Capítulo 18
Abril de 2017 — Décima quinta consulta
Miguel
Estava a olhar aquela grande tela branca a minha frente. Fazia um bom tempo em que não nos víamos. Em que eu não lhe contava minhas lamentações e fúrias e, por algum motivo, achei que seria prudente fazer aquilo naquele momento.
Eram tantas cores. Tantas ideias as quais eu queria recusar. Porém, algo dentro de mim apenas dizia: “Siga em frente”. E então, os primeiros traços começaram a surgir. Minhas mãos tomavam conta sem que minha mente fizesse alguma ideia do que sairia ali. Eu apenas segui minha voz interior.
— Vai ficar aí me olhando, ou vai fazer logo sua pergunta? — questionei minha irmã que estava escorada no batente da porta encarando-me incansavelmente.
— Eu não queria te atrapalhar num momento tão íntimo, mas, já que deu liberdade... O que deu em você?
Suspirei.
— De verdade? — olhei para ela — Não faço a mínima ideia. Apenas deu vontade. E o pior, nem eu mesmo sei o que estou fazendo.
— Achei que nunca mais pintaria.
— Eu também — digo encarando a tela.
— Uma coisa que eu nunca entendi... Por que parou de pintar quando nossos pais se separaram se era esse o seu refúgio? Não deveria ser ao contrário?
— Eu acreditei que fosse, mas estava enganado. — Melissa se senta ao meu lado como se pedisse para eu dar continuidade à história. — Eu retratava meus sentimentos de fúrias, minhas decepções e frustrações, e acreditava que aquilo me faria bem, porém, eu olhava para a tela com todos os seus traços de fúria e ficava me lembrando do motivo pelo qual aquela imagem estava ali. Aquilo me aprisionava ainda mais.
— E o que fez pra descarregar o estresse?
— Procurar por aquilo que me divertia. Que me fizesse esquecer e não lembrar. Que me fizesse entender que eu não poderia mudar aquela condição. Quando tocam no assunto de nossos pais, hoje já não dói na mesma intensidade.
— Não seria porque viemos pra cá?
— Pode ser. Acho que isso ajudou. Sem contar as minhas aventuras nas alturas. Quer algo mais libertador que voar ? É o que eu falo para Clarissa, procurar por aquilo que te faça esquecer que você tem problemas os quais você sabe que não pode resolver. Apenas, aceitar e aprender a lidar. A viver e a conviver.
— Você fala tanto nessa Clarissa que estou com vontade de conhecê-la.
— Sabe que não faltará oportunidade — falo acabando de ter uma ideia. — Se você não fosse para o lado de exatas, te contrataria como minha secretária. Ultimamente, anda me dando muitas ideias.
— Ou você que anda muito inspirado — levou seu olhar para a tela. — Mal posso esperar para ver o que sairá daí. Ou melhor, dessa sua mirabolante cabeça. — levantou-se se despedindo e saiu.
No dia seguinte, Clarissa teria yoga. Fiquei o dia todo imaginando o desastre da vez. O que pra ela era uma martírio, para mim era diversão garantida. E, só de imaginar, eu já estava dando risada.
Ela já estava pronta quando eu cheguei. Usava uma calça jeans e uma regata. Sentia que Clarissa não se sentia a vontade com tais roupas, faltavam-lhe alguns acessórios, faltava-lhe vivacidade, e que melhorava quando a mesma sorria.
Surpreendi-me quando a flagrei lendo um livro. Era Bagagem de Adélia Prado e ela estava tão concentrada na leitura que, se tivesse mais tempo, eu não ousaria nunca, despertá-la.
Limpei a garganta e Clarissa não me ouviu. Na terceira tentativa, ela apenas dirigiu seus olhos de encontro aos meus. Seu semblante não era nada empolgante. Clarissa parecia nutrir alguma espécie de raiva e, confesso, se não a conhecesse muito bem, poderia ficar até amedrontado.
— Eu não fiz nada, eu juro. — estiquei a mão em sinal de rendição e Clarissa apenas semicerrou os olhos.
— Claro, quem o vê assim, parece ser tão inocente.
— Mas eu sou. Juro que não fui eu.
— É sempre você, Doutor Miguel — ironizou a última parte.
— Isso me lembrou do nome de um livro — coloca o indicador no queixo fingindo-me de desentendido. Clarissa dá um suspiro agudo e deixa o livro de lado.
— Qual a próxima vergonha que eu terei que me submeter dessa vez?
— Próxima vergonha? Não sei do que está falando? — tento conter um riso.
— Lógico, porque você está se divertindo com isso.
— Sim, e deveria ser divertido pra você também.
— Porque passar vergonha é tão emocionante.
