que eu percebesse, assim como meu corpo que arrepiou. Dirigi minha atenção ao nada deixando a música invadir meus ouvidos indo direto a minha alma. Minha respiração estava ofegante e eu acabei sorrindo. Uma mistura de sentimentos que tocavam os meus mais profundos instintos.
Internamente pedi para que Miguel não parasse a música. O som do violino era como morfina e me dava saudades. Voltei ao passado em minha primeira apresentação. Lembrei-me do dia em que eu havia conhecido Richard e o último dia em que eu me apresentara. Deixei escapar um soluço quando Miguel desligou de vez e esperou para que eu me dirigisse a ele.
A única conversa que havia era de nossos olhos, concentrados um no outro, ambos esperando por alguma reação. Sentia falta de tocar. Era o que me dava mais prazer, o meu verdadeiro refúgio.
– Controladora, perfeccionista, sensível, séria e perdida. — quebrou o silêncio e a conversa constrangedora entre nossos olhos.
– O que? – perguntei confusa.
– São suas características.
Ajeitei-me na cama tentando compreender como ele havia conseguido captar aquilo.
– Você não me conhece.
– Suas reações diante de cada música fez com que você se entregasse, deixando sua personalidade e seus instintos se aflorarem.
– Não sou nada disso. Eu era feliz, feliz com minha família, meus amigos e meu noivo. Nada do que você disse faz sentido.
– Seu estilo musical pode dizer muito sobre quem você é. Uma pessoa pode ser eclética, mas ela sempre penderá para um lado maior que o outro. Isso faz com que ela se comporte de várias maneiras, em diversas ocasiões, mas ao final, ela será sempre a mesma coisa. Não tenho dúvidas de que era feliz. Mas não significa que as outras qualidades também não a definam.
– Qualidades?
– O único defeito é o excesso ou a falta. Enquanto se tem um equilíbrio, são sim, qualidades.
– Não me vejo como uma pessoa controladora, muito menos perfeccionista. – desviei meu olhar, incomodada, lembrando-me do quanto minha irmã insistia em me chamar de sistemática.
– A gente não enxerga a nós mesmos. É como se precisássemos dos outros para nos dizer quem somos e ditar quem devemos ser. Mas sim, você é uma pessoa controladora e o fato de você perder essa qualidade te faz entrar e desespero. Não ter controle sobre sua vida. Por isso está aqui.
– Eu estou aqui porque tenho uma doença incurável. Não por ser controladora. – minha voz saiu mais agressiva do que eu gostaria.
– Sim. Você é. E é teimosa também. Mas a doença tomou conta de você e é ela quem tem o controle sobre o seu corpo. Pra uma pessoa que sempre teve poder, isso é desesperador, pois você não sabe como agir e sua vida começa a ser uma bagunça. Pensa borboleta, o gosto pela música clássica define que você não teve uma vida com grandes aventuras e isso se evidencia pela sua falta de vontade em conhecer e descobrir novos gêneros. O medo do novo é uma característica das pessoas controladoras.
Engoli seco. Sem perceber eu estava me abrindo para Miguel. Ele me cutucava, fazia com que eu fosse obrigada a respondê-lo mesmo contra a minha vontade.
– Eu não tenho culpa por gostar de música clássica.
– Não. Não tem. Eu adoro rock, me sinto livre. Liberdade me define quando eu escuto. É como se eu desrespeitasse as regras e agisse do jeito como eu bem entendesse. Mas é claro, descumprir regras não é algo legal a se fazer, mas fugir um pouco dos padrões da sociedade é libertador. O rock é visto como uma contracultura ainda nos dias de hoje. Por isso, muita gente se esquiva, mas isso não me faz um cara ruim. De certa forma, nossos gostos musicais se divergem demais. Não estou dizendo que você é controladora porque escuta música clássica, ou quem escuta esse gênero são somente pessoas controladoras. É um gênero mais fino, mais tranquilo e que representa a cultura erudita. A sua reação diante dos demais estilos, definem sua personalidade, a sua essência.
