Capítulo 3
A noite com Vini havia sido boa, embora não tivesse acontecido nada diferente do que eu almejava. Recebi e dei o carinho e o prazer que esperava.
Já passa das três da manhã quando Vini estaciona na frente da minha casa.
— Quando vamos repetir? — pergunta, beijando meu pescoço.
Fico arrepiada, mas me esquivo. Alguém poderia nos ver.
— Fica tranquila, Mari, meu insulfilm é g5 — diz, e faço cara de paisagem. — É escuro, não dá para enxergar lá de fora.
Ele pega meu rosto e nos beijamos. Sua língua passeia na minha boca e sua mão começa a subir na minha coxa.
— Preciso entrar.
— O que acha de uma rapidinha aqui para fecharmos a noite com chave de ouro?
Sorrio.
— Não seria uma má ideia... — falo em tom divertido e ele logo fica animado. — Se nós não estivéssemos na porta da minha casa.
Na mesma hora destravo as portas do carro no botão que fica no painel.
— Ah, não vai! — reclama ele, encostando o corpo no banco.
— Preciso ir. Acordo cedo.
Pego minha bolsa e abro a porta.
— Você não respondeu a minha pergunta.
— Que pergunta?
— Quando iremos repetir.
— Não sei. Quando tivermos vontade?
— Então amanhã — replica rápido.
Nego com a cabeça, sorrindo.
— Precisamos falar sobre a festa da igreja, Mari...
— Pare de ser falso, prefeito. Sei que não quer isso. E, para o seu conhecimento, a festa já está organizada.
Ele torce a boca.
— Aliás, como foi o jantar de ontem? — indago, já do lado de fora do carro. Agora era a sua vez de fazer cara de paisagem. — Com a riquinha.
— Uma porcaria.
Cerro os olhos.
— Ah, para vai! Está na hora de desencalhar e dar uma primeira dama para essa cidade — brinco.
— Você não quer me desencalhar, Mariana. — Ele faz beicinho.
— Não, eu não! Estou falando da riquinha. Não rolou?
— Não. Eu não quis, sabe.
— Hum. Sei.
Ele pensa que me engana e eu finjo que acredito.
Sorrimos.
— Até, prefeito.
— Até, professora.
Assim que pego as chaves de casa, Vinícius vai embora.
Fico alguns minutos tentando novamente abrir o portão. O problema estava na minha chave. Depois de algumas tentativas, finalmente consigo.
No fim do quintal vejo uma única luz acesa. Vinha da sala da casa alugada.
O médico está acordado a essa hora?
Devagar, vou me aproximando. Em vez de seguir a trilha de pedras que vai até a casa principal, sigo a outra, a que dá na casa de trás.
Ao chegar perto vejo que a janela está aberta e o vento balança a cortina em um ininterrupto vai e vem.
Dou mais alguns passos para ver ou tentar ouvir algo. Eu não sabia ao certo o porquê de estar fazendo isso. Era apenas curiosidade.
Vou tateando a casa dos meus pais e vejo uma sombra através da janela. O homem estava sentado em uma das poltronas floridas da sala. Eu escolhi a estampa.
Devagar vou caminhando até a porta dos fundos da casa principal. Subo os três pequenos degraus e consigo ver perfeitamente Miguel sentado, olhando na direção da televisão. Seria uma cena comum, se não fosse de madrugada e se a televisão estivesse ligada.
Sem querer, esbarro em um dos baldes da mamãe, fazendo-o cair, e um barulho enorme ecoa pelo silêncio.
Porcaria!!!
Como um foguete, corro para a porta e entro na cozinha pela porta de trás.
Meu coração pula freneticamente. Tento controlar a respiração.
O que eu estou fazendo?
Através da janela, espio pela brecha e vejo o doutor de pé no lado de fora, na pequena varanda.
Ele não me viu! Não me viu!
A luz clara sobre ele me dá uma visão melhor. De chinelo de dedo, bermuda e camisa clara. Seus cabelos eram claros. Só não consegui distinguir a cor dos seus olhos quando o vi mais cedo.
Pego um copo de água para me acalmar.
— Algum problema, Mari?
A voz do meu pai vinda de trás de mim me faz pular, e derrubo boa parte da água no copo. — Que susto, pai! — murmuro com a mão no coração.
— O que estava fazendo?
Cerro meus olhos.
— Eu? Eu estava falando dos problemas da cidade e perdemos a hora e...
— Estou dizendo aqui, olhando pela janela.
Pega no flagra!