— Borboleta, você está em processo de aprendizagem. Lembre-se, ao tirar as rodinhas, até que se tenha o equilíbrio total da bicicleta, muitos tombos podem ocorrer.
— Você anda com um dicionário, uma enciclopédia... Já sei, você tem o google implantado na sua cabeça?
— Oh borboleta, assim você me deixa encabulado. Não sabia que me achava tão inteligente. — finjo estar tímido e ela revira os olhos.
— Na verdade, eu não te acho inteligente, acho que deveria ser estudado. De onde encontra tantas metáforas?
— As metáforas dão sentimento a realidade, dão vida a monotonia, e enriquecem a vida em sua normalidade.
— Ainda acho que deveria ser estudado. Gente normal não pensa essas coisas.
— Eu sou o pior, lembra.
— E como esquecer? Você faz questão de me lembrar disso sempre.
— Preparada para nossa próxima aventura?
— Se eu disser que não você me carrega no colo, então. Acho que sim.
— Ainda bem que aceitou. Você é muito pesada para ficar te carregando.
Ela abriu a boca furiosa.
— Pois deveria me carregar mais vezes pra ver se cresce esses músculos, tão fraquinhos, tão pequeninhos.
— Está querendo que eu te carregue no colo mais vezes? — perguntei curioso e ela se levanta de supetão.
— Não vale usar os meus argumentos contra mim.
— Ah! Você pode fazer isso e eu não?
— Eu sou a controladora da história, lembra?
— Vamos ver por quanto tempo. — sorri.
O tempo não estava dos melhores. Nuvens escuras cobriam o céu naquela tarde e um vento forte insistia em tomar conta da cidade. Curitiba começa a dar os primeiros sinais de queda da temperatura, mas queria que Clarissa fizesse as aulas para que a mesma não desanimasse, pois convencê-la novamente seria uma tarefa extremamente difícil.
Clarissa pegou seu tapete e colocou ao lado das demais alunas, enquanto eu observava tudo pelo vidro. Como sempre, ela estava com vergonha. No fundo, ela não era uma moça tímida, ou, como enfrentaria toda aquela multidão de espectadores? A verdade era que ela tinha receio de sua doença falar mais alto. De não ser boa o suficiente para realizar tal fato, ou por se sentir inferior as belezas das demais mulheres por ter seus cabelos cortados.
A professora apresentou Clarissa para as demais alunas. Sua expressão de nervoso e constrangimento chegavam a ser preocupante, mas eu sabia que Clarissa era forte para aguentar mais essa.
— Agora, cruzem as pernas em posição de índio, relaxando os braços nas pernas. Postura ereta, olhos bem fechados e... respirem. Viajem para outra dimensão. Deixem sua alma levarem vocês da realidade e imaginem um lugar onde queriam estar, ou como queriam ser. Imaginem que todos os seus sonhos se realizaram.
Clarissa tinha um olho aberto e outro fechado, provavelmente bisbilhotando suas companheiras, ou então, achando aquilo tudo muito estranho. Ela me viu por trás do vidro e, ainda com um olho fechado, tentou dizer algo que eu não consegui entender. Apenas fiz sinal para que ela se concentrasse. A contragosto, assim ela fez.
— Abrem os olhos. Agora, ficaremos de joelhos no colchonete, e deitaremos por cima de nossas pernas. Isso ajudara a alongarmos nossa coluna e a descarregar o peso de um longo estresse.
Borboleta fazia caras e bocas a cada novo movimento. Eu apenas dava risada, sem perder nada. Ela estava se saindo melhor do que nas aulas de natação. Pelo menos até na posição de elefante.
Equilíbrio de fato não era o seu dom. E por isso mesmo, achei que tanto a natação quanto a Yoga deveriam permanecer na sua rotina de agora em diante. Clarissa caiu umas cinco vezes. Isso quando conseguiu erguer alguma parte do tronco, pois antes, apenas dava uns pulinhos para pegar impulso. Eu sei, Clarissa estava coberta de razão, eu era o pior psiquiatra do mundo, ainda mais agora que eu não conseguia parar de rir com toda a sua falta de coordenação.
— Agora, nós iremos para a posição borboleta.
— Sim!
—Algum problema?
— A senhora disse borboleta.
— Sim, é uma posição para tirar o cansaço das pernas. Melhora a flexibilidade da virilha e do quadril. — a professora sorri e Clarissa corresponde cinicamente lançando seu olhar fatal para mim. Apenas coloco a mão na boca tentando conter um riso.
Ao final da aula, como já era esperado, a chuva nos pegou. Clarissa, como de costume, começou a reclamar. Por vezes pensei em mudar seu apelido de borboleta para senhora das lamentações. Tirei o meu casaco e o fiz de proteção para cobrir nossas cabeças.
