capítulo 17
Abril de 2017 - Décima quarta consulta
— Bem, a única coisa que por enquanto está certo é que iremos a um neurologista, depois em uma nutricionista e, por fim, acredito que umas aulas de yoga podem muito bem te ajudar no tratamento.
— A única coisa certa? – perguntei querendo certificar-me de que ele tinha dito aquilo mesmo.
— Sim, por quê?
— Tem mais coisa aí?
—Lógico, borboleta, é um tratamento intensivo, lembra?
Suspiro cansada e encaro a minha sobremesa quase desanimada em comê-la.
— Sabe o que é mais difícil pra eu ter que lidar com todo esse tratamento? – ele fez que não com a cabeça e tinha um olhar curioso. — Acreditar que viverei a minha vida inteira apenas disso. É como seu eu não pudesse fazer outra coisa. Como se eu não pudesse sair porque tenho que ir a uma fisioterapeuta, como seu não pudesse trabalhar porque tenho nutricionista às oito da manhã e não posso sair para um happy hour com minhas amigas porque tenho consulta a noite.
— Normalmente as consultas são no período da manhã e a tarde.
— Miguel, foi apenas um exemplo. Você realmente entendeu o meu ponto de vista? — questionei-o, um pouco irritada.
— É claro que eu entendi, mas não podia perder a oportunidade de te deixar irritada. — ele riu. Era uma risada tão gostosa ,a qual eu vivia me perguntando de onde ele encontrava tanta leveza. — O mais importante é você saber encontrar tempo para fazer todas as suas atividades e, como seu psiquiatra particular, eu a acompanharei nessa jornada.
— Eu não sei se consigo. Não sou forte para isso.
— Aproveita enquanto eu estiver do seu lado para te carregar quando você cair. Depois de darei mais liberdade. Digamos que você aprenderá a andar de bicicleta novamente, eu serei as rodinhas dela, as quais você irá tirando cada vez que tiver mais confiança, até que chegará um dia em que não precisará mais de mim.
— Você não vê a hora de se livrar de mim, não é mesmo?
— Achei que fosse isso o que você queria.
— E ainda quero. Mas não com a mesma intensidade. –dei de ombros e foquei no meu café que por sinal estava uma delícia.
— Pois bem. O que me diz de natação?
Engasguei.
— Detesto água. Morrerei afogada. Sem chance. — Miguel pegou um caderno de sua pasta e começou a escrever sem que eu pudesse ver.
— Dança?
— Legal, mas definitivamente não. Não levo o menor jeito. Sou muito tímida para isso.
— Tirolesa?
— Está brincando né? — ele sorri maliciosamente e começa a escrever em seu caderno novamente. — O que tanto escreve aí?
— Asa delta?
— Miguel, você está naqueles joguinhos de soltar palavras aleatórias para que eu demonstre minhas emoções é isso? Espera! — encarei-o assustada — Você disse asa delta?
— Asa delta? Onde? — ele olhou pela janela como se estivesse procurando por uma.
— Você disse. Não se faça de cínico.
— O que? Quem disse asa delta? Eu? Acho que você se confundiu. Eu disse: Olha aquela menina esbelta.
— Miguel! — repreendi-o — Você me irrita sabia? — cruzo os braços enquanto o mesmo apenas solta sua gargalhada.
Depois do nosso café, Miguel me levou até a clínica. Eu não poderia exigir que ele ficasse mais um pouco, aliás, não existia apenas a mim de paciente e exigir a atenção exclusiva dele, seria abuso e egoísmo demais. Deveria eu me contentar apenas com as borboletas até que a próxima semana chegasse pare vê-lo novamente. Porém, ele havia feito uma promessa, e Miguel sabia perfeitamente que eu cobraria.
— Você prometeu que leria o restante de Orgulho e Preconceito para mim. Posso ter uma crise de nervos novamente se não o fizer. — digo enquanto ajeito-me em minha cama.
— Está me chantageando, borboleta?
— Doutor Miguel, assim o senhor me ofende. Onde já se viu, eu uma moça debilitada, sem forças para sequer contestar as respostas afiadas e diretas de meu psiquiatra. Imagina que teria forças para tamanha trapaça. — minha ironia era evidente.
Miguel cruzou os braços, mordendo os lábios, tentando esconder mais um sorriso de sua coleção. E eu fazia o maior esforço para me manter séria.