— Eu vi a luz acesa e... — Aponto para a parte de trás. Nenhuma ideia para sair dessa situação vinha à mente.
— Ficou curiosa para conhecer seu inquilino às tantas da madrugada.
— Nos conhecemos. Hoje. Aliás, ontem, quando saí daqui.
Ele arqueia as sobrancelhas.
— Da próxima vez, minha filha, seja silenciosa. Para fazermos o que não queremos que as pessoas saibam, devemos ser cautelosos.
Reviro os olhos e ele sorri. Ele adorava fazer isso, espetar as pessoas sem nenhum propósito.
— Boa noite, pai. Obrigada pelas dicas — debocho.
— Boa noite, minha filha. Não tem de quê.
Acordo menos atrasada do que achava que estaria. Tomo um banho rápido, me visto e encontro mamãe na cozinha.
— Bom dia.
— Bom dia, minha filha.
Faço uma volta de trezentos e sessenta graus e não vejo meu pai.
— Cadê? — pergunto, e mamãe solta o pano de prato na pia.
— Seu pai?
Faço que sim. Ele é o primeiro a acordar nessa casa.
— Foi até a escola.
— Até a escola? Por quê?
— Ultimamente seu pai tem se queixado demais de ficar em casa, Mari. Ele teve uma vida destinada ao trabalho, então ele foi até lá ver se consegue trabalhar com alguma coisa.
— Não acredito que você deixou, mãe! É exatamente por ele ter trabalhado a vida toda que merece um descanso. Eu disse que ele poderia organizar a festa da igreja.
— Não julgue seu pai. Ele está há dois anos parado. Não quer organizar festas, quer lecionar. Ele sabe o que está fazendo.
— Eu só quero o bem dele — respondo, em um tom mais baixo do que o dela.
— E você pensa que eu não?
— Não disse isso, mãe.
— Mas pensou. — Ela se vira, voltando-se a uma das panelas.
— Desculpe. — Vou até ela. — Papai já está chegando aos setenta, isso me preocupa. Ele sempre deu aula de dia para os jovens e à noite para os adultos, e depois de aposentado continuou trabalhando...
— Seu pai tenta não mostrar para a gente que está infeliz, Mariana. Mas eu o conheço, sei o quanto ele sente falta de trabalhar.
— E quando foi que ele decidiu isso?
— Ontem. Depois que você saiu, eu dei a ideia.
Quase faço uma careta, mas me controlo.
— O que ele pretende?
— Abrir uma turma para os adultos. Ajudar a alfabetizar o povo.
— Ele fez isso por tantos anos!
— Fez e sabe o quanto isso lhe trouxe alegria, por isso quer voltar. Essa cidade deve tanto a ele! Tantas pessoas sabem ler e escrever por causa do seu trabalho voluntário! Ele ainda se sente apto, então por que não continuar, não é?
Concordo com a cabeça, mesmo sentindo o coração apertado. Eu sabia que o respeito pela nossa família vinha através do trabalho feito lá atrás, há anos. Perdi as contas de quantas vezes as pessoas me contaram que suas vidas mudaram por conta das aulas do meu pai. Eu tinha um orgulho imenso.
Talvez eu estivesse sendo egoísta, mas, para mim, era apenas cuidado. Eu queria que ele descansasse, mas nunca perguntei se era isso que ele queria, se era esse estilo de vida que ele gostaria de levar até o último dia da sua vida.
— Você tem razão, mãe — digo, encabulada, e ela me abraça.
— A vida é curta demais para não fazermos o que queremos, Mari.
— E você, mãe? O que quer?
— Eu? — Ela sorri. — Eu quero cuidar de vocês e continuar adoçando a vida das pessoas.
Ela puxa a colher de pau da panela e um fio de doce cai. Ela amava fazer aquilo.
E depois de mais um abraço, saio de casa apressada. Faço o trajeto em passos largos e, antes de chegar à praça, encontro meu pai, fazendo o caminho inverso. Vestindo uma calça social cinza e uma camisa de linho branca, ele logo abre um sorriso ao me ver.
— Atrasada, não é?
Assinto, meio esbaforida, recebendo um beijo na testa.
— E aí, conseguiu algo?
— Sua mãe te contou?
— Acordo e não te vejo em casa - alguma coisa ela teria que falar, não é?
Ele cerra os lábios.
— Desde que eu saí, as aulas de educação de jovens e adultos acabaram. Foi isso que me deu mais ânimo para retornar.
Vejo seus olhos brilharem através da lente grossa dos seus óculos.
— É isso mesmo que você quer?
Ele respira fundo e sorri.
— Ensinar as pessoas está no meu sangue, Mariana. Não me sinto velho a ponto de não servir mais para nada.
Era a minha vez de sorrir e de me orgulhar.
— Fico feliz por você, pai.
— Bom, tive uma conversa franca com a diretora Maria. Se conseguirmos uma turma de pelo menos 10 alunos a aula poderá ser ministrada. Serão abertas hoje as inscrições para a nova turma. Conto com você para propagar a notícia.
— Colocarei um recado na agenda dos alunos. Tenho certeza de que logo as vagas serão preenchidas. Vila Rica ainda é muito carente em educação.
— É verdade. E é exatamente essa marca que eu quero deixar no mundo.
— Você já fez tanto, pai!
— Mas ainda sinto que posso fazer mais, minha filha. Muito mais. Agora vá dar a sua aula que eu tenho que organizar um monte de coisa antes de começar a pegar no batente novamente, inclusive criar projetos para atender melhor a essas pessoas.
Sorrimos, e eu o abraço apertado.
Passo pela praça e avisto o posto de saúde. Miguel conversa com um senhor na porta. De repente nossos olhos se encontram e, mesmo sem querer, eu abaixo meu olhar, aumentando o passo.
O que deu em mim?
Vai que ele me viu o espiando ontem à noite? Será que ele percebeu o quanto sua presença me deixa estranha? Quero nem olhar para ele, de tanta vergonha!
Encontro Márcia na sala dos professores na hora do intervalo. Conversamos um pouco e ela me conta sobre estar pensando em fazer algo para tirar uma grana extra.
— Agora me diz, como foi ontem com o bonitão? — indaga, depois de desabafar.
— Com quem?
— Como com quem? Com o prefeito?
— Ah, tá.
— Está saindo com outro bonitão por acaso?
— Não!
— Não vai me dizer que o cretino do Marcos voltou?
— Hum? Está louca? De onde tirou isso?
— Sei lá. Foi apenas uma coisa que passou na cabeça.
— Marcos é passado!
—Ah, bom! — fala, colocando a mão no coração.
Era difícil convencer as pessoas que o fim do meu relacionamento com ele havia sido superado, e sem dramas. As pessoas se sentiam mais magoadas pelo ocorrido do que eu.
— Então quem é o outro gato? Eu te conheço, Mariana. Você não pestaneja em responder sobre o Vinícius toda vez que faço essa pergunta.
Encontro o seu olhar. Precisava desabafar.
— Conheci o médico — sussurro, tendo a certeza de que éramos só nos duas na pequena sala.
Ela arregala os olhos.
— Como ele é?
Respiro fundo e o ar sai como um suspiro.
Márcia segura o riso.
— Só pela expressão eu percebi que o bonitão velho perdeu o trono.
— Não fala besteira. Ele é apenas gentil.
— Gentil? Ah, não venha com essa, vai!
— Sério. Conheci rapidamente quando saía ontem à noite.
— A tal saidinha com o Vini.
Meneio a cabeça em concordância.
— E o que aconteceu? — pergunta, curiosa.
— Nada. — Dou de ombros.
— Nada? E você já suspira assim?
— Ele é um homem lindo, só isso.
— Cara, eu estou me roendo para ir até aquele pronto-socorro.
Dou um empurrão em seu braço.
— Mas é só isso. Só nos conhecemos — explico.
— Ficha catalográfica, ok? — diz ela, se virando para mim.
Éramos as loucas das fichas e brincávamos de fazer a catalogação dos homens que conhecíamos.
Sorrio, para que ela continue.
— Novo ou velho? — questiona.
— Novo.
— Alto ou baixo?
— Alto.
— Gordo ou magro?
Puxo na memória.
— Aparentemente, forte.
Ela volta a arregalar os olhos.
— Safadinha!
— Não tem nada a ver. Ele é apenas o médico da cidade e...
— E...
— Lindo e...
— E ele é seu inquilino...
— E eu já estou cansada desse papo. Agora... —Tento mudar de assunto. — Vamos falar sobre o nosso projeto de viagem pelo mundo.
— Mundo não, vai! Temos que ir minimizando as coisas. Começando pela América do sul.
— Bom, se tratando da gente, eu acho que já é um grande passo.
— Enorme!
Faço o meu trabalho na secretaria da escola, passo na igreja e converso com o padre sobre os últimos ajustes da festa e saio antes do sol se pôr.
E por mais que eu não quisesse pensar muito nisso, ansiava por passar em frente ao posto médico. Vai que...
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