– Isso não faz sentido – dei de ombros querendo mudar de assunto.
– Faz sim. Mais do que você imagina. Aliás, eu não mudaria a música só porque você pediu. – piscou e então eu entendi sua indireta.
– Você deveria me agradar e não agradar a si mesmo. Por que colocou várias músicas?
Ele riu.
– Está vendo. Por que acha que eu tenho que agradá-la?
– Porque você é meu psiquiatra e eu sou sua paciente. Você tem que me relaxar, não me deixar com raiva.
– Quem disse?
– Pessoas nervosas, estressadas procuram por vocês.
– Não exatamente. Pessoas que não conseguem lidar com suas emoções, nos procuram.
– Quer dizer que se eu estiver bem eu posso procurar um psiquiatra?
– Por que não? Um psiquiatra talvez não, mas um psicólogo é mais provável. Pedir alguns conselhos de como agir diante de certas circunstâncias. Te ajudar a enxergar algumas coisas que estão obscuras. Não pense que porque sou médico eu não precise de ajuda em alguns momentos.
– Continua sem sentido.
– Respondendo a sua pergunta, eu coloquei várias músicas porque você não se abriu comigo da forma como eu gostaria. As músicas te fizeram reagir de algum jeito e isso fez com que eu conseguisse arrancar algo de você.
– Isso é invasão de privacidade – tentei mostrar a ele o quanto eu estava irritada com aquilo tudo.
– Não é não. Mais cedo ou mais tarde você se abriria.
– Você continua não sabendo quem eu sou.
– Eu sei muito mais do que você imagina.
– Sério? – ri debochada – A única coisa que você sabe é que eu gosto de música clássica e o que você acha que sabe sobre mim em relação a minha personalidade.
– E isso te faz bem?
– Isso o que?
– Esconder o que você é, o que você sente.
– Eu... Eu... As pessoas não me julgam se eu me mantiver assim.
– E como você se julga?
– Eu não sei. Não sei mais quem eu sou. Talvez um vegetal ou um zumbi.
– Você precisa procurar por algo que te motive.
– O que me motivava era o violino. Tocar me motivava e isso me foi proibido.
–Há outras coisas além do violino.
–Que toque tão profundamente a minha alma a esse ponto, acho difícil. Além do mais, qualquer outra atividade me atingiria com dores fortíssimas. Fora o violino, o que de certa forma me ajudava, era minha família, as pessoas que eu amava, e então, tudo isso me foi tirado, por culpa dessa maldita doença. A fibromialgia é cruel, machuca não somente os meus músculos, mas o que eu sou. O meu interior, a minha alma. – disse mais do que deveria, estava empolgada, estressada e acabei indo além.
– Fibromialgia? – fez uma expressão de desentendido.
– Acho que me excedi, já deu nosso horário, não?
Miguel olhou para o seu relógio de pulso e eu sabia que ainda faltava um tempo para a consulta acabar, eu queria ficar sozinha.
– Na verdade temos uma hora ainda. – bufei irritada. – Vai me dizer o que se passa com essa doença?
– Internet, conhece? Procure por lá e você vai saber, só não me peça para ter que explicar isso.
– Você costuma se soltar mais quando está sob pressão. Escuta, eu sei que sente medo de se expor, expor o que sente, mas é necessário para o seu tratamento.
– Eu estou cansada. Pode ficar em silêncio?
Ele concordou a contragosto. Talvez tivesse entendido o quanto aquilo me abatia e que não conseguiria qualquer sucesso naquele momento. Eu apenas me virei na cama sentindo as lágrimas rolarem novamente.
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Huuum... esses dois vão se estranhar muito ainda. Clarissa é difícil, mas Miguel é persistente.
Vamos ver o que ele vai aprontar.
Ainda não me decidi os dias de postagens, mas assim que tiver definido, eu aviso a vocês.
Muitas borboletas em seus corações....
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