— Certo — ele pega o livro ao lado da cabeceira e se aconchega na beirada da cama. — Onde paramos?
— Capítulo sessenta, onde Elizabeth pergunta a Darcy como ele se apaixonou por ela.
— Isso significa que estamos no final? — ele enruga a testa.
— Eu não sei, quem está lendo é você. — Faço-me de desentendida.
— Ah borboleta, você merecia um belo castigo pela sua teimosia, mas... dessa vez passa.
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Uma semana havia se passado e, por mais que eu detestasse admitir, estava ansiosa para ver Miguel. De certa forma, meu psiquiatra conseguia fazer com que eu saísse da monotonia, trouxesse movimentação em minha rotina. Ele era diferente. O pior, sem qualquer dúvida, mas talvez fosse o mais perfeito. Estava nervosa. Andava de um lado para o outro e quase roendo as poucas unhas que me restavam . Queria saber o que Miguel estava planejando para aquele dia.
Então ele entrou — sim, simplesmente entrou, sem se dar nenhum trabalho em bater a porta.
— Quer me matar do coração? Eu poderia estar nua. Você é maluco?
— Não seria a primeira vez a me chamar assim.
— O mesmo Miguel de sempre — reviro os olhos e sento-me no sofá.
— Saudades?
— Nem um pouco. — dou de ombros.
— Então vamos logo para você matar a saudades e aproveitar o dia.
— Eu quero é matar você, isso sim — digo irritada e, como de costume, ele apenas se diverte.
Como combinado, Miguel me levou a um neurologista. Fiz exames que nem sabia que existiam e eu praticamente dei uma aula sobre fibromialgia ao meu médico, explicando tudo o que eu sentia e o que cada remédio me provocava. Ao final, saí com uma lista intensa de diversos remédios a serem tomados.
Eu sabia que estava ficando chata, mas não me contive em reclamar a todo momento por ter que estar me submetendo aquilo e, a cada reclamação, Miguel não perdia a oportunidade de contar. Só fiquei calada quando o mesmo ameaçou me deixar sozinha no meio da rua. Claro, isso não me impediu de continuar, porque acreditava piamente que Miguel não seria capaz disso, não até ele entrar no carro dar partida e sair com o carro de modo que eu o perdesse de vista. Uma mistura de medo, raiva, ódio, e confusão, tomaram conta da minha cabeça naquele momento. Eu definitivamente não fazia ideia do quão Miguel era audacioso.
Então, ele apareceu. Abaixou o vidro e tirou os óculos de sol erguendo uma sobrancelha.
— Não acha perigoso uma dama ficar sozinha, parada em uma calçada movimentada?
— Diga isso ao meu insano cavalheiro. Se é que posso chama-lo assim. Diria que está mais para um ogro, mas isso seria uma ofensa aos coitados. — dei um sorriso irônico e caminhei como se Miguel não estivesse ali. Definitivamente, eu o mataria se tivesse condições.
Meu psiquiatra continuou me seguindo de carro, porém, meu orgulho falava mais alto.
— Que petulância de seu nobre cavalheiro deixa-la abandonada, uma donzela indefesa que nem sequer seria capaz de achar o caminho de volta.
— É claro que eu saberia achar o caminho de volta — parei de andar.
— Então porque não saiu do lugar os dez minutos em que eu estive fora?
— Porque eu sabia que você iria voltar — menti para mim mesma.
— E se eu demorasse duas horas você continuaria ali?
— É claro que não. — disse tentando parecer convicta, o que óbvio, não funcionou.
— Certo, entre no carro, mas em silêncio, ou eu sumo de novo e dessa vez eu não apareço.
— Quem disse que eu quero entrar? Não preciso de carona. – continuei andando.
— Tudo bem – ele acelerou e, por um instinto, saí correndo e gritando por ele que, graças a Deus, parou o carro.
— Você é um idiota Miguel. Um verdadeiro idiota. — digo ao entrar no carro. — O pior e o mais terrível psiquiatra do mundo. Sabe o que essa correria vai me causar amanhã, não sabe?
— Olha só, que correria, não? Está quase uma Paula Radcliffe*.
— Miguel, como consegue ser tão insuportável? Não cansa não?
— Sabe que eu faço essa mesma pergunta desde o dia que te conheci. Você não cansa não? Não cansa se ficar reclamando o tempo todo?
A raiva me consumiu. Sentia meu sangue ferver e ousei dizer mais alguma coisa, mas me contive. Qualquer palavra que eu deixasse escapar o faria ter mais razão. Devido a isso, o carro ficou um verdadeiro silêncio e aquilo estava me incomodando. Miguel, por outro lado, parecia não se preocupar, e eu queria achar alguma coisa para quebrar aquele silêncio infernal.
— Onde esteve enquanto... bem... Ah! Você sabe.
Ele continua atento ao volante e aproveita o sinal vermelho para pegar um pacote atrás do carro, entregando-me, aparentemente, sem nenhuma pretensão.
— Abre!
Olhei para o pacote, desconfiada, afinal, nunca se sabe o que Miguel esconde ou o que ele irá aprontar, mas, assim como toda mulher, eu estava totalmente curiosa para saber o que tinha naquela caixa.
— Oh não! Isso é brincadeira, certo?
— Claro que não. Tenho certeza que servirá em você.
— Não vou usar isso.
— Borboleta, é como se fosse um uniforme, você precisa usá-lo para poder fazer sua aula.
—Ótimo, não vou usá-lo e, portanto, não farei as aulas. Achei que estivesse claro que não irira fazer aulas de natação.
— Quando você falou isso? — fez-se de desentendido.
— Ora, semana passada, enquanto tomávamos café.
— Acho que eu estava prestando atenção na moça esbelta.
— Sendo assim, estou livre das aulas.
— Não, não. Foi pago três meses de natação e espero que você aproveite muito bem eles.
— Você não vai me obrigar.
— Chegamos! — desliga o carro e desce, dando a volta para abrir a porta para mim. — Senhorita borboleta — ele estende a mão e me encara com o semblante mais cínico e irônico de sua coleção. E eu, como uma criança mimada, fiz um bico totalmente infantil.
Meu psiquiatra então, respira fundo e olha o horizonte, como se tentasse, de alguma forma, recuperar a paciência que eu havia lhe roubado — Não me faça te carregar no colo.
— Miguel, você não pode me obrigar a fazer aquilo que eu não quero.
— Se eu não te obrigar a fazer alguma coisa, você não irá fazer nada. Muito menos ir embora.
— Eu sei andar sozinha, tá!
— Muito bem. Agora me mostre se é tão talentosa saindo do carro como é pra andar.
— Já disse que não vou. E ponto final.
Miguel respirou novamente e, num movimento rápido, segurou-me em seu colo, pegou a caixa e fechou a porta. Ou eu estava magra demais, ou Miguel era extremamente forte. Fiquei com a segunda opção quando senti seus músculos fortes me apertarem.
— Miguel, seu psiquiatra idiota. Me põe no chão — gritei balançando as pernas freneticamente. E dei graças por estar de calça jeans, já que ele segurava com firmeza minhas pernas.
Não adiantava eu gritar ou sequer espernear, Miguel era teimoso e petulante demais para tanto. As pessoas a nossa volta pareciam se divertir de toda aquela cena o que me deixava ainda mais irritada e constrangida.
O pior psiquiatra do mundo, não foi capaz de me soltar nem quando chegamos à escola de natação, pelo contrário, ele teve a audácia de conversar com a recepcionista e ainda me levar até a entrada do vestuário.
— Não se atrase. Sua aula começa em cinco minutos e, se não estiver pronta, te buscarei aí dentro, então é bom que esteja vestida. — ele piscou e por mais divertido que seu tom estava, seu semblante era sério. Eu apenas arregalei os olhos, devidamente assustada e rendida.
Vergonha. Esse era o meu real estado. Minhas bochechas queimavam e meu coração parecia estra tentando fugir de uma prisão. O que de fato, não seria de todo errado, já que minha intenção era fugir dali. Estava com os braços atrás das costas. Usava um maiô preto e uma toca, e claro, eu achava aqui ridículo.
Miguel estava parado na porta do vestuário, de costas para mim, os braços cruzados parecendo um segurança. Limpei a garganta para chamar sua atenção e ele se virou, encarando-me dos pés a cabeça. Aquilo somente aumentou o meu constrangimento, lamentei não ter nenhuma arma em mãos.
— Nada mal. — sorriu convencido e eu apenas revirei os olhos. — Podemos acabar logo com isso?
— Claro, é logo ali. — disse apontado para área da piscina.
Eu as encarava com medo. Talvez medo não fosse a palavra exata, mas indisposição por ter que fazer exercícios embaixo d’água. A professora me esperava com um sorriso simpático no rosto, o qual eu não consegui retribuir na mesma proporção.
— Você deve ser a famosa borboleta. Meu nome é Jéssica e serei sua professora de natação. Pode entrar.
Continuava com um sorriso amarelo no rosto tentando assimilar suas palavras. Miguel olhava-me com os braços cruzados e parecia estar se divertindo com minha situação. Parecia não, ele estava. Sem qualquer resquício de dúvida.
— Vai! — Miguel sibilou.
Engoli seco e me aproximei da escadinha. Meu coração brincava de pula – pula dentro de mim. Virei-me de costa e desci, sem conseguir evitar uma careta ao sentir a água fria tocar a minha pele e, quando finalmente entrei, soltei um gemido no mínimo constrangedor, como se a água fosse algo terrível. Eu dava pulinhos dentro da piscina para tentar conter o frio. Enquanto isso, Miguel apenas ria.
— Não precisa ter medo. Apenas relaxe. A piscina é rasa, de modo que não há problema em se afogar. Aos poucos você se acostuma com a temperatura. Bom, acredito que devemos começar com o básico e com o essencial, que seria mergulhar.
— Mergulhar? Isso é necessário? — perguntei sentindo a voz falhar.
— Se você quiser saber fazer qualquer coisa em uma piscina, é preciso saber no mínimo mergulhar. Toma! — ela me entregou um canudinho. — Puxe o ar e solte pelo canudinho, embaixo d’àgua.
Era uma tarefa que parecia ser fácil. E de fato era. Mas eu estava tão nervosa que, ao invés de soltar o ar, eu puxei, engolindo grande quantidade de água, o que me proporcionou uma série de tosses.
— Tudo bem. Ergue os braços e respira fundo. Isso acontece. — Jéssica dava leve batidinhas em minhas costas, tentando pacientemente me acalmar. —Assim que eu me recuperei , achei que seria dispensada, mas a professora insistiu em dar continuidade.
— Certo, vamos tentar novamente.
— O que? Ta brincando né?
— Claro que não. Não vamos desistir na primeira tentativa. Vamos lá, puxe o ar e assopra.
Olhei de soslaio para Miguel que tentava segurar um riso. “Ah se meus olhos tivessem o poder de o fuzilarem, não sobraria uma tatuagem de seu corpo para contar história".
Uma partitura era mais fácil que aquilo. Fechei os olhos, e me imaginei tocando. Segurei o canudo com as mãos e expirei todo o ar, como se estivesse transmitindo aos meus fans, toda a minha emoção.
— Está vendo! Você conseguiu. — soltou Jéssica. — Agora você irá afundar aos poucos o canudo e, quando a água bater próximo ao seu nariz, você solta o canudo.
— Acho que já está bom para o primeiro dia, não acha?
— Claro que não. Temos uma hora e meia. Você aprenderá a boiar ainda.
— Isso é mesmo necessário?
— Vamos lá borboleta, sem moleza.
— Até você me chamando de borboleta?
— Como quer que eu a chame então? Doutor Miguel não sabe seu nome, então...
Novamente olhei para Miguel que, dessa vez, não prestava atenção em mim.
— Deixa pra lá. — balancei a cabeça em sinal de contragosto e fiz o que a professora pediu, ou melhor, ordenou.
Depois de engolir água centenas de vezes, e espirrar cada vez que ela entrava em meu nariz, foi a vez de boiar. A professora serviu como um suporte, e eu tinha que admitir, aquilo era a melhor sensação que eu poderia ter.
— Mantenha o corpo relaxado, porém firme. Precisa encontrar um equilíbrio, ou então, afundará.
Suas palavras me fizeram lembrar Miguel. Com toda certeza, ele as usaria para me dar um sermão. E pensar nisso, fez com que eu percebesse que, talvez, mas só talvez, suas palavras começavam a fazer sentido em minha cabeça.
Oi borboletas, como vão? Perdoem-me a demora. Os dias estão corridos, mas prometo me ajeitar em breve.
O que acharam deste capítulo? Esse dois juntinhos, não sei não hein.
Hahahahaha. Espero que estejam gostando. Um beijão e até logo.
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