— Miguel, eu não posso correr.
— Qual é borboleta, não posso te carregar no colo dessa vez.
— Eu não quero que me carregue, mas se eu correr, eu posso cair e me machucar, sabe quanto tempo eu levo para me recuperar?
— E qual é a sua sugestão?
— Que esperemos a chuva passar.
— Sabe muito bem que ela não passará.
— Por que não trouxe um guarda-chuva? — ela gritava devido ao barulho aguda das águas.
— Vim desprevenido.
— Olha só, o doutor sabe tudo veio desprevenido. — aquilo estava me irritando e Clarissa estava me tirando a paciência.
— Pode, por favor, calar essa boca. — gritei me arrependendo logo em seguida.
— Você não disse isso! É muita petulância de sua parte. Não manda uma mulher calar a boca.
Abri a porta do carro.
— Pronto, senhorita reclamona, agora entre logo nesse carro.
— Não vou entrar. Seja educado.
Grunhi tentando me controlar. A aula de Yoga fazia efeito contrário a Clarissa.
— Querida borboleta, poderia, por gentileza, entrar no carro para que possamos ir embora?
— Pede desculpa primeiro. — ela fez bico. Pra falar a verdade, ela parecia realmente machucada.
Encarei seus olhos, agora um pouco escuros devido a chuva. Senti-me um verdadeiro idiota naquele momento por ter sido tão rude, e olhando no fundo de seus olhos, pedi desculpa.
— Desculpa. Não queria ser grosso com você. Prometo não fazer mais isso.
Ficamos nos entreolhando por algum tempo. Por um instante, parecia que não havia mais nada além de mim e Clarissa. Despertamos quando um trovão nos assustou.
— Acho melhor você entrar.
Quando chegamos, a chuva não deu nenhum trégua. Ela continuava a cair incansavelmente. Meu casaco aquela altura já estava encharcado, de modo que não serviria mais. Clarissa tremia de frio. Abracei-a conduzindo-a para dentro da clínica, porém ela se afastou, acelerou os passos e se virou para mim.
— Borboleta, o que está fazendo? Precisamos entrar. Você pode pegar um resfriado.
— Me dê alguns minutos Miguel. É só o que eu lhe peço.
— O que houve?
— Isso é tão humano. Tão... vida.
— Isso o que?
— Sentir a água da chuva tocar sua pele. A sensação é tão boa. Todas as vezes que eu for fraca, me leve para tomar uma banho de chuva?
— Você é maluca. Vai pegar um resfriado.
— Promete, Miguel.
— Prometo.
— Com certeza. Você está dizendo isso por dizer. Promete que irá me levar para tomar banho de chuva?
— E se fizer sol?
— Você é o Doutor Miguel, lembra. Deve procurar por aquilo que substitua a chuva para me trazer a mesma sensação.
Não pude deixar de sorrir. De fato, eu estava devidamente orgulhoso.
— E por que está pedindo isso a mim?
Ela ficou em silêncio. Encarando o nada, sem se preocupar em estar totalmente encharcada.
— Porque você enxerga a mim. A Clarissa que eu sou. E não se sente afetado com isso. — deixa umas lágrimas e um soluço escapar.
— Borboleta... Eu...
— Clarissa. Me chame de Clarissa.
Sorri.
— Eu gosto de te chamar de borboleta.
— Oh não. Isso está contagiando as pessoas.
— Como a professora de natação? — questionei.
— Como a professora de natação — ela confirmou sorrindo.
— Achei que não gostaria que eu soubesse seu nome, por isso não disse a ela.
— Espera! Você sabia esse tempo todo o meu nome? — ela parecia realmente surpresa.
— Ora borboleta, que espécie de médico eu seria se não soubesse o nome dos meus pacientes.
— Então, por que...
— Quando me dissesse seu nome, eu saberia que havia conquistado sua confiança. Aliás, eu já te chamei pelo nome algumas vezes e você nem sequer percebeu.
— Miguel, você é o pior psiquiatra do mundo, sabia? — riu.
Clarissa tremia de frio, o que me preocupou. Sabia perfeitamente que os fibromiálgicos tinham uma imunidade mais baixa e, pedi que as enfermeiras a banhassem com um banho bem quente, e lhe dessem chás e sopas. Queria que ela estivesse disposta o suficiente para dar continuidade ao tratamento.
Diante de toda aquela agitação, Clarissa acabou adormecendo. Eu estava feliz com o grande avanço que tive. Mas ,principalmente, porque a borboleta estava dando seus primeiros impulsos para sair do casulo.
Sim, eu chorei escrevendo. Não sou de ferro.
O que acharam, borboletas?
Vai um Miguelicia aí? Ops, um lencinho aí?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro