Capítulo 4
Deixe-me dizer algo em que você pode confiar
Todos têm um lado malvado
Sei que você acha que nunca poderia ser como nós
Veja e aprenda para fazer direito
- Chillin' like a villain, Descendants 2 Original Soundtrack
Ethan não era o melhor. Na verdade, era um grande fracasso.
O fracasso não é sobre insegurança, é sobre falta de execução, pensou Raoni enquanto observava o amigo tentar demonstrar para Leona como deveria ser a postura dela ao andar, ficar parada de pé e sentar.
Raoni tinha acompanhado o próprio pai até a casa dos MacAskil para resolver algumas questões com Ezra e, terminada a reunião, não pôde evitar parar à porta da sala em que Ethan tentava dar uma aula de trejeitos sociais para a nova Herdeira. Também não podia evitar analisar os dois, era parte de sua natureza. Só que, apesar de a óbvia insegurança da jovem mulher não afetar o autoconfiante Fraser, alguma coisa os impedia de prosseguir, parando incontáveis vezes para ajeitar a postura dela, recomeçar a caminhada, respirar mais fundo, tudo isso mesmo com Leona olhando profunda e concentradamente dentro dos olhos de Ethan, como uma boa aluna.
Quando ouviu a décima gargalhada de Leona em menos de cinco minutos de observação e viu Ethan levar uma mão à boca para esconder um sorriso, Raoni não conseguiu mais se conter.
— Desse jeito, nunca vão conseguir progredir — comentou, ainda encostado no batente da porta aberta.
Leona paralisou onde estava, demorando para virar o rosto na direção dele. Ela tentava esconder os próprios sentimentos em uma máscara neutra, mas, para Raoni, os olhos assustados pareciam tão cristalinos quanto água.
Os olhos dela encontraram os de Raoni mais rapidamente dessa vez do que no dia do velório, porém. Ela piscou para se recompor, o medo em seus olhos transformando-se em cautela enquanto o estudava.
Sou uma artista afinal. Deveria estar acostumada com coisas – ou pessoas – bonitas, pensou Leona. Não que qualquer pessoa que já tivesse visto antes na vida chegasse perto da beleza opulenta de Raoni Rehan, mas ela estava menos embasbacada agora e podia tratá-lo como um indivíduo em vez de um deus grego.
Ethan viu os dois Herdeiros se encararem por alguns segundos, com uma intensidade que os dois negariam se ele contasse. Raoni analisava o rosto redondo de pele clara, os grandes e redondos olhos verdes, o nariz fino e os lábios grossos, cheios e um pouco largos, procurando algo, dando-se a oportunidade de tentar entender as contradições que encontrara na jovem em tão pouco tempo. Ela estava longe de ter a aparência que a maioria das pessoas considerava bonita, mas algo nela lhe chamava a atenção. Algo por baixo da superfície. Já Leona ainda se sentia incomodada pela presença inesperada, especialmente por não ter percebido a chegada dele, sem contar o fato de que era óbvio que ele sabia exatamente o que ela e Ethan estavam tentando fazer sem ninguém ter lhe contado.
— O que quer dizer? — Quase mordeu a língua por questionar depois de passar os últimos segundos tentando não repetir aquelas palavras.
— A concentração é a raiz de todas as grandes habilidades do homem, mas vocês não estão concentrados — respondeu Raoni, ainda sem se mover.
— Quem disse essa? — Ethan perguntou, franzindo o cenho, tentando reconhecer a citação.
— Bruce Lee — a resposta foi simples e direta, demonstrando que Raoni nem mesmo precisava pensar para responder, antes de o Herdeiro voltar a atenção dele para Leona.
Viu Ethan mover os lábios, como se resmungasse alguma coisa, provavelmente se queixando por não reconhecer a citação de alguém popular, mas, quando o amigo falou, não foi sobre a citação.
— Talvez devêssemos fazer uma pausa — sugeriu Ethan, afastando-se de Leona em direção ao sofá Chesterfield.
— Por quê? — Raoni precisou enfrentar os olhares de julgamento tanto de Leona quanto de Ethan por estar se intrometendo na aula deles, mas deu de ombros como se nada tivesse acontecido. Ser intrometido fazia parte de suas funções como um Rehan, mas, acima disso, acreditava ser parte de seu trabalho como amigo. De Ethan, pelo menos. — Não acho que seja uma questão de cansaço, e sim de concentração.
— Estamos aqui há algum tempo. Talvez o cansaço esteja atrapalhando a concentração — comentou Ethan, dando mais alguns passos na direção do sofá.
— Acho que vocês é que atrapalham um ao outro — Raoni comentou, sua voz já normalmente baixa soando como um sussurro que nenhum dos outros dois conseguiu entender.
— O que disse? — perguntou Leona, estreitando os olhos redondos para ele. Estava aliviada por sua reação confirmar que já não estava mais aparvalhada como uma idiota pela beleza dele, mas manteve o semblante sério, só porque conseguia.
— Por que não tentam de novo? — sugeriu Raoni. — O pódio foi feito para destacar pessoas perseverantes.
— Sem concentração? — questionou Leona, encontrando a artista petulante dentro de si e ficando exultante com isso. Radiante por poder mostrar esse seu lado perante um Rehan, de todas as pessoas.
Raoni sorriu, o rosto assumindo um ar malicioso, de predador.
— Concentre-se — aconselhou, como se fosse uma sugestão óbvia.
— Mas se eu supostamente não estava concentrada antes, como poderia fazer isso agora, tão rápido?
Ethan observava os dois discutindo, assumindo o papel que vira Logan fazer tantas vezes antes, com ele mesmo e Raoni. Os papéis estavam invertidos agora, pensou, mas as palavras de Raoni lhe chamaram a atenção outra vez:
— Yogi Berra disse uma vez: Não consigo me concentrar enquanto penso. Morgan Scott Peck disse que você não consegue realmente ouvir alguém e fazer qualquer outra coisa ao mesmo tempo. Se concentrar não é sobre tempo, é sobre habilidade. Você tem que deixar todo o resto de lado e focar no que precisa.
Leona deu uma breve risadinha seca. Sentia-se estranhamente livre, com uma conexão direta entre sua língua e seus pensamentos que nunca ocorrera antes em Londres, nem mesmo perto de Logan ou Ethan.
— Isso não é uma apresentação de teatro — declarou ela. — Não é uma cena que eu preciso interpretar, é algo que eu preciso aprender para a vida, para usar todos os dias, praticamente o tempo todo. Não posso deixar de pensar enquanto me concentro em andar. Isso é ridículo.
Leona fez menção de sair da sala, mas a voz de Raoni, controladamente autoritária, a manteve no lugar.
— Com o tempo, você vai adquirir prática, então não vai precisar se concentrar para tarefas tão simples. Até lá, precisa limpar a mente e se concentrar para ouvir o que Ethan tem a dizer, para aprender.
Leona abriu a boca para responder, mas, sem saber o que dizer, fechou-a outra vez. Porém, quando Raoni achou que ela precisava de mais incentivo e se preparou para falar de novo, ouviu a voz frustrada dela e viu seus movimentos exagerados com as mãos, que foram parar na cintura.
— Argh, ok. Como espera que eu me concentre de uma hora para a outra? — Dessa vez, a pergunta não parecia um desafio ou descrença. Apesar da irritação, ela realmente esperava que ele lhe dissesse o que fazer.
— Use Ethan como foco. — E, falando sem se virar para Ethan, chamou: — Fraser, venha aqui.
— Não.
Tudo no cérebro de Raoni parou por um segundo e ele desviou os olhos de Leona para o amigo. Talvez ele mesmo estivesse se concentrando demais na conversa com ela, mas a palavra usada por Fraser era tão estranha para ele, ao menos como resposta a qualquer um de seus pedidos, que Raoni só observou Ethan por alguns instantes, vendo o amigo dar uma gargalhada ao encará-lo antes de abrir um sorriso quase infantil que mostrava os dentes brancos.
— Acho que nunca te vi tão surpreso — comentou Ethan.
Raoni permaneceu em silêncio, esforçando-se para manter a expressão neutra enquanto se recuperava. Sabia que, se falasse naquele momento, perderia parte da dignidade que construíra ao longo dos anos. Por mais que Ethan fosse Ethan, Raoni ainda tinha uma reputação a zelar.
— Sabe — prosseguiu Fraser, começando ele mesmo a ficar constrangido com o embaraço de Raoni, que era tão estranho para ele quanto para o amigo —, lembro de uma máxima que você citou para mim uma vez... Não prometa, faça, para ninguém subestimar seu fracasso ou sua vitória. Algo assim.
— Ao invés de prometer, surpreenda. Dessa forma, ninguém poderá subestimar o seu fracasso ou a sua vitória — corrigiu Raoni automaticamente. Depois, estreitou os olhos do formato perfeito de duas amêndoas. Ethan gostava de implicar com suas máximas, mas citá-las para ele era algo novo.
— Acho que você é melhor que eu para fazer isso — explicou Ethan. — Por que não tenta?
Pelo menos ela ainda não riu nenhuma vez, pensou Raoni, voltando a observar Leona, cujos olhos iam de um homem para o outro como uma bola de pingue-pongue. Talvez o amigo estivesse certo, afinal.
E, de alguma forma, ele estava, constatou Leona no momento em que Raoni deu alguns passos na sua direção e parou a poucos centímetros dela, apoiando uma mão em suas costas, pouco abaixo dos ombros, e roubando seu ar.
Foi só por causa da surpresa, pensou ela, tentando convencer a si mesma. Eu não esperava que ele se aproximasse tanto de repente.
Raoni soltou o ar devagar, percebendo que a própria respiração mudara subitamente. Ensinar alguém era algo novo para ele, afinal.
— Certo, então use-me como ponto de foco — repetiu ele, voltando ao ponto em que tinham parado. — Esqueça todo o resto e concentre-se em mim.
Leona inspirou e expirou lentamente, obedecendo, tentando limpar a mente e fingir que o rosto do Herdeiro era tudo o que podia ver.
Como uma de suas telas em branco.
Ela nunca precisara de concentração para pintar, ao menos não conscientemente. Simplesmente olhava para a tela em branco e sua mente era preenchida pelas cores e formas que, de algum jeito que ela nunca conseguia explicar de verdade, passavam para a tela por meio de sua mão e de um pincel. Por trás do turbilhão colorido e arrebatador, existia a concentração, é claro, apagando todo o resto para deixar apenas a arte se manifestar, impedindo-a de enxergar qualquer coisa além da tela, mas Leona nunca tinha pensado nisso dessa maneira até aquele momento.
— Olhe nos meus olhos.
A voz de Raoni se infiltrou em seu cérebro, colorindo, com um tom grave e levemente rouco, a tela que era o rosto dele.
Raoni viu os olhos verdes nublarem e a expressão no rosto redondo suavizar. Leona ainda olhava para ele e com certeza ouviu suas últimas palavras, mas tinha encontrado um mundo todo próprio onde se concentrar. Não percebeu os próprios lábios abrirem suavemente, excitado ao observar aquela expressão e os olhos sem foco que se pareciam assombrosamente com os de uma mulher cujo prazer acabara de ser completamente saciado.
Reprimindo uma pontada de necessidade de saciar o próprio prazer, ele pressionou as costas de Leona, fazendo-a ajustar a postura de forma quase instintiva, e, quando sentiu que ela manteria a postura sozinha, afastou-se dois passos, sem quebrar o contato visual.
— Ande — ordenou, mas sua voz soou baixa e grave, quase como um amante perdido em meio à paixão. Tentadora, dominante... influente. — Ande como se fosse dona de toda a cidade e nada nem ninguém pudesse impedi-la de impor sua vontade.
Ele a viu obedecer, recuando com um passo de suas pernas longas a cada passo que ela dava em sua direção, e sentiu uma pontada na parte baixa do corpo.
Algo mudara em Leona com suas orientações. Perdida no mundo que ela inconscientemente escolhera para se concentrar, sua expressão de repente se tornou determinada, seus passos, confiantes e seus olhos, altivos. A garota assustada e insegura que ele encontrara minutos antes tinha cedido o lugar a uma poderosa Herdeira da Regência, futura líder de uma das famílias mais abastadas do Reino Unido e, apesar de sua aparência não ser exatamente considerada bonita aos olhos da sociedade que a rodeava, Raoni não conseguia parar de olhar para ela.
Ele não percebeu que estava tão absorto quanto a própria Leona até parar de recuar e estender uma mão para ela, impedindo que se chocasse contra ele. Leona pegou sua mão com elegância, como se tivesse feito isso durante sua vida inteira, e piscou, de repente quebrando a própria concentração e o transe que o envolvia.
— E então? O que acha? — perguntou Raoni, voltando-se para Ethan, em uma tentativa de evitar pigarrear.
É por isso que ele não pode trabalhar como relações públicas, pensou Ethan. Se ele mesmo já precisava lidar com alguma perseguição toda vez que usava seus encantos com uma mulher, o assédio seria muito pior se Raoni o fizesse. Se os tempos fossem outros, o amigo até poderia ser acusado de bruxaria... ou de ser o próprio Diabo na Terra, capaz de seduzir todos ao seu redor.
— Perfeito — respondeu finalmente, com um sorriso de quem tinha planejado aquilo por um longo tempo enquanto notava que o casal não tinha soltado a mão um do outro. — É como se ela tivesse nascido Herdeira. Pareceu até instintivo.
Leona fez uma careta, finalmente soltando a mão de Raoni, mas soou quase constrangida quando falou:
— Pareceu mesmo bem mais fácil dessa vez.
— É como eu disse. A concentração é a raíz da habilidade — concluiu Raoni.
Ethan abriu um largo sorriso, sentindo que sua missão estava cumprida, apesar de Leona só ter aprendido a primeira lição.
— Acho que posso deixá-los agora — declarou Raoni, acenando com a cabeça para o amigo enquanto enfiava as mãos nos bolsos da calça. Para a nova Herdeira, instruiu: — Tente treinar o que fez agora. Encontre algo em que focar e esqueça todo o resto até que consiga fazer naturalmente. Quanto mais repetir, melhor. E lembre-se, a postura tem a ver com a sensação de confiança.
— Espere? Você já vai? — Leona perguntou, com o cenho franzido e os olhos mais abertos que o normal.
Quando Raoni deu de ombros, a jovem se virou para Ethan e depois de volta para ele.
— Mas eu ainda tenho muito pra aprender. O que eu vou dizer para as outras Herdeiras na próxima vez que as encontrar?
— As outras Herdeiras? — questionou Raoni, tentando acompanhar o raciocínio dela. Então virou-se para ela outra vez, prendendo os olhos verdes nos seus inconscientemente. — O que quer dizer?
Ele não parece ter vergonha de perguntar isso, pensou Leona com sarcasmo.
— As outras mulheres, é claro. As pessoas com quem vou ter que lidar agora.
Ela queria mesmo dizer mulheres...
O cenho de Raoni ganhou um leve franzido enquanto ele desviava os olhos de um castanho profundo na direção de Ethan e via o amigo quase engasgar com a alfinetada silenciosa.
— Ela não sabe? — Rehan fez um esforço para não deixar transparecer na voz o tom de julgamento que estava em seus olhos.
— Bem, acho que não. Eu não tive exatamente muito tempo para explicar. Ela estava mais preocupada em saber como se comportar e...
— E ainda não faz ideia do que realmente pode arruiná-la nesse mundo — cortou o Herdeiro. — Ainda por cima, tem um professor que esqueceu de ensinar exatamente isso.
Você é realmente um fracasso como professor, Ethan, pensou Raoni, mas não disse em voz alta.
Recorrendo ao charme que frequentemente o livrava dos problemas, Ethan abriu um sorriso matreiro.
— Como eu disse, você é melhor do que eu nisso. Acho que deve assumir a partir de agora. — E fez um gesto com as mãos, como se desse passagem para o amigo, que já estava a apenas um passo de Leona.
Raoni estreitou os olhos na direção de Fraser, demonstrando que seu charme não era o suficiente para dobrá-lo, mas deixou a questão de lado, voltando-se para a nova Herdeira.
— Não existem outras Herdeiras, Leona — disse. — Você é a única.
— Sério? Mas então...
Os olhos dela perderam o foco de novo enquanto a voz morria na garganta, mas dessa vez parecia diferente. Ela não estava absorta, perdida no próprio mundo aprazível. Estava perdida, angustiada e provavelmente fugiria na primeira oportunidade. Parecia quebrada e sem esperança de ser consertada.
Raoni se lembrou do Peão em seu tabuleiro de xadrez, solitário e indefeso perto das outras peças, mais fortes e mais acostumadas ao jogo. Nem mesmo pensou em frear o ímpeto de protegê-la. Como Rei, podia proteger qualquer peça que quisesse, desde que ela merecesse. E era a primeira vez que sentia um impulso desse tipo, para fazer algo que não era esperado dele.
Percebendo que a jovem voltava a ficar tensa como antes, deixou os próprios ombros caírem, assumindo uma postura mais relaxada e convidativa enquanto oferecia a própria mão direita a ela outra vez, dando-lhe um vislumbre do anel que usava no dedo indicador, que simbolizava autoridade e autoconfiança.
— Nunca houve uma mulher herdeira antes — explicou ele, tentando fazer o cérebro dela voltar a focar no que era importante em vez de ficar preso no desespero que acabara de ver e, por mais que ele relutasse em admitir, do qual não tinha gostado. — Os Herdeiros da Regência são um grupo muito antigo e seleto. Começou, como o nome indica, no período da regência, quando a doença de George III obrigou-o a ceder o trono ao filho por 11 anos antes de falecer. — Sutilmente a fez sentar em uma poltrona Chesterfield de encosto baixo enquanto ocupava outra idêntica ao seu lado. — Acho que dá para imaginar que, nessa época, o costume era passar a Herança para o primogênito homem ou para o próximo homem na linhagem. Somos pessoas tradicionais, na maioria, e ninguém nunca quis ou teve coragem de fazer diferente disso.
Leona acompanhava as palavras dele com o olhar sério, não mais sucumbindo ao medo, não tão concentrada quanto estava ao andar até ele antes, mas o suficiente para se permitir envolver pela história.
— Houve uma única mulher que rompeu a tradição, mas ela nunca foi Herdeira — explicou ele, adiantando-se caso ela pretendesse comentar sobre sua declaração anterior e interrompê-lo. — Brooke Rehan foi a única mulher a se tornar Consagrada na história dos Herdeiros da Regência... — Quando percebeu a dúvida nos olhos verdes à sua frente, esclareceu: — Se tornar Consagrado, ou Herdeiro Consagrado, significa passar pela Sucessão, receber a Herança, assumir o posto de líder de todos os Negócios da família, tornar-se comandante de toda a linhagem.
— Como Brooke conseguiu virar Consagrada sem ter sido Herdeira? — Leona perguntou e algo na forma como ela se sentiu relaxada o suficiente para falar e chamar uma antepassada dele pelo primeiro nome com tanta intimidade, ainda por cima, fez Raoni sorrir.
— O pai dela era um homem arrogante. É uma característica dos Herdeiros da Regência, devo admitir, mas o fato foi que ele ficou doente e faleceu sem escolher um Herdeiro. Ele só tinha Brooke como filha e se recusava a anunciá-la como Herdeira. — Leona levantou uma sobrancelha, intrigada. — O ducado foi herdado pelo parente homem mais próximo do duque falecido, é claro, mas Brooke era astuciosa o suficiente para garantir que ela mesma ficasse com todo o resto. Com as empresas, quero dizer. E convenceu o novo duque a se casar com ela, assim poderiam fazer com que ninguém percebesse o verdadeiro acordo dos dois. O primogênito deles herdou tudo, é claro.
Leona sorriu, deixando o queixo um pouco mais protuberante no rosto redondo.
— É claro — repetiu ela.
— Também é culpa dela você ter que se apressar para aprender tudo — comentou Ethan, ainda sentado no sofá em frente a eles, fazendo-a voltar o rosto em sua direção como se tivesse esquecido que o amigo estava ali.
— Parece muita coisa para aprender em um ano. Ainda mais do que eu imaginei. Mas por que é culpa dela? — questionou Leona, olhando de um homem para o outro.
Raoni esperou que Ethan respondesse, já estava falando muito mais do que o normal, mas Ethan fez um gesto como se o convidasse a continuar com a aula e o Herdeiro se sentiu obrigado a usar seu treinamento para evitar olhar de soslaio para o amigo.
— Para muitos, até hoje ainda parece que Brooke se aproveitou da doença e da morte do pai para tomar tudo para si, mas ela se preocupava mais com os Herdeiros da Regência do que a maioria acredita. — O orgulho era evidente na voz do Rehan. A mulher era sua antepassada, afinal. — Para evitar novos momentos de tensão causados pela morte de um Consagrado sem ter nomeado seu Herdeiro, ela criou a regra da Sucessão. — Raoni se recusava a chamar de lei e confundir a cabeça de Leona, ainda que a regra funcionasse como tal. — A Sucessão deve acontecer, impreterivelmente, no mesmo ano em que o Consagrado atingir 50 anos de idade. A menos, é claro, que algo force a Sucessão a acontecer antes disso, como a morte repentina de um Consagrado ou o impedimento total de exercer suas funções, o que é muito raro de acontecer. Assim, como seu pai completará 50 anos de idade no ano que vem, sua Cerimônia de Sucessão acontecerá no mesmo ano.
Os olhos dos dois se encontraram novamente e Raoni sentiu algo formigar no estômago ao perceber que ela estava concentrada de novo, pensando. Quando Leona arfou depois de algum tempo e falou, ele experimentou algo próximo de surpresa pela segunda vez naquele dia.
— Sua Sucessão deve acontecer ainda este ano!
Ele sorriu, mais orgulhoso que sedutor dessa vez.
— Sim. É por isso que eu sigo meu pai a mais compromissos ultimamente. Em um mês, serão meus compromissos e ele vai se aposentar.
— O duque parece jovem para se aposentar — comentou ela.
— Essa é a questão com a regra — Rehan retrucou. — Se fizéssemos parte do mundo comum, ele não precisaria se aposentar. Ainda tem energia suficiente para comandar todos os Negócios Rehan por vários anos, mas isso não importa. A regra é clara e deve ser seguida, então ele vai me passar o comando.
— E então todos terão que respeitar Raoni Rehan! — soltou Ethan, entusiasmado, atraindo a atenção dos dois.
Raoni puxou os belos lábios cheios e perfeitamente desenhados em uma careta. Logo depois, piscou, aturdido por estar se sentindo tão à vontade com a presença de Leona a ponto de reagir naturalmente, como só fazia quando estava entre amigos próximos.
— Pensei que todos já respeitassem você.
— Sim, o posto de Herdeiro requer respeito, mas há um patamar de deferência que só um Consagrado tem.
— E um Consagrado Rehan...
Enquanto Ethan interrompia a própria frase antes mesmo que Leona pudesse entender sua implicação a ponto de ficar curiosa, Raoni viu o pai se aproximar da porta aberta da sala e parar por alguns segundos, o suficiente para interceptar sua atenção, afastando-se novamente logo depois sem dizer uma única palavra.
Esse era o nível de treinamento que um Rehan tinha, o nível de atenção que deveria ter com tudo ao seu redor.
— Peço perdão, mas terei que deixá-los — pronunciou Raoni, surpreendendo os outros dois, que sequer tinham notado a presença momentânea de Leif. — Prometo falar mais sobre a hierarquia na próxima vez — completou, assumindo que haveria uma próxima vez. Todos pareciam ter naturalmente concordado que ele passaria a ensinar Leona, já que era óbvia e infinitamente melhor nisso do que Ethan.
— E sobre o que eu devo dizer às pessoas? — questionou Leona, tomando cuidado para não falar "as Herdeiras" de novo.
— Vamos chegar nisso, mas não precisa se preocupar. — O Herdeiro levantou. — Até lá, todos sabem que você nunca foi treinada como Herdeira. Mesmo que encontre alguém antes de termos mais aulas, apenas use a lógica e tente observar mais do que falar. E comece o treinamento com Ezra. Siga-o se ele não a convidar. Nossas empresas são diferentes, eu não posso te ensinar a administrar os Negócios dele.
Leona piscou, de repente insegura outra vez, mas Raoni não sorriu. Não queria dar esse tipo de incentivo a ela. A situação não era simples e ninguém seria condescendente, nem mesmo simpático. Ele apreciava a coragem que ela nem sabia que tinha, mas não queria fazê-la acreditar que a estrada seria mais fácil do que na realidade era, mesmo com a ajuda dele.
No entanto, seus olhos se prenderam aos dela outra vez. Já tinha perdido as contas de quantas vezes isso tinha acontecido naquela tarde. No verde límpido, ele viu uma pontada do medo que vislumbrara antes, mas viu também expectativa e resignação.
Está no caminho certo, embora não precise ter tanto medo, pensou e se afastou com um aceno de cabeça para Ethan, deixando Leona com a sensação de incompletude, quase como olhar para uma tela com a certeza de que não estava finalizada, mas sem compreender o que estava errado ou faltando.
Seus dedos apertaram inconscientemente o braço da poltrona de couro enquanto ela observava o Herdeiro se afastar e sair da sala, inquieta. Leona se forçou a se contentar com a expectativa de aprender mais sobre aquele mundo, do qual já não conseguia fugir, sufocando o desespero que costumava acompanhá-la toda vez que lembrava que nada daquilo tinha volta.
Olá, pessoal!
O que estão achando até agora?
Me digam nos comentários. Aceito críticas (construtivas), sugestões, perguntas, elogios, surtos, tudo.
Beijos e até a próxima!
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